Multipolaridade, não-alinhamento e a política externa brasileira
Guerra na Ucrânia criou uma fratura entre EUA-UE-Otan versus Rússia-China e abriu espaço para o Sul Global reeditar o modelo do não-alinhamento vigente na Guerra Fria. Para embaixador, postura do Brasil tem dupla desvantagem pela ambiguidade entre votações na ONU e declarações presidenciais e pelo distanciamento em relação aos países com perfil próximo ao seu que evitam escolher um lado no conflito
Guerra na Ucrânia criou uma fratura entre EUA-UE-Otan versus Rússia-China e abriu espaço para o Sul Global reeditar o modelo do não-alinhamento vigente na Guerra Fria. Para embaixador, postura do Brasil tem dupla desvantagem pela ambiguidade entre votações na ONU e declarações presidenciais e pelo distanciamento em relação aos países com perfil próximo ao seu que evitam escolher um lado no conflito
Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*
A Rússia é uma superpotência dado o seu arsenal nuclear, mas perdeu muito poder e influência com a invasão da Ucrânia. A guerra parece alimentar uma fratura Leste-Oeste, criar um mundo multipolar e reeditar o não-alinhamento com novo formato. A decisão desastrada de Putin produziu dezenas de milhares de perdas humanas para o país, parcas conquistas territoriais contestadas no plano internacional, fratura na hierarquia provocada pelo grupo mercenário Wagner, isolamento em relação à União Europeia, hostilidade da Otan, dificuldades internas com as sanções econômicas, e elevada dependência da China.
Essas consequências da guerra selaram uma aliança sino-russa com intensidade pouco imaginada antes do conflito. Para a Rússia de Putin – saudosa do poder da União Soviética e ressentida pela perda de influência internacional – a guerra simbolizaria um movimento rumo à revolução em uma ordem internacional que lhe era desfavorável.
Em contraste, a China de Xi Jinping, prestes a se tornar a primeira economia do mundo, prefere a reforma do sistema internacional que lhe abriu espaço para notável crescimento econômico, para influência geopolítica global e a projetou como superpotência. Embora tenha emprestado apoio a Putin durante o encontro que tiveram, pouco antes da invasão russa, Xi Jinping raciocinava com um conflito rápido e sem grandes reações do Ocidente, como ocorreu na ocupação da Crimeia em 2014 e da Georgia em 2018.
A resiliência do governo e da população ucraniana, além da coesão dos países da União Europeia, e da reação unificada da Otan prolongaram o conflito, revelaram a fragilidade russa de conduzir uma guerra convencional e contribuíram para moldar a aliança sino-russa.
O teatro da guerra não produziu até agora sinalização clara de vitória de qualquer dos lados. No início do conflito, a China procurava manter-se equidistante entre Ocidente e Rússia, posição que assegurava benefícios sem custos. Entretanto, o nível de destruição gerado pelo conflito, em termos humanos e materiais, passou a exigir crescente fornecimento de equipamentos de países da Otan e recursos tecnológicos avançados por parte não só dos EUA mas até mesmo da Alemanha.
A decisão de Suécia e Finlândia, com tradição histórica de neutralidade, de aderirem à Otan refletiu a convicção de que a Rússia de Putin nutre ambições imperiais. Essa mesma convicção – partilhada pelos países do Báltico, Polônia e parte da Europa Central e Oriental – consolida a visão de uma Europa mais unida versus uma Rússia isolada e hostilizada no continente.
Paralelamente a esse contexto, se agravava a tensão EUA-China, em torno na questão de Taiwan e de exercícios militares de ambas as partes destinados a firmar posição na hipótese, ainda distante, de uma investida militar chinesa em direção à ilha, nos moldes da Rússia na Ucrânia. Para os EUA, era perigoso o envolvimento em dois teatros de guerra (Ucrânia e Taiwan), e para a China, o risco de uma aventura militar sobre Taiwan tomar o rumo da Ucrânia era igualmente arriscado.
Se nas primeiras fases do conflito não convinha à China uma posição claramente antiocidental, com o seu prolongamento, começou a se desenhar um cenário mundial mais claramente dividido.
Antes da guerra na Ucrânia, havia rivalidade entre as superpotências, e a China exibia a retórica de uma nova ordem internacional, mas era apenas uma superpotência reformista contra outra conservadora. O conflito ucraniano produziu a chamada “amizade ilimitada” com a Rússia e abriu espaço para o surgimento de uma nova modalidade de não-alinhamento no âmbito do Sul Global.
Assim, esse novo cenário que apenas começa a se desenhar deu à China a possibilidade de defender a Rússia sem ficar isolada no mundo, pois passa a contar com uma espécie de “apoio não-alinhado” do Sul Global, ou seja, algo comparável à inclinação pró soviética do Movimento Não-Alinhado da Guerra Fria. A diferença entre os dois formatos de não-alinhamento é que o atual, como argumenta Matias Spektor, não constitui um “movimento”, mas iniciativas nacionais, protagonizadas por major countries do Sul Global.
Esse novo cenário é visto de diferentes óticas. Para alguns, é fruto do declínio norte-americano e da ascensão chinesa, que conformariam a Armadilha de Tucídides, em que a China ascendente passou a desafiar os EUA, como Esparta desafiou Atenas, como a Alemanha desafiou a Grã-Bretanha.
Para outros, usar aquela Armadilha para explicar o mundo de hoje lembra a conhecida constatação: “Para todo problema complexo existe sempre uma solução fácil, e errada”. Isso porque a rivalidade entre as duas superpotências abre espaço (inexistente na Grécia de Tucídides) para posições intermediárias já muito influentes no Sul Global. Refratários àquela visão binária, esses países procuram reeditar o não-alinhamento, mas com o formato diferenciado acima descrito.
Três exemplos paradigmáticos desse novo não alinhamento – Índia, Turquia e Indonésia – são analisados no recente artigo In defense of the fence sitters, de Spektor. Afirma que o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, desenvolve fortes laços diplomáticos e vínculos comerciais simultaneamente com China, Rússia e EUA, o que corresponde, na visão do líder indiano, a uma verdadeira apólice de seguro (hedge). Isso porque, na hipótese de conflito entre as grandes potências, a Índia poderá se alinhar com a mais poderosa, ou ao integrar uma coalisão de Estados mais fracos para conter o mais forte.
Postura semelhante exibe Recep Erdogan. Manifestou publicamente seu apoio à integridade territorial da Ucrânia, mas evitou ser tragado para dentro do conflito, muito embora a Turquia seja membro da Otan. O terceiro exemplo vem do primeiro-ministro da Indonésia, Joko Iododo, que corteja tanto investimentos chineses como de outros países avançados, sendo um dos poucos líderes, em 2022, a visitar Biden, Putin, Xi Jinping e Zelenski.
O não-alinhamento desses países é reação a um novo mundo multipolar, segundo Spektor. Em sua visão, isso configura uma oportunidade para os EUA, porque, nesses países “o povo está crescentemente engajado com o Ocidente” e as elites culturais e econômicas “pressionam por reformas progressistas que possam fornecer os pilares para a cooperação com o Ocidente”. Mas, para tanto, o Ocidente precisa “levar mais a sério as preocupações do Sul Global”.
No início deste artigo, ressaltamos que a guerra na Ucrânia criou uma fratura entre EUA-UE-Otan versus Rússia-China, tendo esse último país resistido a tomar partido. Mas o prolongamento do conflito foi abrindo espaço para que países mais influentes no Sul Global pudessem reeditar, com modulações, o modelo do não-alinhamento vigente na Guerra Fria. Isso foi desfazendo a imagem de uma Rússia isolada e de uma China com atuação solo, sem algum apoio. Nesse novo contexto, a China passou a ter a chance de contar com maior empatia de diversos dos países de menor desenvolvimento da África e da Ásia, altamente dependentes de financiamentos e investimentos chineses.
Onde fica o Brasil nesse mundo multipolar? A política externa brasileira revela padrão de votações institucionais (ONU) que tendem à neutralidade. Entretanto, no plano bilateral e na esfera da diplomacia presidencial, o país demonstra clara opção preferencial pela órbita sino-russa, apesar dos desmentidos. Assim, nossas posições implicam uma lamentável dupla desvantagem: a ambiguidade entre votações na ONU e declarações presidenciais e o distanciamento em relação aos países com perfil próximo do nosso e influentes no Sul Global – Índia, Turquia e Indonésia – que defendem e praticam o não-alinhamento.
*Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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