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Interesse Nacional
26 julho 2024

Venezuela, um país ‘maduro’ para eleições livres?

País vive momento de crise, polarização e incertezas às vésperas das eleições, e o comportamento dos militares pode ser a chave para elucidar seu destino

O presidente venezuelano Nicolás Maduro durante campanha eleitoral (Foto: Instagram/Nicolas Maduro)

A Venezuela enfrenta indecifrável enigma político. No poder há quase um quarto de século, com diáspora de 25% da população (7,7 milhões de pessoas), com pesquisas de opinião indicando 52% para o oposicionista Edmundo González e apenas 25% para o presidente, as incógnitas são muitas e difíceis. Haverá eleições? Serão livres? Derrota de Nicolás Maduro provocará a anunciada guerra civil ou o banho de sangue?

A estratégia eleitoral de Maduro no presente é muito mais difícil do que no passado. Em primeiro lugar, porque a falta de alternância no poder ao longo de mais de duas décadas provocou desgaste político e  desastre econômico que afastaram aliados tradicionais do regime. A massa chavista nas ruas encolheu, assim como o PIB.

Nos tempos de Hugo Chávez, o boom do petróleo e seu carisma produziam esmagadoras vitórias eleitorais, forte centralização do poder e reformas constitucionais que ampliaram de forma quase ilimitada o mandato presidencial. Havia rígido controle do Judiciário, da autoridade eleitoral, da mídia e das Forças Armadas. Mas Chávez morreu há mais de dez anos (2013), Maduro não tinha o mesmo carisma, e dois anos depois a oposição venceu as eleições para a Assembleia Nacional, invalidadas pela Corte Suprema. 

‘Regimes autoritários não abdicam do poder pacificamente. A mais provável alternativa para Maduro é a reedição dos 20 anos de fraude eleitoral’

Regimes autoritários não abdicam do poder pacificamente. A mais provável alternativa para Maduro é a reedição dos 20 anos de fraude eleitoral. Aliás, a fraude como técnica eleitoral já vem sendo praticada: perseguição de inimigos políticos; desqualificação da candidata carismática Marina Corina Machado; veto adicional da acadêmica octogenária Corina Yonis; e medidas administrativas reduzindo para apenas 69 mil os eleitores aptos a votar no exterior (estimados entre 3,5 e 5 milhões).

Caso o pleito de domingo próximo não seja adiado, parece provável o emprego de um arsenal de irregularidades para impedir a vitória da oposição que, segundo pesquisas recentes, teria o apoio de cerca de 60% do eleitorado. O cenário provável seria então amplas manifestações nas ruas, de chavistas e de oposicionistas. A incerteza sobre o efetivo resultado do pleito deverá aumentar a polarização.

‘A conhecida posição brasileira com relação ao regime chavista foi de alinhamento quase automático, com um tardio distanciamento’

A sequência desse quadro terá componentes domésticos e externos. Dentre os atores regionais, os mais relevantes seriam Brasil e Colômbia. A conhecida posição brasileira com relação ao regime chavista foi de alinhamento quase automático, com um tardio distanciamento, diante da ameaça de Maduro de “guerra civil” e “ banho de sangue”. Assim, parece improvável que Lula insista no equívoco histórico de apoio incondicional à ditadura venezuelana. O presidente colombiano Gustavo Petro deverá manter o apoio a eleições livres, o que significaria oposição a Maduro. 

Outros atores relevantes, como EUA e União Europeia (EU), que deram o benefício da dúvida a Maduro nas conversações em Barbados (2019 e 2023) e na República Dominicana (2017), deverão se opor a Maduro na hipótese de avassaladora fraude. Como contraponto, os aliados incondicionais do chavismo – Rússia, China e Cuba – deverão manter suas posições, mas sem chegar ao ponto de um envolvimento decisivo. A configuração da atual ordem internacional, cada vez mais próxima do modelo da Guerra Fria, não permite o avanço russo ou chinês sobre a esfera de influência norte-americana.

Assim, as forças decisivas no pós eleição na Venezuela serão, certamente, de ordem interna, uma vez que intervenção das superpotências ou de atores regionais parece fora de cogitação.  

‘O destino do regime deverá ficar nas mãos dos atores relevantes no contexto político e militar doméstico’

Se essa premissa é válida, o destino do regime deverá ficar nas mãos dos atores relevantes no contexto político e militar doméstico. A classe política, escanteada há 20 anos, deverá continuar vítima do autoritarismo e pouca influência terá sobre os acontecimentos pós-pleito. Entretanto, um cenário de gigantescas manifestações populares poderá afetar o destino do regime. Ao que tudo indica, o governo de hoje não mais conta com o maciço apoio do passado, o que deverá calcificar ainda mais a sociedade entre chavistas e opositores do regime. A “voz das ruas” ficará indefinida, o resultado eleitoral, em suspenso, e os militares poderão, uma vez mais, ditar o curso da história,

Desde 2002, quando o Exército abortou a tentativa de golpe civil contra Chávez, a República Bolivariana da Venezuela passou a contar com dois pilares fundamentais: maciço apoio das massas populares e robusto endosso dos militares ao regime chavista.

‘As políticas sociais de Chávez tiveram forte efeito redistributivo da renda, mas estavam alicerçadas nos petrodólares e no aparelhamento crescente da petroleira estatal’

As políticas sociais de Chávez, sobretudo os programas de transferência de renda, semelhantes ao nosso Bolsa Família, tiveram forte efeito redistributivo da renda, e criaram um olhar positivo da população sobre o governo e, em particular, sobre o líder populista. Essa política redistributiva estava alicerçada nos petrodólares e no aparelhamento crescente da petroleira estatal PDVSA. 

Uma gestão desastrosa da empresa inviabilizou a produção petrolífera, aliada a uma retórica anti-norte-americana de Chávez e Maduro, teve efeitos altamente negativos: desorganizou o setor petrolífero e a economia, vítima de hiperinflações sucessivas. Isso fragilizou os programas de transferência de renda, apoio popular e forçou o regime a novas ondas de repressão e de combate às instituições. 

‘O pós-eleição deverá expressar esse decrescente apoio popular e uma crescente insatisfação das hostes oposicionistas’

O pós-eleição deverá expressar esse decrescente apoio popular e uma crescente insatisfação das hostes oposicionistas. Esse clima poderá levar a um clima de disfuncionalidade do governo e de violência na sociedade civil. Isso poderá aproximar-se do cenário de golpe de Estado ou do banho de sangue anunciado por Maduro. 

As Forças Armadas sempre foram o grande beneficiário, em termos econômicos e de poder político, do chavismo, o que moldou uma instituição dócil aos desejos do regime. Entretanto, como pergunta The Economist, no artigo A new danger for Venezuela´s autocrat, de 11 de julho de 2024, até quando os militares continuarão leais a um regime em declínio político, econômico e internacional. O comportamento dos militares pode ser a chave para elucidar o indecifrável dilema do país.  Uma vez mais,  o destino da Venezuela poderá  ficar nas mãos dos militares. 

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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