O Brasil na nova multipolaridade desbalanceada
Com a crescente tensão entre EUA, Rússia e China em um sistema global desequilibrado, a manutenção de uma política externa brasileira de autonomia pela diversificação passa a ser um desafio. Se antes coalizões com Moscou e Pequim eram vistas como geradoras de oportunidade, agora podem ser interpretadas como se o Brasil estivesse assumindo um lado
John Mearsheimer, em seu livro clássico a Tragédia da Política das Grandes Potências, afirma que o sistema internacional moderno é composto por Estados que se diferenciam (naquilo que importa para a política internacional) apenas em termos de poder relativo – pensado no sentido de poder militar real ou potencial. Segundo o autor, para que esse sistema seja, de fato, interestatal, não é possível que haja um hegemon global: a existência de um sistema dominado por um Estado apenas não seria mais, por definição, interestatal.
Assim, partindo da distribuição de poder entre grandes potências, para Mearsheimer, um sistema internacional comportaria apenas três tipos de configuração: bipolaridade, multipolaridade balanceada e multipolaridade desbalanceada.
No primeiro caso, duas grandes potências se destacam em um sistema internacional também composto por potências menores. Nos segundo e terceiro, há pelo menos três ou mais grandes potências com capacidade materiais suficientes para impactar o sistema e desafiar umas às outras, diferenciando apenas na existência ou não de pelo menos uma grande potência preponderante.
Para Mearsheimer, esse Estado que se diferenciaria dos demais poderia ser um hegemon regional – um Estado que, na sua região geográfica, não possui outra grande potência que o possa desafiar. Por causa da impossibilidade de se tornar hegemon global, uma grande potência em ascensão buscaria, sobretudo, manter-se ou tornar-se um hegemon regional.
O exemplo clássico de sistema bipolar foi o da Guerra Fria; o da multipolaridade balanceada, o momento pós-Napoleônico; já o da desbalanceada, tem-se o sistema europeu que antecedeu as Primeira e Segunda Guerras Mundiais e o sistema atual.
A despeito de críticas que se tenham à teoria realista de Mearsheimer, essa classificação nos ajuda a ter em perspectiva os desafios da política internacional nessas primeiras décadas do século XXI. Isso porque essa tipologia de Mearsheimer não apenas retrata a distribuição de poder sistêmica, mas pondera sobre a própria estabilidade do sistema internacional.
Para o autor norte-americano, o sistema bipolaridade seria o mais estável, pois possibilitaria apenas uma díade de conflito entre grandes potências dominantes, ao passo que, na multipolaridade, há uma maior variedade de combinações de pares entre grandes potências, gerando maior probabilidade de conflitos.
E, nessa mesma linha, por Estados terem como objetivo inerente sempre a busca de mais poder, quando existe uma multipolaridade desbalanceada, há mais instabilidade, já que nele há, normalmente, um hegemon regional disputado por uma grande potência emergente que acredita que pode atingir, igualmente, esse o nível – algo também retratado por Allison em sua ideia de Armadilha de Tucídides.
A partir dessas premissas teóricas, Mearsheimer enxerga o atual sistema internacional multipolar como tendo um hegemon regional (os Estados Unidos) e uma grande potência em ascensão buscando tornar-se hegemon em sua região (a China). Segundo Mearsheimer, configurações de multipolaridade desbalanceada como essa levaram a Europa a duas guerras mundiais.
Concorde-se ou não com todos os pontos da teoria realista de Mearsheimer, é fato que o sistema internacional está em crescente instabilidade. A emergente rivalidade de Rússia com países europeus e os EUA, as tensões envolvendo China e seus vizinhos, assim como China e Estados Unidos, o novo travamento do Conselho de Segurança, o declínio no consenso sobre operações de paz e muitos outros eventos dos últimos anos não deixam dúvidas quanto a esse novo padrão. A questão para nós é: como o Brasil vem buscando adaptar sua política externa nesse novo cenário?
A situação do Brasil
Se tomarmos por base a tipologia desenvolvida por Gelson Fonseca e aprimorada por Vigevani e Cepaluni, o Brasil adotou diferentes formas de interação internacional nos períodos que comportaram o sistema bipolar e o multipolar subsequente.
Durante a Guerra Fria, mesmo com pontuais governos de alinhamento com os Estados Unidos (notadamente Dutra, Café Filho e Castello Branco), de forma geral, o país foi maturando sua atuação internacional em direção ao que os autores chamaram de autonomia pela distância: ao passo que se buscava uma identificação ideológica com o Ocidente no plano doméstico, sobretudo após o golpe, na política externa, o Brasil procurou, sempre que possível, certa autonomia, adotando, inclusive, certas políticas que contrariaram os EUA. O adjetivo “distância” marcou, sobretudo, um afastamento dos fóruns de decisões multilaterais, principalmente quando a agenda era ditada pelo Ocidente.
O sistema internacional torna-se efetivamente multipolar com o fim da Guerra Fria, um sistema multipolar desbalanceado. Contudo, diferentemente de Mearsheimer, entendo que esse sistema multipolar desbalanceado não foi o mesmo. É possível identificar, pelo menos, três fases: 1) multilateralismo liberal (1991-2001); 2) ajuste (2001-2011); e 3) instabilidade estrutural (2011-).
No primeiro caso, o sistema multipolar é marcado por uma predominância da estrutura institucional liberal plenamente operante, um exemplo disso foi o destravamento do Conselho de Segurança. No segundo, há um momento de ajuste, que vai dos atentados de 11 de Setembro à intervenção na Líbia; nesse período, a Rússia reemerge e a China emerge, ambos passam a ser mais assertivos na política internacional. Por fim, o momento atual é de instabilidade estrutural: crescente rivalidade das potências ocidentais com Rússia e China, caracterizada pela diminuição da distância de poder relativo entre dois blocos que começam a adquirir contornos mais nítidos.
Durante o período de multilateralismo liberal, o Brasil passou a tomar uma postura mais inclusiva. Ainda buscando reforçar sua margem de atuação na política internacional, as décadas de 1980 e 1990 também foram marcadas pela autonomia, mas uma autonomia nova, pela participação.
Em um sistema em transição para uma multipolaridade desbalanceada centrada nos EUA, os governos brasileiros reforçavam seu caráter participativo nos fóruns multilaterais, assumindo compromissos que caracterizaram a ordem liberal emergente. Notadamente, o Brasil ratificou tratados de desarmamento, de direitos humanos e de meio ambiente, como sinal dessa nova postura inclusiva. Por outro lado, os fóruns internacionais foram utilizados como arenas para formação de novas coalizões, que marcaram a agenda Norte-Sul, sobretudo se valendo de elemento central da agenda externa brasileira: o desenvolvimento. Claramente, buscou-se utilizar a estrutura internacional da ordem liberal para se valer dos seus interesses, evitando uma postura de confrontação com os Estados Unidos e as demais grandes potências ocidentais, mas evitando, igualmente, a submissão.
Com relação aos conflitos internacionais – sobretudo as guerras civis emergentes no fim do conflito bipolar – a estratégia de autonomia pela participação tomou forma bastante clara. É nesse período que o Brasil passa a se consolidar como importante provedor de tropas para operações de paz. A ideia do Brasil era participar do sistema de forma construtiva. Essa participação, contudo, não impediu o Brasil de se posicionar de forma autônoma quando necessário, um exemplo disso foram os questionamentos da intervenção no Kosovo, sem autorização do Conselho de Segurança.
No século XXI, com a emergência de um sistema multipolar de ajuste (fase 2), novos desafios surgiram para a política externa brasileira. Nessa nova fase, o Brasil adota também uma postura diferenciada, que Vigevani e Cepaluni classificaram como autonomia pela diversificação.
A diplomacia brasileira buscou ampliar o escopo de suas concertações políticas, engajando-se em diversas “coalizões de geometria variável” (como colocado por Maria Regina de Lima e Ricardo Castelan), tais quais Brics, Ibas, G20 comercial, Basic, dentre outros. Assim, o Brasil via o aumento de poder de outras potências, como Rússia e China, como oportunidades para satisfazer seus próprios interesses nacionais. Do mesmo modo, assumiu uma postura ainda mais assertiva e independente na agenda de segurança, como nas críticas incisivas à invasão dos EUA no Iraque e sua pauta de reforma do Conselho de Segurança da ONU.
Com a consolidação da liderança de Putin na Rússia e, principalmente, com a emergência da China como principal rival dos EUA, o sistema multipolar desbalanceado entrou em sua terceira fase, marcada pelo que chamo de instabilidade estrutural.
O provável turning point pode ser visto na maior concertação de Rússia e China no Conselho de Segurança após a intervenção da Otan na Líbia. O evento em si marca uma postura muito mais cooperativa entre esses dois atores, que vai ganhando sintonia à medida que a rivalidade com os EUA se eleva.
Como previsto por Mearsheimer, nesse novo tipo de multipolaridade, há ações contestadoras muito mais incisivas dos emergentes. Particularmente no caso da teoria, destaca-se a política chinesa mais agressiva. A Nova Rota da Seda, o engajamento no Mar do Sul da China, a aproximação com a Rússia, o aumento das tensões com Taiwan e a investida sobre Hong Kong podem ser interpretados como desdobramento de uma política chinesa deliberada para se tornar hegemon regional. A resposta a isso é uma igual postura de confronto dos EUA – o governo Biden classificou, em sua Estratégia de Segurança Nacional, a Rússia como principal ameaça e a China como maior desafio.
Diante desse cenário, a manutenção de uma política externa de autonomia pela diversificação passa a ser claramente desafiante. Se antes coalizões com Rússia e China eram vistas como geradoras de oportunidade, agora podem ser interpretadas como se o Brasil estivesse assumindo um lado.
Dois exemplos já no atual governo revelam claramente esse desafio. O primeiro deles foi quando o presidente Lula procurou adotar um discurso neutro em relação à guerra na Ucrânia, procurando cacifar o Brasil como mediador. A mensagem foi lida pelo Ocidente como se o Brasil estivesse, de fato, assumindo uma postura pró-Rússia. O resultado disso foi o esvaziamento da possibilidade de o país se tornar mediador do conflito.
O segundo exemplo foi a ampliação do Brics. Se antes o agrupamento era visto como um reformador, com a nova configuração, ele passa a ser enxergado como um grupo de suporte à China – e possivelmente essa foi, de fato, a intenção chinesa. A ampliação pulverizou a importância brasileira no agrupamento, ao mesmo tempo em que deixou o país em deadlock: o Brasil não teria como sair do grupo, por todo o investimento político que fez nele, ao mesmo tempo, não conseguiria ser contrário à entrada de novas membros sem um custo político pesado sobre sua postura de representante do Sul Global.
Portanto, nesse novo sistema multipolar, o maior desafio da diplomacia brasileira será adaptar sua política externa de diversificação de parcerias e autonomia a uma ordem internacional pouco receptiva a “terceiras vias”. Esse não é um desafio inédito, na Guerra Fria, como mencionado, o Brasil enfrentou problema similar. Mesmo que nesse período a configuração do sistema tenha sido outra, boas lições ainda podem ser extraídas.
Miguel Mikelli Ribeiro é colunista do Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em RI pela Universidade Estadual da Paraíba e doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor do livro "Política internacional contemporânea: questões estruturantes e novos olhares".
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