Venezuela, um país ‘maduro’ para eleições livres?
País vive momento de crise, polarização e incertezas às vésperas das eleições, e o comportamento dos militares pode ser a chave para elucidar seu destino
A Venezuela enfrenta indecifrável enigma político. No poder há quase um quarto de século, com diáspora de 25% da população (7,7 milhões de pessoas), com pesquisas de opinião indicando 52% para o oposicionista Edmundo González e apenas 25% para o presidente, as incógnitas são muitas e difíceis. Haverá eleições? Serão livres? Derrota de Nicolás Maduro provocará a anunciada guerra civil ou o banho de sangue?
A estratégia eleitoral de Maduro no presente é muito mais difícil do que no passado. Em primeiro lugar, porque a falta de alternância no poder ao longo de mais de duas décadas provocou desgaste político e desastre econômico que afastaram aliados tradicionais do regime. A massa chavista nas ruas encolheu, assim como o PIB.
Nos tempos de Hugo Chávez, o boom do petróleo e seu carisma produziam esmagadoras vitórias eleitorais, forte centralização do poder e reformas constitucionais que ampliaram de forma quase ilimitada o mandato presidencial. Havia rígido controle do Judiciário, da autoridade eleitoral, da mídia e das Forças Armadas. Mas Chávez morreu há mais de dez anos (2013), Maduro não tinha o mesmo carisma, e dois anos depois a oposição venceu as eleições para a Assembleia Nacional, invalidadas pela Corte Suprema.
Regimes autoritários não abdicam do poder pacificamente. A mais provável alternativa para Maduro é a reedição dos 20 anos de fraude eleitoral. Aliás, a fraude como técnica eleitoral já vem sendo praticada: perseguição de inimigos políticos; desqualificação da candidata carismática Marina Corina Machado; veto adicional da acadêmica octogenária Corina Yonis; e medidas administrativas reduzindo para apenas 69 mil os eleitores aptos a votar no exterior (estimados entre 3,5 e 5 milhões).
Caso o pleito de domingo próximo não seja adiado, parece provável o emprego de um arsenal de irregularidades para impedir a vitória da oposição que, segundo pesquisas recentes, teria o apoio de cerca de 60% do eleitorado. O cenário provável seria então amplas manifestações nas ruas, de chavistas e de oposicionistas. A incerteza sobre o efetivo resultado do pleito deverá aumentar a polarização.
A sequência desse quadro terá componentes domésticos e externos. Dentre os atores regionais, os mais relevantes seriam Brasil e Colômbia. A conhecida posição brasileira com relação ao regime chavista foi de alinhamento quase automático, com um tardio distanciamento, diante da ameaça de Maduro de “guerra civil” e “ banho de sangue”. Assim, parece improvável que Lula insista no equívoco histórico de apoio incondicional à ditadura venezuelana. O presidente colombiano Gustavo Petro deverá manter o apoio a eleições livres, o que significaria oposição a Maduro.
Outros atores relevantes, como EUA e União Europeia (EU), que deram o benefício da dúvida a Maduro nas conversações em Barbados (2019 e 2023) e na República Dominicana (2017), deverão se opor a Maduro na hipótese de avassaladora fraude. Como contraponto, os aliados incondicionais do chavismo – Rússia, China e Cuba – deverão manter suas posições, mas sem chegar ao ponto de um envolvimento decisivo. A configuração da atual ordem internacional, cada vez mais próxima do modelo da Guerra Fria, não permite o avanço russo ou chinês sobre a esfera de influência norte-americana.
Assim, as forças decisivas no pós eleição na Venezuela serão, certamente, de ordem interna, uma vez que intervenção das superpotências ou de atores regionais parece fora de cogitação.
Se essa premissa é válida, o destino do regime deverá ficar nas mãos dos atores relevantes no contexto político e militar doméstico. A classe política, escanteada há 20 anos, deverá continuar vítima do autoritarismo e pouca influência terá sobre os acontecimentos pós-pleito. Entretanto, um cenário de gigantescas manifestações populares poderá afetar o destino do regime. Ao que tudo indica, o governo de hoje não mais conta com o maciço apoio do passado, o que deverá calcificar ainda mais a sociedade entre chavistas e opositores do regime. A “voz das ruas” ficará indefinida, o resultado eleitoral, em suspenso, e os militares poderão, uma vez mais, ditar o curso da história,
Desde 2002, quando o Exército abortou a tentativa de golpe civil contra Chávez, a República Bolivariana da Venezuela passou a contar com dois pilares fundamentais: maciço apoio das massas populares e robusto endosso dos militares ao regime chavista.
As políticas sociais de Chávez, sobretudo os programas de transferência de renda, semelhantes ao nosso Bolsa Família, tiveram forte efeito redistributivo da renda, e criaram um olhar positivo da população sobre o governo e, em particular, sobre o líder populista. Essa política redistributiva estava alicerçada nos petrodólares e no aparelhamento crescente da petroleira estatal PDVSA.
Uma gestão desastrosa da empresa inviabilizou a produção petrolífera, aliada a uma retórica anti-norte-americana de Chávez e Maduro, teve efeitos altamente negativos: desorganizou o setor petrolífero e a economia, vítima de hiperinflações sucessivas. Isso fragilizou os programas de transferência de renda, apoio popular e forçou o regime a novas ondas de repressão e de combate às instituições.
O pós-eleição deverá expressar esse decrescente apoio popular e uma crescente insatisfação das hostes oposicionistas. Esse clima poderá levar a um clima de disfuncionalidade do governo e de violência na sociedade civil. Isso poderá aproximar-se do cenário de golpe de Estado ou do banho de sangue anunciado por Maduro.
As Forças Armadas sempre foram o grande beneficiário, em termos econômicos e de poder político, do chavismo, o que moldou uma instituição dócil aos desejos do regime. Entretanto, como pergunta The Economist, no artigo A new danger for Venezuela´s autocrat, de 11 de julho de 2024, até quando os militares continuarão leais a um regime em declínio político, econômico e internacional. O comportamento dos militares pode ser a chave para elucidar o indecifrável dilema do país. Uma vez mais, o destino da Venezuela poderá ficar nas mãos dos militares.
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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