Sergio Abreu e Lima Florêncio: Mudanças e desafios da política externa de Lula
Política externa do novo governo deverá resgatar o padrão exitoso do passado em relação ao meio ambiente, aos direitos humanos e à integração regional. Para diplomata, entretanto, vai enfrentar também sérios desafios e riscos da nova ordem internacional, especialmente nas relações com EUA e China, que exigirão revisão
Política externa do novo governo deverá resgatar o padrão exitoso do passado em relação ao meio ambiente, aos direitos humanos e à integração regional. Para diplomata, entretanto, vai enfrentar também sérios desafios e riscos da nova ordem internacional, especialmente nas relações com EUA e China, que exigirão revisão
Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*
A política externa do novo governo Lula deverá ter duas grandes marcas: importantes mudanças e difíceis desafios. As mudanças terão o propósito de desmontar a desastrosa ação externa do presidente Jair Bolsonaro. Os desafios derivam do imperativo de atualizar nossa política externa, para responder de forma efetiva à nova ordem internacional. Fenômenos ausentes 20 anos atrás representam as digitais do mundo de hoje: perda de dinamismo da globalização; tensão político-militar EUA-China; e abalos geopolíticos agravados pela invasão da Ucrânia. Como promover as mudanças? Como enfrentar os desafios?
A política externa de Bolsonaro provocou ampla rejeição, de magnitude inédita, no plano doméstico e internacional. Ele próprio declarou, no início do governo, que o primordial era destruir. Isso ficou mais estampado em três campos: meio ambiente, direitos humanos e integração regional.
No meio ambiente a destruição foi imensa, e o resgate institucional será vigoroso em instituições de peso, tais como Ibama, ICMBIO, Funai, Inpe, vítimas de perseguição de funcionários e desmonte de atribuições.
Com relação ao desmatamento, deverá ser retomada a queda (67,3% com Lula) e revertido o aumento (73% com Bolsonaro). Será robusto o combate à mineração ilegal, ao contrabando de espécies e à violação dos direitos dos povos indígenas. O Brasil deverá sediar a próxima COP, em 2025, em contraste com a recusa de aqui acolher a COP 25, em 2019.
Desde a redemocratização, o Brasil é prestigiado pela promoção dos direitos humanos. No Conselho de Direitos Humanos, figuramos entre os países que mais defendem igualdade de gênero, orientação sexual, liberdade de expressão e pluralismo político. No governo Bolsonaro essa trajetória foi tragicamente interrompida, e nosso país passou a se opor àqueles princípios. O governo Lula deverá resgatar o leito normal que pautou nossa política externa desde a redemocratização.
A integração da América Latina, princípio consagrado no Artigo 4º da Constituição, é um dos pilares de nossa política externa. A partir de 1991, ganhou concretude com a formação do Mercosul, que demonstrou forte dinamismo ao longo da primeira década, quando o comércio no interior do bloco se multiplicou por quatro. Os graves desequilíbrios de política econômica da região impediram uma evolução dinâmica.
No governo Bolsonaro, o Brasil ameaçou abandonar a Tarifa Externa Comum (TEC) e desrespeitou compromissos básicos desse processo de integração. Em contraste, o presidente Lula deverá retomar a prioridade atribuída ao Mercosul, à Unasu e à Celac. Com relação aos dois últimos processos, é recomendável que o atual governo Lula adote uma estratégia mais pragmática do que a prevalecente nos mandatos anteriores.
O Brasil e a nova ordem internacional
As mudanças a serem introduzidas nas três áreas indicadas exigirão muito esforço, mas a dificuldade maior de nossa política externa residirá no que chamamos anteriormente de desafios, ou seja, adaptação a uma nova ordem internacional.
Essa adaptação deverá manter os paradigmas de autonomia e desenvolvimento da PEB, mas o perfil de nosso relacionamento com as duas superpotências precisará ser alterado. O mundo do início dos anos 2000 refletia relativa normalidade entre EUA e China: prosperidade econômica mútua; expansão da globalização; e avanço nas democracias representativas.
A realidade mais recente transformou benefícios em desvantagens e avanços em retrocessos. O excepcional crescimento econômico chinês se fez acompanhar de expansão apenas medíocre de EUA e União Europeia. Enquanto no passado a fábrica chinesa contribuía para reduzir a inflação nos EUA, mais tarde passou a agravar o desemprego. O avanço tecnológico da China, alicerçado em empresas multinacionais lá instaladas, passou a comprometer a hegemonia dos EUA em áreas estratégicas. As tensões avançaram para o terreno geopolítico, agravadas pela invasão da Ucrânia, que deu mais densidade à ameaça potencial sobre Taiwan.
Nesse novo cenário, em que China e EUA surgem como adversários econômicos e inimigos geopolíticos, o Brasil precisará rever sua política. No passado era possível ampliar o cenário de divergências com os EUA, como no episódio da reação de Dilma à espionagem da NSA no Brasil. Nos dias de hoje, posturas como essa, ou como a iniciativa turco-brasileira para equacionar o programa nuclear iraniano, deverão produzir saldo negativo.
Em síntese, a política externa de Lula em meio ambiente, direitos humanos e integração deverá resgatar o padrão exitoso do passado. Mas os desafios no nosso relacionamento com EUA e China exigirão revisão. Padrões justificáveis no passado poderão transformar-se em riscos a serem evitados no futuro. Ficar no mesmo lugar no mundo em movimento significa retrocesso.
* Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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