Trump e os Paralelos Históricos
Presidente americano adota um protecionismo agressivo, elevando tarifas até contra aliados, o que gera retaliações e instabilidade econômica. Seu alinhamento com líderes autoritários e a política externa baseada em might is right fragilizam a ordem liberal internacional. O paralelo com o Tratado de Versalhes e as tarifas Smoot-Hawley sugere que essa estratégia pode levar a uma guerra comercial global e aprofundar a crise econômica

“A burocracia não tem natureza, tem história” (Guerreiro Ramos)
“Uma coisa é clara: nossas instituições não salvarão a democracia. Temos que salvá-la nó mesmos” (Stephen Levitsky e Daniel Ziblatt)
O mundo vive o alvorecer de uma nova ordem internacional, de contornos ainda indefinidos. A China – o próspero parceiro de uma globalização que beneficiava o mundo até os anos 2000 – transformou-se no rival econômico e no inimigo geopolítico dos EUA. A invasão russa da Ucrânia potencializou a bipolaridade EUA-União Europeia versus China-Rússia. Esse quadro tem como desenho: China em expansão econômica e política no mundo e junto ao Sul Global; EUA com influência geopolítica declinante; e União Europeia ameaçada pelo crescimento das democracias iliberais.
De volta ao poder em janeiro de 2025, Trump anunciou o rápido fim das guerras, tanto no Oriente Médio – entre Israel e Hamas, como na Europa – entre Rússia e Ucrânia. Baseado no modelo might is right, Trump defende os regimes autoritários tanto de Netanyahu como de Putin, e marginaliza a Palestina – sem um Estado, e a Ucrânia – vítima do agressor. O objetivo maior é se livrar de conflitos considerados periféricos e concentrar forças no inimigo maior – a China.
‘Trump transformou um instrumento de defesa comercial e de proteção de indústrias nascentes – tarifas – em arma destinada a impor ao mundo a hegemonia dos EUA’
Na esfera econômica, Trump transformou um instrumento de defesa comercial e de proteção de indústrias nascentes – tarifas – em arma destinada a impor ao mundo a hegemonia dos EUA nos mais diversos campos – econômico, político e estratégico. O anúncio de elevadas alíquotas tarifárias, tanto para países aliados como para adversários, surpreendeu o mundo. Em nítido divórcio entre política e economia, os maiores aliados dos EUA – Canadá e México – se transformaram nas maiores vítimas da arma tarifária.
A obsessão tarifária de Trump produziu previsíveis retaliações externas e forte oposição doméstica de setores prejudicados por um protecionismo anacrônico – no mundo das cadeias globais de valor –, e ineficaz – pela previsível incapacidade de induzir a propalada reindustrialização. O cenário provável, mas já in fieri, deverá moldar-se por indicadores negativos, tais como: alta na taxa de inflação; queda na taxa de crescimento econômico; declínio na produtividade do trabalho; fragilidade institucional; e insegurança jurídica.
‘No plano político, as fortes pressões dos setores mais prejudicados já levaram o governo Trump a voltar atrás em algumas ocasiões’
No plano político, as fortes pressões dos setores mais prejudicados já levaram o governo Trump a voltar atrás em algumas ocasiões. Movimento semelhante tem ocorrido no plano externo, onde as represálias dos parceiros comerciais de maior peso (Canadá e México) provocaram o adiamento das decisões tarifárias. Os mercados financeiros reagiram com forte queda nas bolsas de valores nos últimos dias, provocada não só pelo previsível comportamento negativo da economia, mas também pelo zigue-zague de decisões do Executivo norte-americano.
Para analisar esse cenário de incertezas, este artigo recorreu a dois paralelos históricos. O primeiro são as negociações prévias ao Tratado de Versalhes de 1919, tal como avaliadas por Keynes em As Consequências Econômicas da Paz. O segundo são as tarifas Smoot-Hawley, impostas por Herbert Hoover em 1930 e, em grande medida, responsáveis pelo declínio de 70% do comércio global dos EUA, pela onda protecionista que assolou a década de 1930 e que contribuiu para a II Grande Guerra.
Diante desse passado, vale ter presente a frase de Marx no Dezoito Brumário – a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda, como farsa.
O futuro da política econômica de Trump. Entre a tragédia e a farsa.
A política econômica de Trump abre cenários de grande incerteza, que vão da tragédia à farsa. O perfil psicológico do presidente – comunicador, jogador ou negociador – molda as indefinições. Essas se traduzem, nos dois primeiros meses de mandato, num zigue zague de decisões, tanto no comércio- elevação de alíquotas tarifárias para Canadá e México, mas seu imediato adiamento -, como na geopolítica – alinhamento com a Rússia, esboço de uma paz cartaginesa para a Ucrânia, mas seguida de críticas a Putin e de maiores sanções a Moscou.
No plano doméstico, uma grande incerteza está ligada às eleições para o Congresso dentro de dois anos. Essas poderão produzir reversão de muitos decretos executivos de Trump, caso o Partido Republicano perca a atual maioria na Câmara ou no Senado. Tal possibilidade não deve ser descartada, em função dos efeitos previsíveis da política tarifária de Trump, tais como aumento da taxa de inflação, queda de produtividade e redução do crescimento do PIB.
A esses indicadores macroeconômicos negativos deve somar-se a insatisfação concreta e já manifestada por setores relevantes do agronegócio (exportadores de soja) e da indústria automobilística (Ford). Esse quadro econômico deverá agravar os indicadores sociais e, assim, reduzir o apoio político ao presidente.
‘Um paralelo histórico natural é entre essa visão dos efeitos da política tarifária protecionista de Trump e o prognóstico de Keynes sobre as reparações de guerra cobradas da Alemanha na Conferência de Versalhes’
O cenário econômico e político acima descrito – potencialmente recessivo – é majoritário na academia, nos Think Tanks e na imprensa norte-americana. Assim, um paralelo histórico natural é entre essa visão dos efeitos da política tarifária protecionista de Trump e o prognóstico de Keynes sobre as reparações de guerra cobradas da Alemanha na Conferência de Versalhes, por ele condenadas no livro As Consequências Econômicas da Paz .
Os EUA de Trump II condenam paradigmas da democracia, violam princípios de direito internacional, investem contra instituições multilaterais (ONU, OMC, OTAN) e se afastam de aliados tradicionais (Canadá, México, União Europeia). Esse padrão de comportamento fragiliza o sistema internacional baseado em regras e, assim, contribui para o declínio da ordem democrática liberal do pós-guerra.
‘Caso a política tarifária de Trump se consolide e a escalada de represálias se agigante, o mundo caminhará para uma guerra comercial ampla, e a história se repetirá como tragédia’
Caso a política tarifária de Trump se consolide e a escalada de represálias se agigante, o mundo caminhará para uma guerra comercial ampla, e a história se repetirá como tragédia, conforme previsto no 18 Brumário. Na hipótese de uma reação norte-americana robusta, dos setores empresariais prejudicados, do mercado financeiro e da sociedade civil, a farsa poderá prevalecer.
As Consequências Econômicas da Paz, de Keynes
No mundo de ontem, há mais de um século, as reparações de guerra – exigidas pela França, pela Inglaterra, e aceitas pelos EUA na Conferência de Paz de 1919 – levaram à destruição da economia alemã e à ascensão do nazismo. O paralelo entre os dois mundos nos remete à questão crucial – essa história se repetirá?
Uma dimensão inicial desse paralelo se refere à psicologia dos protagonistas da Conferência de Paz que culminou no Tratado de Versalhes de 1919.
‘O excelente prefácio de Marcelo Paiva Abreu para “As Consequências Econômicas da Paz” ressalta a importância dessa vertente subjetiva da Conferência’
O excelente prefácio de Marcelo Paiva Abreu para As Consequências Econômicas da Paz ressalta a importância dessa vertente subjetiva da Conferência. “Seus retratos dos três grandes, Clemenceau, Wilson e Lloyd George, são extremamente perspicazes e críticos, a mordacidade de Keynes refletindo claramente a sua frustração com as decisões finais quanto ao tratamento reservado à Alemanha no Tratado de Versalhes, cujo formato final decorria de “uma ideia da França e de Clemenceau” (1).
Paiva reproduz o perfil traçado por Keynes para cada um dos líderes. Clemenceau – esteticamente o mais nobre, “um velho homem do mundo”; Wilson – o clérigo “não conformista”; e Lloyd George – intelectualmente o mais sutil. “Estas eram as personalidades de Paris”, (2) conclui Keynes.
Após a análise do perfil psicológico dos três líderes nas negociações, Keynes se volta para o papel de cada país no concerto europeu. “A Inglaterra ainda se encontra fora da Europa, cujos tremores silenciosos não a alcançam. A Europa está afastada e a Inglaterra não é parte do seu corpo e da sua alma.” (3)
‘Essa distância inglesa em relação à Europa vai moldar em grande medida a crítica de Keynes ao curso das negociações, pautadas pelo peso maior da França, por seus ressentimentos em relação à Alemanha’
Essa distância inglesa em relação à Europa vai moldar em grande medida a crítica de Keynes ao curso das negociações, pautadas pelo peso maior da França, por seus ressentimentos em relação à Alemanha e por suas exigências exageradas de reparações de guerra. Mas a análise dessa dimensão crucial da Conferência – reparações de guerra – é precedida por uma análise da “Europa antes da guerra”, que reconhece os avanços extraordinários ocorridos nos 50 anos anteriores à Primeira Grande Guerra.
“A era que terminou em agosto de 1914 foi um episódio extraordinário de progresso econômico da humanidade”. … “ A maioria de nós fomos criados nesse Eldorado econômico, essa Utopia – como teriam pensado os economistas mais antigos. … Essa época feliz afastou uma visão do mundo que enchera de melancolia profunda os fundadores de nossa economia política. Antes do século XVIII a humanidade não alimentava falsas esperanças. Contrariando as ilusões popularizadas nos últimos anos dessa fase, Malthus apresentou ao mundo um demônio. … No meio século seguinte ele foi posto de lado. Pode ser que agora tenhamos voltado a soltá-lo”. (4)
Keynes reconheceu que a economia produziu “avanços extraordinários” e que o demônio malthusiano “foi posto de lado”, mas sua última frase acima registra sua possível volta. “A guerra prejudicou de tal forma esse sistema, que pôs em perigo toda a vida da Europa”. O diagnóstico realista é seguido por um sopro de esperança. “ Cabia à Conferência de Paz honrar os compromissos e satisfazer os reclamos da Justiça; mas cabia-lhe igualmente restabelecer a vida na Europa e curar suas feridas”. (5)
O voluntarismo de Clemenceau e os descaminhos do mundo.
No capítulo intitulado “ A Conferência de Paz”, Keynes retoma, com maior profundidade, a análise dos traços da personalidade dos líderes da França e dos EUA. As Consequências Econômicas da Paz pouparia Lloyd George, e as críticas ferinas a ele dirigidas só seriam publicadas quatorze anos mais tarde, no livro Essays in Biography, como explica Paiva Abreu.
“Clemenceau sentia pela França o que Péricles sentia por Atenas – para ele era um valor único, nada mais importava. Sua teoria política era a mesma de Bismarck. Tinha uma só ilusão – a França, e uma desilusão – a humanidade. … Os princípios que preconizava para a paz podem ser expressos simplesmente. Em primeiro lugar, adotava a interpretação da psicologia alemã segundo a qual os alemães só compreendem e só podem compreender a intimidação. … Por isso, nunca se pode negociar com um alemão, ou conciliar-se com ele; é preciso ditar-lhe para provocar uma atitude de respeito.” (6).
‘Essa atitude, que hoje mereceria o slogan americano “France First”, refletia o ressentimento em relação a uma realidade que se transformara radicalmente’
Essa atitude, que hoje mereceria o slogan americano “France First”, refletia o ressentimento em relação a uma realidade que se transformara radicalmente. Antes da Guerra Franco-Alemã (1870), a população dos dois países era praticamente a mesma. Mas em 1914, os alemães eram 70% mais numerosos que os franceses. “O país se tornara um dos mais importantes do mundo em termos de indústria e comércio internacional. Sua competência tecnológica e os meios de que dispunha para produzir riqueza futura não tinham igual. De outro lado, a França tinha uma população estática, e em comparação com outros países havia decaído seriamente em riqueza e na capacidade de produzi-la.” (7)
Ademais dessa enorme assimetria de poder econômico entre as duas potências, havia a fixação conservadora. “A política francesa de Clemenceau tinha por base a crença de que essencialmente a antiga ordem não mudava, pois decorria da natureza humana, que é sempre a mesma, e o consequente pessimismo com respeito às ideias como a da Liga das Nações.” (8)
A “Paz de Cartago” e a sólida condenação de Keynes.
Keynes se insurge contra esse mundo em que as ideias da maior figura da Conferência são fixas, inteiramente descoladas do real, que levarão à “Paz de Cartago”, isto é, imposta de modo brutal e com o propósito de incapacitar para sempre o perdedor.
“Meu objetivo neste livro é mostrar que em termos práticos a “Paz de Cartago” não é justa nem possível. … Os ponteiros do relógio não podem ser atrasados.” (9) Para Keynes, a tentativa anti-histórica de restaurar a Europa Central de 1870 provocaria tensões “ na estrutura europeia”, superiores a “toda a ordenação existente em nossa sociedade.” (10).
A fixação conservadora de Clemenceau leva à síntese bipolar keynesiana. “Havia dois esquemas rivais para o futuro governo do mundo – os Quatorze Pontos do Presidente Wilson e a Paz de Cartago de Monsieur Clemenceau”.(11)
‘Na análise dos pontos específicos do Tratado de Versalhes, Keynes demonstra o enorme sobredimensionamento francês dos danos provocados pela guerra’
Na análise dos pontos específicos do Tratado de Versalhes, Keynes demonstra, segundo Marcelo de Paiva Abreu, o enorme sobredimensionamento francês dos danos provocados pela guerra – “ cerca de seis vezes maiores do que o razoável”. (12) Keynes estimava que os danos montavam a 2 bilhões de libras esterlinas, elevados para 5 bilhões de libras se incluídas as pensões, o que resultaria em pagamentos anuais de 480 a 780 milhões de libras por parte da Alemanha, muito superiores à capacidade de pagamento alemã, por ele estimada, em 100 milhões de libras anuais. Em contraste com esse esquema inviável, Keynes propunha o limite de 2 bilhões de libras para os pagamentos alemães, o que implicaria perdas para EUA, França, Inglaterra e Itália. (13)
As tarifas Smoot-Hawley e os sombrios anos 1930.
Diante da obsessão tarifária de Trump, é impossível esconder seu oposto, prevalecente a partir dos anos 1990 – o avanço célere da globalização – e as sábias advertências de Dani Rodrik de que “ a globalização foi longe demais”.
De qualquer forma, o oceano tarifário ameaçado por Trump, se efetivamente praticado, deverá fragilizar o já combalido sistema de regras internacionais de comércio, desorganizar as cadeias globais de valor, e provocar abalos na produtividade em escala mundial. Isso nos remete aos sombrios anos 1930 e, mais especificamente, às tarifas Smoot-Hawley (SH).
‘Destinadas a proteger os fazendeiros americanos, as tarifas SH se transformaram em mecanismo de proteção também para as indústrias’
Destinadas a proteger os fazendeiros americanos, as tarifas SH se transformaram em mecanismo de proteção também para as indústrias. A alíquota média de importação nos EUA, se elevou, entre 1929 e 1932, do nível de 40% para o patamar de 60%. Ontem, como hoje, tão grande elevação tarifária provocou a fúria dos parceiros comerciais. Em 1931, o Primeiro-Ministro britânico Neville Chamberlain criou as “preferências imperiais”, uma barreira tarifária em torno do império britânico, no que foi seguido por França e Holanda, em suas colônias.
O protecionismo das tarifas SH produziu um efeito indiscutível – a onda de antiamericanismo ao redor do mundo. Nas Américas, as represálias foram do Canadá, que elevou de imediato as alíquotas para trigo, até Cuba, com protestos sociais violentos que deixaram cicatrizes. Na Europa, além das “preferências imperiais” das potências coloniais, a Itália convocou boicote contra os carros americanos, semelhante ao movimento atual contra os veículos da Tesla.
Em artigo de 6 de março corrente, The Economist, ao assinalar que as tarifas de Trump representam um retorno aos anos 1930, lembra o movimento então coordenado por mais de mil economistas norte-americanos, destinado a pressionar o presidente Hoover para vetar as tarifas SH, mas sem êxito. (14)
‘O impacto político da queda no fluxo de comércio cedo se fez sentir, e em 1932 o presidente Franklin Delano Roosevelt acusava os republicanos de erigir uma cerca de arame farpado entre os EUA e o mundo’
No período de 1929 a 1932, sob o efeito da grande depressão, o intercâmbio comercial dos EUA teve queda de 70%, mas parcela significativa desse declínio resultou das tarifas SH e da aplicação de fortes represálias pelos parceiros comerciais. O impacto político da queda no fluxo de comércio cedo se fez sentir, e em 1932 o presidente Franklin Delano Roosevelt acusava os republicanos de erigir uma cerca de arame farpado entre os EUA e o mundo.
Em 1930, matéria publicada em The Economist sobre as tarifas SH, concluía de forma profética. “Protection, meant to be a good servant, becomes a dominant and costly master”.
Uma análise precisa das “tarifas recíprocas” de Trump
Em artigo lúcido e abrangente, José Alfredo Graça Lima se refere à lei tarifária SH de 1930 como “o mais notório exemplo de beggar- thy- neighbor policy”, responsável, em grande medida, pelo declínio de 66% do comércio internacional entre 1929 e 1934. (15)
Graça Lima caracteriza as “tarifas recíprocas de Trump” como “violação da cláusula de Nação Mais Favorecida (MFN) e dos compromissos multilaterais assumidos pelos EUA”. Acrescenta então a interpretação pouco usual de que essas tarifas são “o arauto de um cenário semelhante não aos anos 1930, mas sim à década de 1980”. Esclarece que essa última foi a época quando o mecanismo de solução de controvérsias do GATT não teve poder para executar a remoção das medidas consideradas inconsistentes com as obrigações assumidas. (16)
Outro esclarecimento relevante do artigo se refere ao ano de 2001. A China foi admitida como membro da OMC, houve o lançamento da Rodada Doha, o comércio global se expandiu e cresceram as disputas comerciais, sobretudo entre EUA e China. Essas últimas foram submetidas ao Órgão de Apelação da OMC, transformado em um tribunal de facto. Esse passou a questionar metodologias e procedimentos utilizados, por exemplo, pelo Departamento de Comércio dos EUA, para comprovar a prática de dumping. Ainda antes de Trump assumir o poder, em 2016, o USTR passou a obstruir a indicação do sucessor do mexicano Ricardo Ramirez para o órgão de Apelação, finalmente extinto em 2019. (17)
‘Os efeitos das ´tarifas recíprocas´ sobre as cadeias globais de valor são ainda imprevisíveis’
Em contraste com diagnósticos superficiais e exagerados, Graça Lima conclui o artigo com equilíbrio. “Os efeitos das ´tarifas recíprocas´ sobre as cadeias globais de valor são ainda imprevisíveis. Também permanece obscuro quais setores e quais países ainda poderão ter espaço para negociação de acesso a mercado ou de non trade issues.” (18) Ao final, o artigo faz um registro importante – a probabilidade de aumentarem os acordos comerciais com os EUA.
Conclusão
A “tarifas recíprocas” de Trump estão previstas para entrar em vigor a partir de 2 de abril próximo, o que reserva espaço para negociações. Embora a índole de Trump II seja mais maximalista do que no primeiro mandato, os países atingidos têm demonstrado cautela e evitado escalar represálias, que poderiam mais prejudicar do que defender seus próprios interesses.
‘Até agora, um efeito da política tarifária de Trump, nos países mais afetados, tem sido fortalecer os segmentos opositores dos EUA’
Até agora, um efeito da política tarifária de Trump, nos países mais afetados, tem sido fortalecer os segmentos opositores dos EUA. Esse é o caso da inesperada retomada de popularidade do Partido Liberal de Justin Trudeau no Canadá, e de Claudia Scheinbaum, no México, com apoio popular inédito, superior a 80%.
Na avaliação de diplomatas com larga experiência em negociações comerciais, ainda é cedo para prever o efeito das “tarifas recíprocas” de Trump. O end result poderá oscilar entre um cenário de guerra comercial, ou uma ampliação de acordos comerciais bi ou plurilaterais. Sintomática a esse respeito é a reação de China e União Europeia. Diante das elevações tarifárias de Trump, tiveram o cuidado de recorrer à Organização Mundial do Comércio (OMC), em gesto que pode sinalizar tentativa de reerguer a combalida OMC.
‘No plano doméstico, as reações contrárias à política tarifária de Trump têm sido robustas e difusas, inclusive de seus aliados’
No plano doméstico, as reações contrárias à política tarifária de Trump têm sido robustas e difusas, inclusive de seus aliados, não apenas entre agentes econômicos, mas também no seio da sociedade civil.
Este artigo traçou, como primeiro paralelo para reflexão, a relação entre a política econômica de Trump e as negociações que culminaram no Tratado de Versalhes. Como demonstrado nas Consequências Econômicas da Paz, a firme determinação da França era punir a Alemanha pela tragédia da guerra e impedir, a qualquer custo, sua recuperação econômica.
Esse comportamento implacável era sintoma daquilo que Keynes assim sintetizou. “Clemenceau sentia pela França o que Péricles sentia por Atenas – para ele era um valor único, nada mais importava.” De volta ao paralelo deste artigo, vale lembrar que o comportamento do primeiro-ministro francês não deixa de ter semelhanças com o slogan de Trump – America First .
‘A visão de Clemenceau a respeito da psicologia do povo alemão também se aproxima da percepção de Trump a respeito de uma China com pretensões hegemônicas’
A visão de Clemenceau a respeito da psicologia do povo alemão – “só podem compreender a intimidação … nunca se pode negociar com um alemão” – também se aproxima da percepção de Trump a respeito de uma China com pretensões hegemônicas. No início da unificação alemã, em 1870, França e Alemanha tinham contingente populacional e peso econômico semelhantes. Entretanto, às vésperas da Primeira Grande Guerra, a Alemanha já detinha população 70% maior que a francesa, volume de comércio muito superior ao da rival, além de indústria com nível tecnológico sem paralelo na Europa.
Isso gerou ressentimento nacional, que evoluiu para a imposição da “Paz Cartago” descrita por Keynes. Não estamos muito distantes da contemporaneidade – uma China em espetacular crescimento econômico, destinada a suplantar os EUA por volta de 2030, e o gesto de ressentimento que bem pode estar escondido na obsessiva aspiração – Make America Great Again.
Assim, nos anos que precederam a Primeira Grande Guerra, a Europa exibia uma Alemanha pujante e uma França com “população estática” e decadente “em riqueza e na capacidade de produzi-la”, como descrito em As Consequências Econômicas da Paz”.
A guerra inverteu esse equilíbrio de poder, mas não o temor francês de um ressurgimento alemão. Qual foi a arma utilizada pelo então poderoso Clemenceau? Foi superestimar, em mais de seis vezes, os danos causados pela guerra e impor reparações que desconstruíram a economia alemã, seu tecido social, a República de Weimar e cultivaram o ovo da serpente nazista.
‘A globalização, louvada pelo mercado, pelos governos, e criticada por poucos economistas do establishment gerou assimetrias econômicas, desindustrialização e desigualdades sociais nas economias avançadas’
Setenta anos mais tarde, com a Queda do Muro de Berlim, a globalização avançava célere, tendo como dínamo a exponencial expansão econômica da China. Os Estados Unidos, então superpotência hegemônica, estimulavam o avanço econômico daquela que seria sua próxima grande rival – a China. Aliás, essa foi a estratégia condenada por John Mearsheimer – o ícone do realismo nas relações internacionais – como incompreensível e míope. A globalização, louvada pelo mercado, pelos governos, e criticada por poucos economistas do establishment, como Dani Rodrik, gerou assimetrias econômicas, desindustrialização e desigualdades sociais nas economias avançadas.
No meio acadêmico cresciam os diagnósticos de declínio da influência geopolítica dos EUA e de robusto avanço chinês. É nesse contexto que surge a figura, tão difundida na América Latina, mas escassa no Primeiro Mundo, do “Salvador da Pátria”, encarnada com talento por Donald Trump. Assim como Clemenceau usou as reparações de guerra para recuperar a então frágil economia da França, Trump se serve da arma tarifária para sepultar a globalização e desacreditar o sistema multilateral de comércio baseado em regras.
No Prefácio das Consequências Econômicas da Paz, Marcelo Paiva Abreu afirma. “ É difícil não concordar com praticamente todos argumentos econômicos de Keynes.” É igualmente difícil para o Ocidente se curvar à índole de Trump e aceitar o indigno might is right.
Notas
- Abreu, Marcelo de Paiva. Prefácio. “ Keynes e as Consequências Econômicas da Paz”. In “ As Consequências Econômicas da Paz”. J. M. Keynes. Imprensa Oficial do Estado. Editora Universidade de Brasília. Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais. São Paulo. 2002. P. XVIII.
- Idem. P. XVIII.
- Keynes, J.M. “As Consequências Econômicas da Paz”. Introdução. P. 2.
- Ibidem. P.6.
- Ibidem. P. 16.
- Ibidem. P.20.
- Ibidem. P. 21/22.
- Ibidem. P. 22.
- Ibidem. P. 23.
- Ibidem. P.23.
- Ibidem. P. 37.
- Abreu, Marcelo de Paiva. Prefácio. “Keynes e as Consequências Econômicas da Paz”. P.XIX.
- Idem. P. XX.
- “The Economist”. Print edition. March 6, 2025. “It is not the economic impact of the tariffs that is most worrying.” “What are the lessons of the 1930s?”
- Graça Lima, José Alfredo. “Blog Foro Sur”. 5 de março de 2025. P.3.
- Ibidem. P.3.
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional