Sergio Abreu e Lima Florêncio: O drama iraniano e o inesperado alinhamento com a Arábia Saudita
Acordo para reatar relações diplomáticas entre os dois rivais históricos foi um ponto de inflexão na geopolítica regional, com derrota para Israel e EUA, e vitória para Irã, Arábia Saudita e China. Para embaixador, acordo tem potencial de redesenhar o xadrez geopolítico do Oriente Médio, pode influenciar o quadro doméstico iraniano e ter consequências no realinhamento dos dois grandes adversários do mundo islâmico, com o patrocínio da China
Acordo para reatar relações diplomáticas entre os dois rivais históricos foi um ponto de inflexão na geopolítica regional, com derrota para Israel e EUA, e vitória para Irã, Arábia Saudita e China. Para embaixador, acordo tem potencial de redesenhar o xadrez geopolítico do Oriente Médio, pode influenciar o quadro doméstico iraniano e ter consequências no realinhamento dos dois grandes adversários do mundo islâmico, com o patrocínio da China
Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*
O quadro de radicalização no Irã continua a exibir agravantes: endurecimento do regime do presidente Ebrahim Raisi; grandes manifestações de protesto; fornecimento de armas e drones à Rússia; e impossibilidade de retomada do Acordo Nuclear de 2015. Mas um importante atenuante ocorreu neste mês, quando Irã e Arábia Saudita firmaram acordo para reatar relações diplomáticas, com a mediação da China. O episódio inédito foi um ponto de inflexão na geopolítica regional, com derrota para Israel e EUA, e vitória para Irã, Arábia Saudita e China. Como poderão evoluir aqueles agravantes do quadro doméstico iraniano? Que consequências geopolíticas terá o realinhamento dos dois grandes rivais do mundo islâmico, com o patrocínio da China?
Grandes Potências versus Nacionalismo
As grandes potências sempre foram definidoras de rumos da política iraniana. A forte influência da vizinha Rússia foi substituída pela hegemonia britânica, responsável pela poderosa Anglo-Iranian Oil Company e pela ascensão de Reza Khan, fundador da dinastia Pahlavi. Em 1941, também por imposição britânica, foi substituído pelo jovem e tímido filho, Mohammad Reza Pahlavi. Dez anos depois, ele foi afastado do poder pelo carismático líder nacionalista Mossadegh, mas regressou em 1953, graças a golpe orquestrado pela CIA. Permaneceu no poder até a eclosão da Revolução Iraniana de 1979, que cristalizou uma relação antagônica entre EUA e Irã, com duração de mais de quatro décadas.
A Revolução trouxe digitais marcantes: rivalidade com Israel; oposição às monarquias sunitas; guerra de oito anos com o Iraque; apoio a movimentos rebeldes (Hamas em Israel, Hezbollah no Líbano, e outros); e o programa nuclear. Ao longo desse tempo, a política externa norte-americana errou muito – a tese do regime change – e pouco acertou – o apoio aos três primeiros ministros reformistas Rafsanjani, Khatami e Rouhani.
Os desastres da política externa de Bush e Trump
Após dar apoio ostensivo ao Iraque no conflito com o Irã (1980-1988), em 2003 o presidente George W. Bush promove a invasão do Iraque, a deposição de Saddam Hussein, instala o caos doméstico e alimenta o protagonismo iraniano no país vizinho. Com a derrocada do Iraque, desaparecia o grande rival do Irã na região.
Os erros de Bush foram agravados por Trump com duas medidas desastrosas: a retirada dos EUA do Acordo sobre o Programa Nuclear Iraniano e o abandono da hegemonia no Oriente Médio. Essa última decisão alarmou os aliados na região, que se sentiram sem a proteção da superpotência, e criou um vazio de poder, logo parcialmente ocupado por Israel, Arábia Saudita, Emirados Árabes e outros Estados. Esse grupo firmou os Abraham Agreements – uma aliança inédita, aproximando sauditas e israelenses, e destinada a hostilizar o Irã.
O triste fim de um Acordo Nuclear construído por Obama e desconstruído por Trump
Após longos anos de negociações, o Acordo sobre o Programa Nuclear Iraniano (Joint Comprehensive Peace Agreement – JCPA) foi firmado em 2015 entre Irã e os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), mais a Alemanha, graças, em grande medida, ao empenho de Obama.
Em contraste com a concertação plural de Obama, Trump aplicou ao Irã a política de maximum pressure e se aliou à direita israelense (Netanyahu) e saudita (Mohammed bin Salman – MBS). O rompimento dos EUA com o Acordo Nuclear foi o corolário natural dessa aproximação.
O Acordo Nuclear teve curta duração, mas efeitos positivos. Fortaleceu os políticos reformistas, conteve o avanço político dos Guardas Revolucionários, contribuiu para a presença dos EUA na região, com maior apoio regional a Washington.
Mas em 2018 Trump desfez esse cenário. Trouxe de volta as sanções, fragilizou as lideranças reformistas e contribuiu para o endurecimento do regime, agora sob a égide de Ebrahim Raisi.
Biden reacendeu, brevemente, esperanças de retomar a negociação do Acordo. Mas a invasão da Ucrânia torna impossível qualquer diálogo entre a Rússia e as potências nucleares (excluída a China). Isso inviabiliza a retomada do Acordo.
Uma surpreendente inflexão geopolítica. Alinhamento de dois rivais históricos
O acordo desta semana entre Irã e Arábia Saudita – com potencial de redesenhar o xadrez geopolítico do Oriente Médio – poderá ter expressivos desdobramentos na região e no mundo.
A mediação chinesa produz dividendos políticos para o país. O Oriente Médio já sofreu a hegemonia otomana, russa, britânica e norte-americana, mas nunca chinesa. Em pouco tempo, Xi Jinping soube ocupar o vácuo de poder deixado pelos EUA, em consequência dos desvarios de Bush e Trump. Também soube mediar um improvável acordo entre dois rivais históricos – Arábia Saudita e Irã –, construir pontes, abrir caminho para uma détente regional e, assim, vir a ser reconhecido como player relevante numa tradicional esfera de influência dos EUA.
Para Irã e Arábia Saudita, o realinhamento traz saldo positivo. Serão minimizados ou anulados os onerosos confrontos armados entre os dois para assegurar maior influência em proxies – Síria, Iêmen, Iraque, Líbano. Poderá melhorar a imagem internacional dos dois países, com o gesto destinado a reduzir tensões no Oriente Médio. O acordo poderá também neutralizar o movimento até então em curso de aproximação estratégica entre Israel e Arábia Saudita.
O governo de Ebrahim Raisi, condenado internamente por resilientes manifestações de massa e estigmatizado no plano internacional pela violência brutal, poderá ter algum alívio. O ponto de interrogação é se a moderação externa implicará abrandamento da repressão doméstica.
O inédito acordo entre os dois rivais históricos parece um jogo de soma zero – o ganho de Arábia Saudita e Irã é anulado pela perda de Israel e EUA. Mas não é. Os ganhos políticos da China produzem saldo – positivo ou negativo – nesse jogo geopolítico.
*Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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