04 dezembro 2023

A dupla barbárie na guerra Hamas-Israel e a solução de dois Estados.

Embora de difícil concretização, o modelo de dois Estados é o único capaz de trazer paz duradoura para a dividida sociedade israelense e alívio prolongado para o sofrido povo palestino. Para embaixador, apesar dos obstáculos e enigmas, a solução ganha momento no plano internacional

Embora de difícil concretização, o modelo de dois Estados é o único capaz de trazer paz duradoura para a dividida sociedade israelense e alívio prolongado para o sofrido povo palestino. Para embaixador, apesar dos obstáculos e enigmas, a solução ganha momento no plano internacional

Destruição deixada por bombardeio à Faixa de Gaza (Foto: OMS)

Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*

A dupla barbárie – o ataque terrorista do Hamas contra a população civil israelense, com 1.200 mortos, além de 240 reféns; e a brutal contraofensiva israelense, com mais de 12 mil mortos em Gaza – poderá abrir caminho à única alternativa viável para a questão palestina: a solução de dois Estados, apresentada pela ONU em 1947, quando da partilha da Palestina.

Desde então, essa solução sempre fracassou, tanto por intransigência israelense como palestina. Diante da devastadora tragédia iniciada em 7 de outubro, diversos líderes mundiais e Estados árabes, pela primeira vez, sinalizam apoio à solução de dois Estados. Assim, a superação do impasse passa a depender de dois pólos: EUA-Israel contra Irã-Hezbollah-Hamas-Houthis.

‘A primeira solução de dois Estados, proposta pela ONU em 1947, previa 53% da Palestina para os israelenses e 47% para os palestinos’

A primeira solução de dois Estados, proposta pela ONU em 1947, previa 53% da Palestina para os israelenses e 47% para os palestinos, sendo que os primeiros eram apenas 30% da população e os segundos, 70%. Os Estados árabes naquele momento foram terminantemente contrários à partilha. Consideravam a criação do Estado de Israel inaceitável imposição do colonialismo inglês, contrária aos direitos legítimos do povo palestino, e que poderia ser revertida pelas armas, diante da fragilidade militar e demográfica dos israelenses. A consequência foi a guerra de 1948, surpreendentemente vencida por Israel, que ampliou sua área, passando dos 53%, previstos na partilha definida pela ONU, para 79%, consolidando, dessa forma, sua existência como Estado.

Diversos outros conflitos armados marcaram a rivalidade entre árabes e israelenses, tendo  como epifenômeno a questão palestina e como resultado concreto a contínua ampliação do território de Israel. Assim foi na Guerra dos Seis Dias, de 1967, provocada por Israel, assim foi na Guerra do Yom Kippur, de 1973, iniciada por Egito e Síria. Na primeira, Israel ocupou toda a Palestina histórica, objeto da partilha de 1947. Na segunda, os árabes tentaram retomar esses territórios, mas fracassaram. As Colinas do Golan, da Síria, ocupadas em 1967, foram anexadas em 1981.       

‘Paralelamente a esses conflitos, se desenvolviam os processos de paz que nunca chegaram a implantar a solução de dois Estados’

Paralelamente a esses conflitos em torno da questão palestina, se desenvolviam os processos de paz, com avanços e recuos, mas que nunca chegaram a implantar a solução de dois Estados.

Os Estados Unidos sempre foram o grande mediador/protagonista nessas negociações, que resultaram em dois acordos de paz – Camp David e Oslo – e envolveram, de um lado, Israel e, de outro, os Estados árabes mais influentes, como Egito, Síria, Jordânia, e a Organização para a Libertação da Palestina – OLP, sob a firme e carismática liderança de Yasser Arafat.

As propostas contidas naqueles acordos de paz, embora contemplassem relativo equilíbrio entre as aspirações de judeus e palestinos, fracassaram, o que explica o clima de permanente tensão e conflito em torno da questão palestina.  

‘Os Acordos de Camp David de 1978 selaram a paz entre os atores hegemônicos na época – Israel e Egito’

Os Acordos de Camp David de 1978 selaram a paz entre os atores hegemônicos na época – Israel e Egito. A Península do Sinai foi devolvida a esse último, que, em troca, reconhecia a existência do Estado de Israel. Na mesma linha, os acordos Begin-Sadat se referiam à devolução da Cisjordânia e da Faixa de Gaza para as lideranças palestinas. Isso significava ruptura radical com o passado.

Nos anos 1950 e 1960, a liderança nacionalista de Nasser, o armamentismo egípcio com ajuda soviética e seu projeto de panarabismo ameaçavam de morte a existência de Israel. Em consequência, fortaleciam sua militarização, a defesa prioritária de suas fronteiras, tendo como desfecho, em 1967, a  Guerra dos Seis Dias.

‘As promessas de Camp David foram desrespeitadas e só retomadas quinze anos depois, em 1993, com os Acordos de Oslo’

Entretanto, aquelas promessas de Camp David foram desrespeitadas e só retomadas quinze anos depois, em 1993, com os Acordos de Oslo. Esses estabeleciam que a OLP, liderada por Yasser Arafat, reconhecia a existência de Israel, mas agora em troca de sua retirada da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Tratados complementares a Oslo previam a restituição aos palestinos de todos os territórios ocupados, o que nunca ocorreu.

Qual a importância dessa revisão histórica para a compreensão da atual guerra entre Hamas e Israel e da possibilidade de, no pós-guerra, prevalecer a solução de dois Estados? A não implementação tanto de Camp David como de Oslo e o avanço dos assentamentos de colonos judeus sobre a Cisjordânia geraram ampla e profunda frustração entre os palestinos. Isso contribuiu para sua radicalização, visível na violência das duas Intifadas, que sepultaram aqueles dois processos de paz e fortaleceram os grupos rebeldes paramilitares apoiados pelo Irã – Hezbollah, Hamas, Houthis e Jihad Islâmica.

No plano doméstico, a ascensão política do Likud, dos religiosos ortodoxos e da extrema-direita em Israel completava um quadro de polarização interna e externa. O projeto autoritário de poder de Netanyahu não dava margem a dúvidas – seu governo se afastava do jogo democrático ao perseguir o Judiciário; buscava a expansão dos assentamentos com exclusão da causa palestina; e dividia a sociedade israelense, que ia as ruas com milhões de manifestantes em defesa das instituições democráticas.

‘Os atores relevantes na Guerra dos Seis Dias, na Guerra do Yom Kippur e nas negociações de paz foram substituídos pelo Irã revolucionário, e seus agentes nas proxy wars’

Na vertente externa, a essência do contexto negociador se alterava substancialmente: declínio da importância dos EUA no Oriente Médio; ascensão de da direita radical, com Trump na Presidência; e robusta influência política e militar iraniana na região. Os atores relevantes na Guerra dos Seis Dias, na Guerra do Yom Kippur e nas negociações de paz – Egito,  Síria, Jordânia e OLP – eram substituídos pelo Irã revolucionário, e seus agentes nas proxy wars – Hamas, Hezbollah, Houthis, Jihad Islâmica que desestabilizavam  as monarquias do golfo, mas ao  mesmo tempo defendiam o status quo na Síria .  O Irã se afirmava na região e globalmente pelas armas e pelo avanço de seu programa nuclear.

Outra mudança de peso foi a aliança revigorada entre Washington e Tel Aviv, visível na decisão crucial de Trump de retirar os EUA do Acordo sobre o Programa Nuclear Iraniano de 2015, arduamente negociado por Obama e aprovado pelos cinco membros permanentes do CSNU mais a Alemanha. A nova estratégia norte-americana se contrapunha ao Irã e tinha como alicerce os Acordos de Abraão, destinados a normalizar as relações de Israel com Bahrein, Emirados Árabes Unidos (EAU), Marrocos e Sudão. Ao mesmo tempo, avançava celeremente a aproximação diplomática Israel-Arábia Saudita. Esse seria, na visão dos países envolvidos, o desfecho de uma modalidade inédita de paz no Oriente Médio, ao selar uma aliança entre o Estado judeu e seus arqui-inimigos do passado no mundo árabe.

Mas nessa gramática geopolítica, aparentemente exitosa, havia um sujeito oculto – o povo palestino. Enquanto os acordos de paz anteriores – Camp David e Oslo – tinham como centro a questão palestina, a estratégia de Trump fragilizava as lideranças moderadas palestinas (Fatah e Autoridade Nacional Palestina – ANP) e buscava uma paz top down, alicerçada na normalização das relações árabe-israelenses.  

‘Diante da alternativa entre identidade judaica e democracia liberal, Netanyahu optou pela primeira, tendo como instrumento o Estado unitário’

Netanyahu consolidava essa estratégia de Trump, que considerava a questão palestina como integrante de um irrelevante coeteris paribus. Como primeiro-ministro, controlava o Parlamento – em aliança com o Likud, as lideranças religiosas e a extrema direita – ao mesmo tempo que procurava neutralizar o Judiciário e, assim, eliminar a democracia israelense. Diante da alternativa entre identidade judaica e democracia liberal, Netanyahu optou pela primeira, tendo como instrumento o Estado unitário, ou seja, o antípoda da solução de dois Estados.

O braço direito dessa estratégia consistia em desacreditar o Fatah e a Autoridade Palestina por meio do avanço exponencial dos assentamentos de colonos judeus na Cisjordânia (cerca de 468 mil , segundo levantamento de 2022 da CIA) e em Jerusalém (cerca de 262 mil). O outro braço era manter o Hamas sob controle, ao facilitar o fluxo de recursos do Qatar para o grupo paramilitar e ao liberar residentes da Faixa de Gaza para trabalharem em Israel.

‘Um transfigurado acordo de paz entre elites regionais estava em curso. Ao colocar entre parênteses ou jogar para escanteio a questão palestina’

Assim, um transfigurado acordo de paz entre elites regionais estava em curso. Ao colocar entre parênteses ou jogar para escanteio a questão palestina, o objetivo era estabilizar a região, o que significava ameaçar a hegemonia do Irã e a razão de existir de seus procuradores regionais – Hezbollah e Hamas. Era uma transfiguração com os três pilares políticos acima indicados – revigorada aliança EUA-Israel; normalização das relações entre Israel e Estados árabes; e inexorável fragilização do Fatah e da Autoridade Palestina, por meio de mais de 700 mil colonos judeus na Cisjordânia e em Jerusalém. O preço da estratégia era uma paz de cemitério, com o sepultamento da questão palestina.

Desdobramentos do processo acima descrito estarão na dependência do desfecho do conflito Hamas – Israel e da desafiadora gestão do pós-guerra. Parece provável que Israel esteja próximo de alcançar seu objetivo da eliminação militar do Hamas e da desmilitarização da Faixa de Gaza. Caso esse cenário se consolide, a pressão internacional para a solução de dois Estados assumirá supremacia, com o respaldo das duas superpotências, da Rússia e da União Europeia.

‘A continuidade da guerra beneficia China e Rússia. Esse contexto geopolítico global favorece a solução de dois Estados’

É evidente que a continuidade da guerra beneficia China e Rússia. Os EUA saem fragilizados, porque são forçados a destinar vultosos recursos materiais e humanos para dois conflitos simultâneos de grandes proporções – Faixa de Gaza e Ucrânia. Mas o custo humanitário de estimular a barbárie seria brutal para China e Rússia. Por isso mesmo, a primeira votou a favor e a segunda se absteve na resolução articulada pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU, apoiada por 12 dos 15 membros e vetada pelos EUA. Esse contexto geopolítico global favorece a solução de dois Estados.

Entretanto, o avanço nessa direção dependerá de duas variáveis domésticas decisivas. A primeira é de fácil previsibilidade – a queda de Netanyahu no day after do conflito e a emergência de um governo de coalizão de centro-direita ou mesmo liberal. A segunda variável é extremamente difícil. Exigirá uma engenharia política e de segurança de alto risco em termos de coesão interna e de estabilidade social. Como proceder ao êxodo dos 700 mil israelenses que hoje ocuparam a Cisjordânia e Jerusalém, com o estímulo do governo de Israel e o beneplácito de Trump? Em sua maioria são colonos aliados de Netanyahu, integrantes da ortodoxia religiosa e da extrema-direita antidemocrática. Em outros termos, como desmontar, numa democracia, o poderoso Cavalo de Troia montado por Netanyahu para dividir o país e bloquear a solução de dois Estados?

Além desses obstáculos, o modelo de dois Estados exigirá, no day after do conflito, uma complexa gestão política, administrativa e de segurança. Que conformação terá o novo Estado Palestino para gerir, de forma sustentável, um território devastado pela contraofensiva militar israelense? Poderá Israel assumir temporariamente, como vem indicando Netanyahu, no imediato pós-guerra, a administração da Faixa de Gaza virtualmente destruída? Poderá uma Força de Paz da ONU, integrada também por nacionais de países árabes, construir pontes, moldar a transição para o almejado Estado palestino e, assim, consolidar a solução de dois Estados?

Embora de difícil concretização, o modelo de dois Estados é o único capaz de trazer paz duradoura para a dividida sociedade israelense e alívio prolongado para o sofrido povo palestino.  Apesar dos obstáculos hercúleos e dos enigmas comparáveis aos do oráculo de Delfos, a solução de dois Estados ganha momento no plano internacional e doméstico.  Conta com a poderosa adesão das grandes potências, com o apoio da opinião pública nas sociedades democráticas, com os milhões de manifestantes nas ruas de Israel e com a resiliência das instituições representativas – pilares da democracia israelense. Talvez aqui seja válida a conhecida frase atribuída a Victor Hugo. “Nada é tão poderoso como uma ideia cujo tempo chegou”.


*Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra. 


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

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