Com Lula, Brasil volta a usar política externa para avançar agenda doméstica, diz Sean Burges
Novo governo assume após ‘hiato’ da diplomacia brasileira e vai enfrentar contexto global complicado por guerra na Europa e disputas entre EUA e China. Para o professor de relações internacionais na Universidade de Carleton, no Canadá, o Brasil pode voltar a trabalhar para assumir um papel de liderança do Sul Global para ganhar voz internacional e ajudar a promover o desenvolvimento interno
“O Brasil está de volta aos negócios”. Assim como declarou o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, em discurso imediatamente após sua vitória, o professor de relações internacionais na universidade de Carleton, no Canadá, Sean Burges acredita que a retomada de um papel mais ativo da diplomacia brasileira sob o novo governo vai ser rápida e fácil.
“O mundo sabe que os diplomatas seguem as instruções do Poder Executivo”, disse, em entrevista à Interesse Nacional. “Conversei com muitos diplomatas durante a era Bolsonaro, todos diziam que estavam apenas esperando que ele saísse. Muitos sabiam que era só um hiato, e que um Brasil positivo, construtivo, comprometido com a ordem internacional liberal, ainda que com uma visão brasileira, valores brasileiros e uma abordagem brasileira, está voltando.”
Especialista em política externa brasileira, Burges é autor do livro Brazil in the world (Manchester University Press) em que analisa a posição global do país e o trabalho para tentar promover o Brasil internacionalmente. Segundo ele, a nova diplomacia de Lula vai precisar reformar alianças com o Sul Global para voltar a assumir uma posição de liderança no mundo.
“O Brasil nunca terá uma voz importante por si só no sistema global. No entanto, o Brasil teve uma voz importante durante os anos Lula porque foi capaz de convocar, coordenar, consolidar e representar um número maior de vozes no Sul Global. É isso que o Brasil vai ter que voltar a fazer”, disse. Isso vai envolver o desafio de manobrar em um contexto de guerra na Europa e disputas entre EUA e China. O Brasil, diz, “vai ter que escolher um lado. Não vai ser capaz de ficar neutro”, mas pode fazer isso com o peso de representar a um grupo de nações do Sul Global.
Leia abaixo a entrevista completa
Daniel Buarque – Em seu primeiro discurso após ser eleito, Lula disse que “o Brasil está de volta ao mundo” e que o mundo sentia falta do Brasil. Qual sua percepção sobre isso? O Brasil vai voltar a ter uma participação mais ativa em questões globais?
Sean Burges – Concordo totalmente. A política externa é dirigida e decidida pelo presidente. Política externa é simplesmente uma área de política pública. E um governo tem um conjunto específico de ambições e desejos que deseja alcançar em termos de avanço de sua agenda governamental. Onde Lula e Fernando Henrique se destacaram, principalmente em comparação com Collor, Itamar Franco, Dilma, Temer e Bolsonaro, foi em entender como eles podem fazer uso da política externa para avançar sua agenda doméstica.
A grande questão com Lula é que ele tem a ideia de que, se o Brasil quiser crescer e atingir a sua ambição política de que cada brasileiro tenha três boas refeições por dia e tenha oportunidades de educação, autorrealização e todas essas coisas boas, então a economia precisa estar crescendo. Mas a economia brasileira não pode crescer a menos que outras economias cresçam e tenham oportunidades. Ele fez um cálculo estratégico muito inteligente que o Norte Global, a OCDE, não está interessado em ajudar com isso. Então o espaço onde você tem espaço para crescimento, onde você tem espaço para oportunidade é no Sul Global. Isso significa que o Brasil precisa se envolver ativamente com os países da África Subsaariana, com o Oriente Médio e com o resto da América Latina. Isso não é uma avaliação ideológica, de que países pobres devem ficar juntos. O que ele está avaliando é o perfil de risco do Brasil, o que os empresários brasileiros estão dispostos a aceitar em termos de risco. Todo executivo brasileiro com quem conversei em diferentes países que operam na África e na América Latina acham o ambiente de negócios nessas regiões familiar, é como trabalhar em casa. Estão acostumados com isso. Já quando você fala com os canadenses e americanos e europeus, eles acham esses países mais complicados de atuar e buscam proteções. Os brasileiros se sentem mais à vontade e fazem acontecer, investem a longo prazo, contratam funcionários locais, os treinam e criam seu império corporativo. Isso cria um ambiente receptivo muito diferente para o investimento brasileiro. Cria uma recepção muito diferente de como o Brasil e o governo brasileiro são vistos por esses países pelos países no Sul Global, o que abre ainda mais oportunidades. Então, se Lula quer reconstruir o Brasil, quer fazer do Brasil o lugar maravilhoso que pode ser, ele pode usar a política externa para fazer isso.
Daniel Buarque – Mas isso não precisa significar virar as costas aos países desenvolvidos, não é?
Sean Burges – Claro que não. As pessoas têm uma visão realmente simplista dessas coisas. É possível ser um parceiro engajado com o Sul Global e ter um envolvimento positivo com o Norte Global. Não é um ou o outro. A prova mais clara disso foi quando Aloysio Nunes entrou como ministro das Relações Exteriores. Ele atacou o que o governo de Dilma Rousseff fazia, e pediu uma revisão completa e abrangente do que era feito pelo país. Todos pensaram que isso significaria a retração da África, mas ele deixou claro que não, que aquela era uma boa ideia.
Em termos de onde o Brasil pode crescer, onde o Brasil pode ter boas oportunidades, é preciso ir para a África, Europa, América do Norte e Ásia. São quase 40 anos de tradição por trás disso. Desde a redemocratização, a política externa tem sido de que o Brasil não quer depender de um único ator internacional e busca diversificação no mundo. É em busca disso que o país vai novamente.
O que temos com Lula é o retorno de um presidente que entende como a política externa, em todas as suas manifestações, pode ser usada para promover o interesse nacional do país e suas prioridades de desenvolvimento.
Daniel Buarque – Quão difícil você acha que vai voltar a isso depois de quatro anos de governo Bolsonaro?
Sean Burges – Vai ser fácil. Todo mundo entende a situação do Brasil. Quando falamos de política externa formal, não estamos lidando com amadores que não entendem o que está acontecendo. O mundo sabe que os diplomatas seguem as instruções do Poder Executivo. É assim que funciona a democracia. Fundamentalmente nada mudou no Itamaraty, em muitos aspectos. Então, sim, é bem simples.
O Brasil está de volta aos negócios. Conversei com muitos diplomatas durante a era Bolsonaro, todos diziam que estavam apenas esperando que ele saísse. Muitos sabiam que era só um hiato e que um Brasil positivo, construtivo, comprometido com a ordem internacional liberal, ainda que com uma visão brasileira, valores brasileiros e uma abordagem brasileira, está voltando.
Daniel Buarque – Mas o novo governo Lula vai encontrar um contexto global diferente, com guerra na Europa e maior competição entre China e EUA. Isso pode afetar esse posicionamento do país?
Sean Burges – Sim, é aí que fica interessante. Em termos estruturais, o Brasil nunca terá uma voz importante por si só no sistema global. Isso não vai acontecer. Nenhum dos fatores que precisam existir estão presentes. No entanto, o Brasil teve uma voz importante durante os anos Lula porque foi capaz de convocar, coordenar, consolidar e representar, de certa forma, um número maior de vozes no Sul Global. É isso que o Brasil vai ter que voltar a fazer. E vai ter que escolher um lado. Não vai ser capaz de ficar neutro.
Então, para Lula, acho que o que veremos é uma tentativa de recomeçar essa política externa colocando o Brasil nessa posição de liderança. Mas o que mudou agora é que os outros países vão cobrar benefícios nessa relação. Somente promessas educadas não vão ser suficientes para atrair esses outros países. É preciso tomar uma decisão concreta de que, se o Brasil quer ser o líder da América do Sul, por exemplo, e esse seria o ponto de partida, então o Brasil vai ter que fornecer bens de liderança concretos e tangíveis. Vai ter que absorver deliberada e estrategicamente o comércio de outros países. Vai ter que fornecer bens de liderança custosos para outros países. Vimos isso no final dos anos 2000, quando outros países da região, como Peru, Bolívia e Equador estavam dizendo que se o Brasil quisesse liderar, eles aceitavam, mas que era preciso oferecer algo de concreto e palatável para eles em troca, e que o Brasil não seria o único beneficiado no processo. Então é preciso mudar um pouco o pensamento para que o Brasil absorva os custos políticos de assumir essa liderança e ofereça ganhos econômicos concretos, como financiamentos pelo BNDES ou treinamento militar, da mesma forma como fazem a França, o Reino Unido, os Estados Unidos e a China. Se o Brasil entrar nesse jogo e assumir a liderança na América do Sul e até em partes da África Subsaariana, como foi na Namíbia, pode ficar nessa posição global em que representa a voz do Sul Global e representa esse Sul. Isso daria mais densidade e impacto ao país quando estiver lidando com os EUA e a Europa sobre como gerenciar as relações com a China e a Rússia, por exemplo.
Vai ser preciso tomar uma decisão concreta em termos da direção a ser seguida. O apetite do Brasil continua existindo, e fundamentalmente o que o Brasil quer é o que praticamente todos os países da América do Sul querem. Mas, para obter a aquiescência para o Brasil ser um líder e conduzir a região adiante, há algumas coisas nesses relacionamentos que precisam mudar. Essa é a mudança que Lula vai ter que descobrir como gerenciar.
Daniel Buarque – Acha que pode ser um processo facilitado pelo contexto regional, com a nova onda de governos de esquerda na América Latina?
Sean Burges – Acho que não. Lula é de esquerda? Boric é de esquerda? Eles têm realmente uma agenda de esquerda? Eles têm uma agenda liberal de que todos devem ser tratados com respeito e tratados igualmente perante a lei, que todos deveriam ter a oportunidade de fazer três refeições por dia, todos devem ter oportunidades iguais de educação de qualidade e cuidados de saúde de qualidade, e todos devem ter a oportunidade de avançar profissional e economicamente. Isso é uma agenda de esquerda agora? Chamaria isso de conservadorismo progressista. Lula não está atacando os valores da família, ou os valores evangélicos. O que ele está dizendo é que você pode ter isso e trabalhar para que os brasileiros tenham uma vida melhor. Toda essa linguagem de esquerda e direita ainda está sendo usada, mas realmente precisa ser questionada.
Daniel Buarque – Ainda assim, ficou claro durante o governo de Bolsonaro que não havia diálogo entre ele e os outros governos da região que ele identifica como de esquerda. Essa mudança no governo brasileiro não pode facilitar a aproximação com a América do Sul?
Sean Burges – Pode fazer sentido, mas é preciso avaliar que não havia diálogo entre Bolsonaro e nenhum outro governo da região ou do mundo, fossem de esquerda e ou de direita. Ele simplesmente não queria se envolver em política externa. Tudo o que Bolsonaro fez foi projetado para promover sua marca pessoal e para promover seus próprios interesses familiares. Onde a política externa se encaixa nisso? Não houve engajamento real com pessoas de fora do Brasil. Então acho que não é uma questão de esquerda e direita, mas uma questão de saber usar a política externa contra a ignorância dela. Se houvesse um líder de direita no poder no Brasil, qualquer que fosse ele sem ser Bolsonaro, haveria diálogo com a região. Vale lembrar que quem iniciou o Mercosul foi Collor. Não é uma questão de esquerda ou direita. É uma questão de ter um líder nacional que tem a visão de como usar a política externa.
As pessoas gostam de dividir tudo em lados opostos e isso faz parte do problema. Queremos ter a divisão entre direita e esquerda, o bem contra o mal. Mas o mundo não funciona assim. É possível ter dois lados negativos e é possível ter dois lados positivos. Não é porque o país se engaja com o Sul Global que você não possa se engajar positivamente com o Norte Global. E por muito tempo o Brasil conseguiu fazer isso.
Daniel Buarque – Enquanto se inicia a transição de governos, o Brasil está registrando dezenas de protestos contra o resultado da eleição e pedindo um golpe de Estado contra Lula. Isso pode afetar a percepção global sobre o país?
Sean Burges – Não. Todos os países têm seus malucos.
Pelo contrário, o que há de interessante na atual situação política do Brasil é entender como a política externa é usada para construir coalizões no Congresso. E isso pode ficar muito interessante com Lula. O Centrão pode acabar apoiando o governo. E parte fundamental desse grupo, que são as bancadas do “boi” e da “bíblia” são fortemente impactadas pelo que acontece na política externa. Houve uma proliferação de igrejas evangélicas brasileiras na África Subsaariana nos anos 2000 sob Lula, e há muito tráfego diplomático nas igrejas. Então eu acho que podemos ver mais um impulso dessas igrejas de volta à África, o que aproximaria esse grupo do governo Lula. Além disso, claro, o desenvolvimento do mercado agrícola foi outro avanço do governo Lula. E se ele abrir mercados para a exportação de alimentos do Brasil, também pode aproximar este grupo. Então, o que é feito na frente da política externa pode realmente ter um impacto muito grande na construção e apoio das coalizões do Congresso que ele vai precisar para sua agenda de governo. Há muito espaço para ele ser criativo lá e ele é inteligente o suficiente para fazê-lo.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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