19 janeiro 2023

Daniel Buarque: Fim do governo Bolsonaro vira a diplomacia ‘de cabeça para cima’

Pesquisa indica que, apesar da percepção internacional de reviravolta no Itamaraty, a transformação da retórica da política externa durante o governo de extrema-direita não se traduziu em mudanças reais no comportamento do Brasil no mundo. Sem uma ruptura de peso, o novo governo pode ter um caminho para retomar a normalidade da posição internacional do país

Pesquisa indica que, apesar da percepção internacional de reviravolta no Itamaraty, a transformação da retórica da política externa durante o governo de extrema-direita não se traduziu em mudanças reais no comportamento do Brasil no mundo. Sem uma ruptura de peso, o novo governo pode ter um caminho para retomar a normalidade da posição internacional do país

O ex-presidente Jair Bolsonaro, a primeira-dama Michele e o ex-chanceler Ernesto Araújo chegam ao Itamaraty para cerimônia durante posse presidencial em 2019 (Foto: Marcos Corrêa/PR)

Por Daniel Buarque*

Menos de um mês após o fim do mandato de Jair Bolsonaro, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva anunciou a saída do Brasil da aliança internacional antiaborto patrocinada por governos ultraconservadores. A adesão do país à Declaração do Consenso de Genebra havia ocorrido em 2020 como parte da guinada da diplomacia brasileira a uma ideologia de extrema-direita e “anti-globalista”. A decisão do novo governo compõe um processo iniciado logo após a eleição presidencial de 2022, quando Lula começou a organizar o que pode ser visto como a volta da normalidade ao Itamaraty. Depois de Bolsonaro virar a diplomacia brasileira de cabeça para baixo, a nova administração começa a voltar o país “de cabeça para cima”.

A percepçãode que Bolsonaro havia transformado a política externa brasileira foi externada por observadores das grandes potências globais durante pesquisa sobre o status internacional do Brasil. Para a comunidade de política externa dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, o presidente de extrema-direita promovia mudanças radicais nas tradições históricas do Itamaraty, especialmente durante o período de Ernesto Araújo como chanceler. 

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É verdade que a liderança de Carlos França já havia começado a aliviar o tom ideologicamente radical do Itamaraty bolsonarista, mas a política externa continuou sendo definida pelo presidente, o que mantinha posturas que iam contra o que era tradicionalmente defendido pela diplomacia do país.

Após a eleição, entretanto, começou a mudar a percepção externa sobre o Brasil. Vitorioso, Lula começou a dar sinais de que a tradição estaria de volta à chancelaria. O convite para a participação do ainda presidente eleito na COP 27, Conferência do Clima no Egito em novembro e seu discurso alegando que “o Brasil voltou” já davam mostra disso. Era especialmente importante por ser um rompimento com a postura de Bolsonaro em relação à questão ambiental, uma pedra fundamental da consolidação da posição brasileira no cenário global.

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Além disso, a indicação de Mauro Vieira para o Ministério das Relações Exteriores foi outra entre as evidências desse retorno. Experiente e com uma passagem anterior pelo cargo, seria uma pessoa com conhecimento e habilidade para colocar o Itamaraty de volta a seu rumo normal e histórico. 

E felizmente há indícios de que revirar a diplomacia de volta a sua posição tradicional pode não ser um desafio tão grande assim. Aparentemente o estrago causado pela reviravolta ideológica sob o Bolsonarismo pode ter vida curta. Um estudo recém-publicado pela revista acadêmica Global Studies Quarterly avalia a ascensão do populismo de extrema-direita no Brasil e explica que a política externa bolsonarista “latiu mais do que mordeu”.

‘A ascensão do populismo de extrema-direita no Brasil e explica que a política externa bolsonarista “latiu mais do que mordeu”’

Segundo o trabalho publicado pelo professor Dawisson Belém Lopes e pelos doutorandos Thales Carvalho e Vinicius Santos, apesar das promessas nacionalistas, revolucionárias e do discurso de rejeição e rompimento com as tradições históricas, líderes populistas de extrema-direita só conseguem realizar mudanças drásticas na política externa das sociedades pluralistas se, primeiro, vencerem disputas internas nos foros de formulação de políticas. Além disso, os autores alegam que as medidas propostas por esses líderes dependem de apoio externo. “Caso contrário, algumas mudanças incrementais e superficiais são os resultados máximos que esses líderes podem obter”, dizem.

A partir de uma avaliação do que de fato foi alcançado pela política externa dos últimos quatro anos, o artigo alega que o afastamento mais explícito das posições históricas do Brasil foi a adoção de uma postura moralmente conservadora e religiosa nas interações internacionais  — como no caso da participação na aliança antiaborto. Isso porque questões ambientais e econômicas foram percebidas como mais dramáticas no exterior e receberam uma maior oposição internacional.

Segundo os pesquisadores, apesar da retórica e da percepção externa, a política externa bolsonarista não foi capaz de realizar uma ruptura real com princípios históricos e fundamentais defendidos por diplomatas e altos funcionários públicos. Sem apoio político e recursos burocráticos suficientes, o presidente não conseguiu modificar drasticamente a agenda política, e prevaleceu a inércia.

‘Apesar da retórica e da percepção externa, a política externa bolsonarista não foi capaz de realizar uma ruptura real com princípios históricos e fundamentais’

“Bolsonaro falhou totalmente em trazer uma política externa revolucionária no Brasil de hoje; seus movimentos internacionais são intensamente superficiais e principalmente inócuos”, diz o estudo. Apesar da sua retórica antiglobalista, por exemplo, se houve uma mudança na política externa multilateral do Brasil, ela foi motivada na verdade pelo crescente isolamento do país devido ao fraco desempenho diplomático do presidente.

Com a saída dele do poder e o começo de um novo governo disposto a abraçar até mesmo a retórica tradicional da política externa brasileira, pode ser mais fácil recolocar o Brasil em um lugar de destaque — e de cabeça para cima — na política global. 


*Daniel Buarque é editor-executivo do portal Interesse Nacional, doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. É jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor dos livros “Brazil, um país do presente” (Alameda) e “O Brazil É um País Sério?” (Pioneira).


Daniel Buarque é editor-executivo do portal Interesse Nacional. Pesquisador no pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP), doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de livros como "Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities" (Palgrave Macmillan), "Brazil, um país do presente" (Alameda Editorial), "O Brazil é um país sério?" (Pioneira) e "o Brasil voltou?" (Pioneira)

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