A guerra Hamas-Israel poderá gerar a Solução de Dois Estados?
Após mais de sete décadas de tentativas frustradas, a solução de dois Estados parece ter chances maiores que o retrocesso político e a insurgência armada. Para diplomata, assim poderá desaparecer o carma histórico da guerra parteira da paz e semente de conflito futuro
Após mais de sete décadas de tentativas frustradas, a solução de dois Estados parece ter chances maiores que o retrocesso político e a insurgência armada. Para diplomata, assim poderá desaparecer o carma histórico da guerra parteira da paz e semente de conflito futuro
Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*
Desde a partilha da Palestina, aprovada em 1947 pela Assembleia Geral da ONU, os avanços para a criação de um Estado palestino só ocorreram após guerras entre árabes e israelenses, com o envolvimento das superpotências. Essa história trágica, responsável por milhares de mortes, poderá se repetir em 2024. Há uma luz no fundo desse túnel de sangue que é a guerra Hamas x Israel – um acordo de paz. Mas dois grandes adversários precisarão ser neutralizados – a extrema-direita israelense e a militância terrorista do Hamas e do Hezbollah. Além da comunidade internacional, dois países poderão exercer forte pressão nesse sentido – EUA sobre Israel, Irã sobre os movimentos armados. Será possível trilhar essa estrada minada?
A tentativa da ONU de criar dois Estados, com a partilha da Palestina pela Resolução 181 da AGNU, foi rejeitada pelos países árabes, opositores da existência de Israel. A consequência foi a Guerra de Independência de 1948 e a criação do Estado de Israel, que ampliou seu território para 79% da Palestina histórica e provocou o êxodo de milhões de palestinos refugiados então nos vizinhos árabes. Os anos 1950 foram marcados pela nacionalização do Canal de Suez, pelo carismático líder egípcio Nasser, o que provocou a invasão do país por tropas israelenses, francesas e inglesas. A chamada Guerra de Suez de 1956 terminou com a intervenção da ONU, o fim da invasão e a transformação de Nasser no inconteste líder do pan-arabismo. Foi o primeiro exemplo do padrão das relações árabes-israelenses – a guerra parteira da paz e semente de conflito futuro.
O pan-arabismo tinha como bandeiras a união dos países árabes, a justiça social e o fim do Estado de Israel. Esse último propósito estimulou o forte armamentismo do Egito e da Síria – uma ameaça existencial a Israel. A resposta israelense veio em 1967, com a fulminante Guerra dos Seis Dias, que significou ruína militar, humilhação política para o mundo árabe e expansionismo territorial israelense (anexação de Península do Sinai, Colinas do Golã, Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental).
Após o conflito, a Resolução 242, aprovada por unanimidade no Conselho de Segurança da ONU em 1967, visava estabelecer uma paz justa, duradoura e incluir a retirada de Israel dos territórios ocupados. Mas a interpretação israelense e norte-americana foi a de que forças de Israel poderiam permanecer nos territórios ocupados até a conclusão de tratados de paz, que nunca foram concluídos.
A ruína militar e humilhação política dos países árabes, somada à ineficácia da Resolução 242, provocou um oneroso troco seis anos depois – a Guerra do Yom Kippur de 1973. A ampla supremacia inicial da força aérea do Egito e da Síria foi seguida de poderosa contraofensiva das Forças de Defesa Israelenses (FDI). EUA e União Soviética chegaram perto de envolvimento direto, e o desfecho revelou uma guerra sem claro vencedor, mas com uma nova mensagem – Israel não era mais uma potência inexpugnável.
As negociações de paz posteriores ao conflito, com o protagonismo de Kissinger, culminaram nos Acordos de Camp David de 1978 – devolução da Península do Sinai para o Egito, em troca de seu reconhecimento do Estado israelense. Esses esforços de paz continuaram com os Acordos de Oslo de 1993 e de 1995. Os primeiros previam a retirada das FDI da Faixa de Gaza, da Cisjordânia e asseguravam o direito dos palestinos ao autogoverno nas zonas sob a Autoridade Palestina. Os segundos, com a mediação de Clinton, focalizavam o status da Faixa de Gaza, da Cisjordânia, e foram firmados por Rabin e Arafat, agraciados então com o Prêmio Nobel da Paz.
Como visto, a ineficácia da Resolução 242 do CSNU – pós-Guerra dos Seis Dias – alimentou o sentimento de revanche árabe e culminou na Guerra do Yom Kippur. De forma análoga, a maratona negociadora intermediada por Clinton, entre Ehud Barak e Arafat, foi recusada por esse último na undécima hora, e acirrou a violência da segunda Intifada, no ano 2000. Essa circunstância, aliada à total falta de compromisso dos governos Bush e Sharon com o processo de paz, impediu a implementação dos Acordos de Oslo. A rebelião (significado de Intifada) vencia a negociação. Cinco anos mais tarde, Sharon decretava a retirada permanente de Israel da Faixa de Gaza. Estava aberto o caminho para o fortalecimento do Hamas, sua vitória nas eleições de 2007, e para o enfraquecimento do moderado Fatah e da Autoridade Palestina. Uma vez mais, prevalecia o padrão guerra parteira da paz e semente de conflito futuro.
Exatos 50 anos após a tragédia no feriado do Yom Kippur, o Hamas dava início à barbárie – o mais devastador ataque a Israel desde então, com a morte de 1.200 civis, a tomada de 240 reféns e atrocidades com mulheres e crianças filmadas pelos próprios executores. Com dois meses de duração, a guerra Hamas-Israel vem sendo palco de outra barbárie, perpetrada pelas FDI – a destruição de mais de cem mil prédios e a morte de mais de 18 mil civis, correspondentes a 1% da população total da Faixa de Gaza.
Que desfecho poderá emergir dessa dupla barbárie? Deverá prevalecer o padrão guerra parteira da paz e semente de conflito futuro? O abandono desse carma histórico exige a solução de dois Estados, um judeu ao lado de um palestino. Mas para alcançá-la será necessário superar o imenso desafio de neutralizar tanto a extrema-direita israelense, como o terrorismo do Hamas e do Hezbollah financiado pelo Irã. Será possível? Analistas liberais, como Thomas Friedman, Fareed Zakariah, Yuval Harari, respondem sim. Historiadores anticoloniais, como Norman Finkelstein, ou realistas, como John Mearsheimer, respondem não.
Os processos de paz anteriores fracassaram em adotar a solução de dois Estados. A Resolução 181, de 1947, fracassou porque os Estados árabes consideraram injusta a partilha de 53% da Palestina histórica para Israel e 47% para os palestinos, mas sobretudo porque consideraram fácil derrotar um recém-nascido Israel. A Resolução 242, de 1967, não saiu do papel pela intransigência israelense em ceder territórios conquistados, diante do armamentismo egípcio e do pan-arabismo que pregava a destruição do Estado de Israel. Os acordos de Camp David e de Oslo não vingaram, tanto pela reviravolta na posição da OLP de Arafat, que ao final rejeitou esses últimos acordos, como pelo subsequente desprezo pela paz de Bush e Sharon. Essa trajetória de fracassos da solução de dois Estados poderá ser superada?
Na guerra atual, as FDI não abrem mão do objetivo de aniquilar o Hamas como condição para o cessar-fogo. Sua estratégia inicial, de ataques aéreos amplos, nos moldes de blitzkrieg, foi substituída pela atual guerra urbana, com alvos militares específicos – quartéis e túneis -, além de escolas e hospitais utilizados pelo Hamas como escudo humano. Há indícios de que a infraestrutura militar e a capacidade ofensiva do Hamas sofreram sérios danos. Mas essas vantagens das FDI são contrabalançadas pelo forte impacto das atrocidades sobre a opinião pública mundial e norte-americana, especialmente em ano eleitoral. Vitórias militares sobre o Hamas têm custo elevado, crescente e insustentável por muito tempo.
Diante desse quadro, prevalece o diagnóstico de que o Hamas militar pode estar perto do fim, mas o Hamas como ideia, não. O custo de prolongar a captura dos reféns é alto para o Hamas, mas também para as FDI, pressionadas pela sociedade israelense. Ademais, os EUA têm pressionado crescentemente Israel para ampliar as tréguas humanitárias e reduzir as vítimas civis, mas Biden não pode se colocar contra Israel em um ano eleitoral e com desvantagens em relação a seu opositor. Por sua vez, o Irã prefere usar seus proxies e foge de qualquer envolvimento direto no conflito para evitar imprevisível represália israelense. Teerã tem amplo controle sobre as ações do Hezbollah, mas muito menos influência sobre o Hamas. Esse começa a exibir graves clivagens internas em função das pesadas perdas anteriores no norte de Gaza e das atuais, no Sul, o que fragiliza os radicais.
Essas tendências podem ser indícios de que a guerra esteja próxima do fim. Em tal cenário, a questão fundamental que divide jornalistas, historiadores e cientistas políticos é a viabilidade da solução de dois Estados.
John Mearsheimer, reconhecido como o papa do realismo político nas relações internacionais, não vê qualquer qualquer chance para a solução de dois Estados. Na sua visão, Israel vive um apartheid, e o governo aspira a uma limpeza étnica. Esses dois fatores, associados ao crescente ódio a Israel resultante da devastação da guerra para os palestinos, fragiliza a desacreditada Autoridade Palestina e, assim, inviabilizará o apoio popular àquela solução. Norman Finkelstein, historiador israelense com uma leitura anticolonial do conflito, vai na mesma direção. Órgãos da imprensa próximos dessa visão, como Le Monde Diplomatique, pensam de forma semelhante.
Em contraste, veículos influentes da mídia ocidental, como The Economist, Financial Times, a revista Foreign Affairs, bem comoacadêmicos e cientistas políticos liberais, como Fareed Zakariah e Thomas Friedman admitem que os ataques aéreos devastadores sobre a população civil, somados ao avanço exponencial dos assentamentos na Cisjordânia (600 mil colonos nos últimos dois anos), à ocupação ilegal de Jerusalém Oriental condenada pela ONU, cristalizam o ódio, o ressentimento anti-israelense e, assim, bloqueiam o avanço das negociações. Nesse contexto, a queda quase certa de Netanyahu e a derrota eleitoral de Trump são condições necessárias para a retomada do processo de paz.
Apesar desses imensos obstáculos e indefinições, analistas e a mídia liberal sustentam que a alternativa de dois Estados é a única saída capaz de produzir uma paz duradoura e sustentável. Argumentam que as atrocidades mútuas foram tão bárbaras que democratas israelenses, EUA, países árabes e a comunidade internacional deverão estar empenhados em evitar nova hecatombe.
A recente normalização das relações entre Israel e Estados árabes, abortada pela guerra, poderá ser retomada, ainda que de forma muito lenta e gradual. A viabilidade econômica e política de um futuro Estado palestino dependerá não só da superação dos obstáculos acima, mas igualmente de vultosas inversões e financiamentos árabes, norte-americanos e europeus, além de robusto apoio a novas lideranças do Fatah e da desacreditada Autoridade Palestina.
Esse amplo apoio regional e internacional poderá prevalecer e neutralizar as pressões da extrema-direita israelense e os ataques dos proxies iranianos. Finalmente, após mais de sete décadas de tentativas frustradas, a solução de dois Estados parece ter chances maiores que o retrocesso político e a insurgência armada. Assim, poderá desaparecer o carma histórico da guerra parteira da paz e semente de conflito futuro.
*Sergio Abreu e Lima Florêncio é diplomata, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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