Rubens Barbosa: Crise no Mercosul
Posse do Brasil na coordenação do Mercosul aprofunda crise existencial do bloco e divergência entre os países membros. Para embaixador, Lula deveria deixar o discurso ideológico de lado e focar no que interessa ao pais
Posse do Brasil na coordenação do Mercosul aprofunda crise existencial do bloco e divergência entre os países membros. Para embaixador, Lula deveria deixar o discurso ideológico de lado e focar no que interessa ao país
Rubens Barbosa*
A reunião de presidentes do Mercosul ocorrida em Puerto Iguazu no início da semana marcou a transferência da coordenação do bloco da Argentina para o Brasil, o aprofundamento da crise existencial e as divergências entre os países membros do grupo sub-regional.
A prioridade óbvia da presidência brasileira é a conclusão do acordo com a União Europeia. A retórica do presidente Lula, em condições normais, poderia ser interpretada como parte da arte de negociar. A crítica dura ao Protocolo Adicional foi uma repetição do que havia sido dito na frente do presidente francês Emmanuel Macron em Paris há duas semanas e será absorvido quando o Mercosul responder com um substitutivo ao Protocolo Adicional, confirmando os compromissos do acordo, sem os excessos europeus dirigidos à política ambiental do governo Bolsonaro.
A crítica ao capítulo das compras governamentais, moderada por ter eliminado a ameaça de reabrir o acordo, poderá ser a contrapartida da aceitação europeia da resposta ao Protocolo Adicional. Lula e a presidente do Conselho Europeu reiteraram a intenção de concluir o acordo até o fim do ano, nas presidências da União Europeia, pela Espanha, e do Mercosul, pelo Brasil. Não será fácil, sobretudo por questões ideológicas, que precisam ser superadas, mas ainda há possibilidade de se chegar a um resultado positivo para todos.
No interesse de avanços na área comercial, em especial a favor da indústria, que mais se beneficia da integração sub-regional, as questões ideológicas não deveriam ser ressaltadas pelo Brasil. Como se viu na reunião de Puerto Iguazu, a questão da Venezuela, com problemas com a democracia e a eventual volta ao Mercosul, divide e tira o foco dos problemas internos e das negociações externas do Mercosul.
O discurso do presidente Lula ao relativizar a democracia na Venezuela e ao defender a volta de Caracas ao Mercosul acentua o tom ideológico desatualizado, sobretudo depois das medidas anti-democráticas tomadas por Maduro para afastar lideranças oposicionistas das eleições presidenciais de 2024. Mesmo o ingresso da Bolívia no Mercosul, neste momento de crise no âmbito do grupo, não parece recomendável, pois iria agravar ainda mais as divisões, e a Bolívia dificilmente irá cumprir as regras mercosulinas.
A retomada das negociações internacionais com o Canadá, a Coreia do Sul e outros países, prometida pelo presidente Lula, coloca em evidência a pretensão do Uruguai de flexibilização das regras do Mercosul para permitir negociações bilaterais, o que não é aceito pelo Brasil e pela Argentina. Caso se chegue a um acordo com a União Europeia, a palavra de Lula sobre um eventual acordo com a China vai ser cobrada. Em relação às conversações do Uruguai com a China, parece pouco provável que Pequim decida abrir de fato negociações com o Uruguai de forma isolada, e um acordo com o Mercosul ainda está longe de ser uma prioridade, apesar dos estreitos laços comerciais da Argentina e do Brasil com a China.
No comunicado final do encontro — que mais uma vez não foi assinado pelo presidente uruguaio — volta-se a insistir na necessidade de modernização do Mercosul:
“Os presidentes também concordaram com a necessidade de abrir um espaço de reflexão política sobre a modernização do bloco, incluindo o fortalecimento da agenda interna para uma maior integração de suas economias, bem como a estratégia de inserção internacional, de forma consensual e solidária para enfrentar os desafios de um cenário mundial em transformação, afetado por mudanças significativas no mapa da produção e do emprego, com efeitos visíveis na reconfiguração das cadeias globais de valor. Nesse contexto, os presidentes concordaram em trabalhar para fortalecer a coesão interna do bloco, em que ainda se observam diferentes tipos de dificuldades para o comércio e a integração, aprofundar sua inserção comercial internacional e articular mecanismos que favoreçam a formação de cadeias de valor regional e inter-regionais sustentáveis, justas e resilientes, para converter o Mercosul em uma poderosa plataforma produtiva geradora de emprego digno e inclusivo, utilizando as oportunidades que a transição energética, a digitalização e a disponibilidade de talentos oferecem para o desenvolvimento econômico e social do bloco em seu conjunto”.
Como fazer para cumprir esse compromisso? Em primeiro lugar, Lula deveria deixar o discurso ideológico de lado e focar no que interessa ao pais. O Brasil, agora como coordenador do Mercosul, poderia dar cumprimento ao que está previsto no Protocolo de Ouro Preto em seu artigo 47 e convocar a Conferência Diplomática para examinar o funcionamento do Bloco. Nos 32 anos de existência, nunca esse recurso expressamente previsto para situações como a que o subgrupo está passando, foi invocado.
O governo Lula será lembrado como aquele que tomou a providência cabível no momento da dificuldade interna e que evitou o desmoronamento dessa construção politica e estratégica cuja principal beneficiário tende a ser o Brasil. A ameaça de saída do Uruguai é pouco provável que venha a se materializar, mas é importante que todos os quatro membros estejam alinhados e busquem avanços no processo de integração.
*Rubens Barbosa foi embaixador do Brasil em Londres e em Washington, DC., é diplomata, presidente do Instituto Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e coordenador editorial da Interesse Nacional.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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