Palestinos e israelenses trabalham juntos pelo fim da violência na região
Para além das acusações, das denúncias e da propaganda, existe uma movimentação auspiciosa que merece atenção: movimentos conjuntos – de palestinos e israelenses – que estão atuando não só pelo fim da violência atual, mas por um acordo de paz real e duradouro
Por Carla Habif*
Desde o dia 7 de Outubro de 2023 – quando uma ação do Hamas deixou 1.200 pessoas mortas e 230 israelenses sequestrados, muitos até hoje ainda em cativeiro – Israel e Palestina vivem um dos momentos mais atrozes de sua longa história de conflitos e violência. Em menos de um ano, o cerco israelense sobre a Faixa de Gaza já contabiliza mais de 40 mil mortes. Sendo 15 mil crianças.
Nesse cenário desesperador, imagens das atrocidades cometidas de parte a parte assolam a internet. Notícias devastadoras da violência estão permanentemente expostas em todos os meios de comunicação.
Mas, para além das acusações, das denúncias e da propaganda, existe uma movimentação auspiciosa que merece atenção: movimentos conjuntos – de palestinos e israelenses – que estão atuando não só pelo fim da violência atual, mas por um acordo de paz real e duradouro.
Esforço invisível pela paz
Como sabemos, a violência é um assunto que prende a atenção do público. Ela vende muito também, através do comércio de armas e proporcionando que os meios de comunicação aumentem seu engajamento. Desta forma, movimentos não violentos entre palestinos e israelenses acabaram não recebendo tanta atenção ao longo da história do conflito, embora sempre tenham existido.
Em 1989, antes mesmo dos famosos Acordos de Oslo assinados pelos então líderes de Israel e Palestina, Isaac Rabin e Yasser Arafat, 50 mulheres judias israelenses e palestinas dos territórios ocupados e representantes da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), realizaram a conferência “Give Peace a Chance: Women Speak Out”, em Bruxelas.
Movimentos como esse são pouco mencionados quando o assunto é Israel e Palestina, mas precisam de mais atenção e participação, regional e internacional, para que possam crescer e se fortalecer.
Na falta de lideranças políticas que levem a sério o debate acerca de um acordo de paz real, membros da sociedade civil tomam a frente desta empreitada, e começam a desenvolver ações de colaboração cada vez mais relevantes, tanto em número de organizações como em número de participantes.
Embora em meio a uma guerra tão violenta e catastrófica falar de paz ainda possa parecer ingenuidade, o que estes novos movimentos têm construído é sem precedentes na história do conflito. Seus projetos e ações são pensados embasados em teorias bem fundamentadas de resistência não violenta, e têm conseguido dar origem a modelos reais de colaboração e reconciliação.
Em muitos deles, o trabalho é coordenado conjuntamente, em cargos compartilhados por palestinos e israelenses: dois diretores, dois porta-vozes, e assim por diante. Muitos mantêm dois escritórios, um em Israel e um na Palestina. Todos costumam ser bilíngues – árabe e hebraico -, com a utilização do inglês para permitir o envolvimento da comunidade internacional.
E os exemplos, felizmente, já são numerosos. Estudei alguns deles, seus processos, projetos e impacto na minha tese de Doutorado em Relações Internacionais. Destacarei alguns ao longo do texto, mas fica a enfática sugestão de que a leitora e o leitor busquem pelas páginas de cada organização e suas redes sociais para uma compreensão mais aprofundada do tema. Muitas das atividades acontecem online, e estão abertas à participação que cidadãos de qualquer país. Conheça algumas delas:
Standing Together
Desde o dia 7 de outubro, o Standing Together, movimento de base composto por cidadãos israelenses judeus e palestinos, tem realizado corriqueiras manifestações pelo fim da invasão em Gaza, retorno dos reféns e cessar fogo imediato. As passeatas acontecem por todo o país, como em Tel Aviv, Haifa e, inclusive, na fronteira de Gaza, onde no final de abril houve uma manifestação por parte de colonos israelenses pedindo pela construção de novos assentamentos na região. Palestinos e judeus israelenses do Standing Together foram ao local no mesmo dia, com cartazes em árabe e hebraico, se opondo e pedindo por um cessar-fogo.
Outras ações do Standing Together envolvem a conscientização pública sobre a violência que tem acontecido com a população de Gaza, convenções de solidariedade, que buscam trazer judeus e palestinos a um espaço seguro no qual possam compartilhar seus sentimentos e emoções nesse momento difícil, ações de intervenção que buscam tirar de espaços públicos expressões racistas e violentas, substituindo-as por mensagens de solidariedade e colaboração, e apoio conjunto às vítimas que estão em hospitais israelenses. Porta-vozes do movimento têm visitado diversos países e participado de entrevistas e debates, passando a mensagem do movimento, buscando difundir a proposta de construção de uma solução compartilhada e a longo prazo.
Combatentes pela Paz
Com quase duas décadas de dedicação à construção de uma sociedade conjunta que possa servir de modelo para um futuro acordo de paz, os Combatentes pela Paz também têm desenvolvido ações conjuntas em meio à guerra. A organização é fundada por ex-combatentes palestinos e israelenses, pessoas que já estiveram diretamente envolvidas no ciclo de violência do conflito e, cada uma através de um processo particular, decidiram optar pela não violência.
Com uma longa trajetória no campo de construção da paz entre membros da sociedade civil, a organização desenvolve uma série de projetos e ações que buscam trazer israelenses e palestinos à ação conjunta na formação de uma nova sociedade, que ainda não existe no presente, mas que já está em formação para o futuro. Os Combatentes pela Paz promovem reuniões entre palestinos e israelenses, facilitadas por pessoas experientes, nas quais podem compartilhar suas experiências vivendo sob o conflito e serem acolhidas e reconhecidas pelo outro.
A organização também promove encontros públicos, sempre com um palestino e um israelense, para que mais pessoas possam acessar as múltiplas narrativas existentes e debater sobre elas. O CFP atuam em campo, realizando manifestações não violentas e levando auxílio a vítimas da ocupação israelense, protegendo casas e vilarejos de demolição, plantando oliveiras, levando roupa, água e comida.
Desde que o atual escalonamento se iniciou, os Combatentes pela Paz têm promovido reuniões entre seus membros, realizado intervenções não violentas por um cessar-fogo e retorno dos reféns imediato, realizado falas públicas e promovido uma série de rodas de conversa e debates, muitos dos quais acontecem online e em inglês para permitir a participação de pessoas em todo o mundo.
Fazem parte dessas conversas palestinos e israelenses que, inclusive, perderam entes queridos ao longo do atual escalonamento, como foi o caso do evento intitulado Coragem no Desconhecido: Explorando Novas Possibilidades.
O diálogo envolveu a participação de Magen Inon, que teve os pais assassinados nos ataques de 7 de Outubro, e de Ahmed Helou que, até então, tinha perdido mais de 25 parentes como resultado dos ataques recentes de Israel na Faixa de Gaza. Inon relatou que já era uma pessoa pró-paz, mas não se considerava um ativista pela paz, como se identifica agora. Ele contou sobre os fatos, sobre o dia 7 de Outubro e sobre a complexidade das semanas que se seguiram. E compartilhou que entende fortemente que a reconciliação entre os lados é a única forma que pode tirar palestinos e israelenses dessa situação.
Helou, por sua vez, dividiu sobre a dicotomia entre o apoio à luta da resistência palestina e a militância pessoal no caminho da não violência. Contou que no início foi extremamente complexo pensar em estar em contato com seus colegas israelenses, mas que no caminho entendeu a necessidade de fazê-lo e como esse mesmo contato tem sido importante.
Círculo dos Pais – Fórum das Famílias
O Círculo dos Pais – Fórum das Famílias é outra organização que vale a pena mencionar. Formada por palestinos e israelenses que perderam algum membro direto da família, em uma de suas campanhas a organização utiliza a frase “nós não queremos você aqui”. Uma frase que ao primeiro contato pode gerar a sensação de passar ódio e exclusão, na realidade quer dizer que palestinos e israelenses enlutados como decorrência do prolongado ciclo de violência não querem que mais pessoas percam entes queridos.
Tendo uma de suas prerrogativas que o luto não seja usado para mais retaliação e sim para a prevenção de mais violência, o CPFF é uma organização conjunta palestina e israelense composta, atualmente, por mais de 600 famílias enlutadas. Desenvolvendo reuniões entre palestinos e israelenses, levando a narrativa conjunta ao público mais geral, desde escolas a eventos internacionais, realizando intervenções não violentas e projetos educativos, o Círculo dos Pais tem estado muito ativo desde o 7 de Outubro.
A organização vem promovendo diversas atividades, dentre falas públicas e manifestações pelo cessar-fogo imediato e diálogos abertos ao público. Uma das primeiras ações do Círculo dos Pais desde o início do escalonamento foi uma vigília conjunta pelas vítimas de ambos os lados. A vigília aconteceu através da plataforma Zoom, reunindo centenas de pessoas de diversos países e membros do CPFF. Envolvendo uma breve fala sobre os atuais acontecimentos e suas consequentes dificuldades, acendimento de vela, momento de silêncio e uma fala dos porta-vozes Robi Damelin e Bassam Aramin.
Ambos se expressaram sobre como a violência direcionada a civis não tem justificativa e que a retaliação que se sabiam desde então que aconteceria, de ambos os lados, só resultará em um aumento de pessoas assassinadas e famílias enlutadas. A vigília foi um espaço de compartilhamento da tristeza e do luto e de se escutar palavras de paz e de não violência.
Memória Conjunta Palestina e Israelense
No dia 12 de Maio, acontecerá a 19ª edição de uma cerimônia coordenada conjuntamente pelos Combatentes pela Paz e pelo Círculo dos Pais: a cerimônia da Memória Conjunta Palestina e Israelense. Ela é o maior evento Palestino-Israelense promovido conjuntamente na História. A ideia da cerimônia é proporcionar uma oportunidade para israelenses e palestinos poderem compartilhar o luto e demandarem o fim da ocupação do ciclo da violência. A cerimônia é transmitida online, sendo possível acompanhá-la de qualquer lugar do mundo.
Estes e outros movimentos não defendem alguma solução política em particular, mas entendem que para algum acordo de paz ser possível é necessário o fim da ocupação militar israelense na Palestina. Eles demandam que uma futura solução política seja justa para os dois lados e que envolva um processo de reconciliação, afirmando em suas falas e publicações que sem esse processo que pode fundamentar a base de uma colaboração entre israelenses e palestinos, qualquer acordo será só mais um cessar-fogo.
Caminhos a seguir: não engajar com a violência, nem mesmo no discurso
Quanto a nós, qual o nosso papel neste contexto? Quando questionada sobre isso em uma das rodas de conversas abertas à comunidade internacional, Mai Shahin, ativista palestina dos Combatentes pela Paz, respondeu afirmando que a principal ação necessária é não engajar com a violência, seja no discurso, em postagens ou de alguma forma direta. De acordo com ela, precisamos fazer o oposto, nos envolvendo com a não violência, divulgando suas mensagens, participando de suas atividades e promovendo suas ideias. É importante, sim, acompanhar as ações violentas que estão acontecendo neste momento e as tamanhas violações dos direitos humanos.
Mas prestar atenção à não violência e às ações conjuntas de palestinos e israelenses que já estão em processo de construção de uma nova realidade é igualmente importante. É recebendo foco que estes movimentos irão crescer, se desenvolver e ter a possibilidade de funcionar como modelo para setores cada vez mais abrangentes da sociedade.
A paz entre Israel e Palestina não é um caminho fácil de ser alcançado. É um processo que vai exigir que ambos os lados abram mão de pontos importantes e façam concessões difíceis, começando pela aceitação plena do outro na região. Muito se fala da História e dos direitos históricos e das diferentes narrativas sobre o conflito. E tem que se continuar falando sobre tudo isso.
A História existe, é importante e serve para nos ensinar sobre como melhor agir no presente. Se prestarmos atenção, a História tem nos mostrado que manter a atual dinâmica de ocupação e disputa só gerará mais violência para todos envolvidos. É hora de, com base nessas narrativas históricas plurais, entender como a lidar com o presente.
Palestinos e israelenses vivem na região e não vão a lugar algum. Abrir espaço para a construção de uma nova realidade na qual eles possam não somente estabelecer acordos, mas colaborar, é fundamental para que possamos vislumbrar um futuro de paz verdadeira.
*Carla Habif é doutora em relações internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
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Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br
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