Lula e o fim dos princípios ideológicos na política externa brasileira
Sucesso nos primeiros mandatos do presidente, a tentativa de liderar a região tem sido um desafio para Lula por conta da mudança nos contextos da América do Sul. Para professor, a nostalgia da solidariedade de esquerda está colocando em risco o interesse nacional brasileiro
Sucesso nos primeiros mandatos do presidente, a tentativa de liderar a região tem sido um desafio para Lula por conta da mudança nos contextos da América do Sul. Para professor, a nostalgia da solidariedade de esquerda está colocando em risco o interesse nacional brasileiro
Por Sean Burges*
Uma das características da bem-sucedida política externa regional do Brasil de 2003 a 2014 foi a liderança ativa do país a partir de uma posição fundamentada em princípios fortes, muitos dos quais Luiz Inácio Lula da Silva delineou em seu discurso de 2003 na Assembleia Geral das Nações Unidas. Apesar do disfarce de respeito à soberania, o Brasil foi extremamente intervencionista nos países da região e frequentemente fez declarações enérgicas para manter alguns de seus vizinhos no caminho da institucionalidade democrática – basta perguntar a quase qualquer político no Paraguai sobre as contínuas intervenções e proclamações do Brasil.
Independentemente do cinismo aparente de algumas intervenções regionais sob o PT, o tema subjacente era o apoio a governos genuinamente interessados no bem-estar de seu povo. Isso foi relativamente fácil nos anos 2000, quando a pressão dos pares, menos de uma geração após a era autoritária, trabalhou para manter as formas de democracia. Mais significativamente para o Brasil, essa abordagem também evitou a necessidade de se envolver de forma confusa nos assuntos internos dos países vizinhos.
Infelizmente para o terceiro mandato de Lula, a situação mudou. As reivindicações de liderança regional e de liderança global no clima exigirão uma abordagem mais controversa para países parceiros importantes, especialmente a Venezuela. O tipo de criminalidade e instabilidade propagada pelo presidente venezuelano Nicolás Maduro representa três ameaças diretas aos interesses brasileiros que não podem ser ignoradas com boas lembranças da ‘Onda Rosa’.
Em primeiro lugar, o regime de Maduro representa uma séria ameaça à instabilidade regional. Os tipos de fluxos maciços de migração regional vistos na Venezuela – mais de seis milhões de pessoas, ou 20% da população – tiveram impactos deletérios do Chile até a fronteira mexicana com os EUA, sem mencionar os estados do noroeste do Brasil. Embora essa crise pareça ter passado pelo pior, um novo colapso na Venezuela poderia facilmente desencadear novas ondas de migração. Somando-se a esse risco latente está a nova ameaça de uma guerra venezuelana com a Guiana. Isso inevitavelmente traria uma intervenção direta e massiva dos EUA e do Reino Unido, incluindo as bases militares estrangeiras permanentes na região amazônica, tão temidas pelas Forças Armadas brasileiras.
Em segundo lugar, o Brasil pretende ser um líder global na preservação ambiental e no manejo das florestas tropicais. Mesmo que Lula consiga colocar situação doméstica da Amazônia em ordem, as atividades ilegais de mineração e exploração florestal na Venezuela tornarão piada as reivindicações de liderança internacional. Embora vasta, a Amazônia é um ecossistema integrado e o tipo de abordagem coordenada que o Brasil apregoou em 2023 não será possível se um dos principais guardiões da floresta não conseguir ou não quiser controlar seu território.
Em terceiro lugar, talvez o maior risco para a estabilidade regional seja o aumento da força e da abertura de redes criminosas transnacionais, particularmente aquelas ligadas à produção e ao trânsito de narcóticos. Em sua desesperança, Maduro tornou a gestão da indústria de cocaína um elemento central de sua manutenção no poder. Eventos recentes no Equador deveriam ter lembrado Lula sobre a seriedade dessa ameaça, talvez refrescando sua memória sobre a tomada de espaços urbanos pelo Primeiro Comando da Capital em São Paulo e pelo Comando Vermelho no Rio de Janeiro em 2006. Quão piores as coisas ficarão se um país importante como a Venezuela se tornar um estado completamente dominado pelo narcotráfico?
Consequentemente, o governo de Maduro na Venezuela está criando um grande desafio de política externa regional para Lula.
Apesar de todos os seus defeitos, Chávez, como Lula, realmente buscava uma vida melhor para os cidadãos marginalizados de seu país. Apesar de ser significativamente menos paciente com obstáculos institucionais e vozes dissidentes do que seu homólogo brasileiro, Chávez, mesmo assim, aceitou grandes derrotas nas urnas e o povo venezuelano teve uma voz muito real na governança de seu país.
Nicolás Maduro é uma criatura significativamente diferente de seu antecessor. Enquanto Chávez buscava limitar a oposição em nome da igualdade política para os que não são da elite, Maduro descartou completamente esse pretexto. Onde Chávez alegava uma abordagem de “o Estado é você”, para o povo, a postura de Maduro está muito mais próxima do “o Estado sou eu” que levou à Revolução Francesa.
De fato, o medo da revolução e do levante das massas impulsionou o aumento da criminalidade do Estado e a repressão política na Venezuela. A resposta de Lula foi chocante: “a democracia é relativa” e a Venezuela “tem mais eleições do que o Brasil”. Em contraste, os presidentes dos três outros membros fundadores do Mercosul, assim como o Equador, adotaram posturas muito mais enérgicas, condenando recentemente a proibição de Maduro à candidatura presidencial de María Corina Machado e expressando preocupações sobre o colapso na Venezuela.
Lula e seu principal conselheiro de política externa, Celso Amorim, parecem estar vendo a região com os mesmos óculos “Onda Rosa” que usavam de 2003 a 2010. Sua nostalgia pelos dias animados de solidariedade de esquerda está se combinando com uma contínua falta de vontade de se envolver ativamente com o negócio prático da liderança, comprometendo os recursos reais com a tarefa, o que, por sua vez, está colocando em risco o interesse nacional brasileiro.
Embora a ideia de o Brasil invadir a Venezuela ou apoiar qualquer outro ator inclinado a fazê-lo seja obviamente ridícula, o continuado mimar de Maduro é igualmente insensato. A liderança para proteger os próprios interesses e o bem maior coletivo regional requer tomar decisões e, às vezes, ações que podem ser vistas como objetáveis.
A chave para ser bem-sucedido com as intervenções externas que acompanham a liderança real é fundamentar as ações em princípios claros e éticos, como a abordagem crítica da governança democrática. Lula, Amorim e o PT fizeram um trabalho bastante bom disso de 2003 a 2014. Infelizmente, Lula e Amorim, o par, parecem estar fracassando espetacularmente hoje. O risco é que sejam os pobres da Venezuela e do Brasil que pagarão o preço.
*Sean Burges é colunista da Interesse Nacional e professor de estudos globais e internacionais na Carleton University. É autor dos livros ‘Brazil in the World’ e ‘Brazilian Foreign Policy After the Cold War’.
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sean Burges é colunista da Interesse Nacional e professor de estudos globais e internacionais na Carleton University. É autor dos livros ‘Brazil in the World’ e ‘Brazilian Foreign Policy After the Cold War’.
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