Trump, a América Latina e o Brasil
Mudança política nos EUA tende a deixar o Brasil fora do centro das atenções, mas pode criar pressões em relação ao Sul Global e à ideologia política doméstica. As forças democráticas brasileiras precisam estar preparadas para garantir a defesa da institucionalidade democrática em um cenário global mais complexo
Depois do que se provou ser uma eleição menos apertada do que era esperado, Donald Trump, o mestre da autopromoção e político condenado, conseguiu garantir sua volta à Presidência dos Estados Unidos. Sua eleição sinaliza que o conservadorismo moral, o fundamentalismo religioso, a xenofobia, o protecionismo econômico e o isolacionismo diplomático têm grande apelo, devendo assim ajudar a definir os rumos daquele país, com impactos ao redor do mundo.
Muito tem se especulado sobre o que o retorno de Trump promete para o Brasil e para a nossa região. Em primeiro lugar, seria importante lembrar que nossa região tem sempre uma relevância coadjuvante na política externa norte-americana, que tende a nos ver pelo prisma da política doméstica, senão mesmo do alto do seu muro fronteiriço sul.
Isso quer dizer que recebemos atenção, em geral, quando o contexto interno nos EUA é impactado, seja por fluxos migratórios fortes, como atualmente ocorre, seja pelo tráfico de drogas ou por crises políticas regionais.
Nesse sentido, me parece difícil pensar que o Brasil esteja na agenda principal do próximo mandatário da Casa Branca.
Uma mudança nessa trajetória dependerá, pois, da continuidade ou da ocorrência de novas crises, assim como de quem Trump indicará para o Departamento de Estado, para o cargo de Conselheiro de Segurança Nacional, ou simplesmente quem conseguir assessorá-lo, mesmo que informalmente, em assuntos hemisféricos.
Se essa pessoa tiver uma visão mais ideológica, como o Senador Marco Rubio, por exemplo, a relevância de países regionais, especialmente Cuba, Venezuela, e Nicarágua, aumentará. Dessa vez, em um sentido bastante negativo, ou seja, como problemas a serem resolvidos, certamente por meio de uma postura ainda mais dura para com tais vizinhos.
Outro país que certamente terá centralidade será o México, grande vizinho ao sul, e de onde os fluxos migratórios regionais quase sempre passam, e que terá que decidir como se relacionar com um Trump ainda mais obcecado por uma atitude militarista de controle fronteiriço.
El Salvador e Argentina poderão atrair favores de Trump, mas dificilmente por meio de ações estratégicas de grande porte.
E como fica o Brasil dentro de tudo isso? Embora tenha dito que o Brasil, em princípio, não estaria na agenda central do novo governo Trump, tal cenário se altera um pouco ao considerarmos dois elementos centrais. No âmbito diplomático, o papel do Brasil na articulação diplomática crítica em curso ao redor do chamado Sul Global, e, no âmbito doméstico, a afinidade ideológica e pessoal e familiar entre Trump e Bolsonaro.
Como as duas maiores economias do hemisfério, é difícil imaginar que haveria algum tipo de rompimento formal bilateral entre países cujo relacionamento diplomático remonta exatamente dois séculos.
É certo que não há entre Lula e Trump nenhum tipo de interesse no estabelecimento de parcerias estratégicas. Ainda assim, na medida em que o Brasil se aproxima cada vez mais tanto do mercado chinês, como de blocos multilaterais alternativos, como o Brics, seria estranho que os EUA não viessem a se interessar em monitorar, talvez mesmo reverter, tais tendências.
De maneira especial, tecnologias estratégicas, como 5G, têm se tornado uma área de crescente disputa entre China e EUA, onde o mercado brasiliero tem assumido grande relevância.
É de se presumir, portanto, que haverá maiores pressões de Washington para garantir um alinhamento maior do Brasil nesse, como em outros temas, tais como cooperação militar e alinhamento diplomático.
Se o Brasil saberá, ou não, se valer de tais disputas para alavancar a defesa de seus interesses é algo ainda a ser visto. De todo modo, será cada vez mais complicado navegar os rumos de um mundo cada vez mais dividido e conflituoso.
Ainda assim, cabe lembrar que Trump tenderá a ter um governo menos ideológico que talvez veja o Brics não necessariamente como um ator antagônico e que, assim, talvez o Brasil consiga se distanciar da narrativa crescente de antiocidentalismo do Sul.
Claro que há também um cenário bastante mais pessimista, onde um alinhamento entre assessores diretos de Trump e líderes do bolsonarismo possa vir a assumir centralidade, especialmente no sentido de construir uma falsa narrativa de que haveria no Brasil um governo autoritário que persegue a oposição.
Tudo articulado para promover uma anistia aos insurgentes do 8 de janeiro, assim como, para articular um movimento de deslegitimação do governo Lula, talvez mesmo rumo a tentativa de alinhavar um novo processo de golpe parlamentar.
Não vejo tal cenário como o mais provável, talvez mesmo possível. Mas, a se considerar o ineditismo da reeleição de Trump, após tudo que houve nos últimos anos nos EUA, e especialmente o grau de fundamentalismo ideológico e revanchismo político do próximo governo e presidente norte-americano, respectivamente, seria importante que as forças democráticas brasileiras estejam preparadas para garantir a defesa da institucionalidade democrática no seu país dentro de um cenário regional e global mais complexo e desafiador.
Rafael R. Ioris é professor de história latino-americana no Departamento de História da Universidade de Denver. É pesquisador do Instituto de Estudos dos Estados Unidos no Brasil e autor de vários artigos e capítulos de livros sobre a história do desenvolvimento no Brasil e em outras partes da América Latina e sobre o curso das relações EUA-América Latina, particularmente durante a Guerra Fria. Autor de livros como Qual desenvolvimento? Os debates, sentidos e lições da era desenvolvimentista, Transforming Brazil: A history of national development in the postwar era. É non-resident fellow do Washington Brazil Office, em DC.
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