A guerra na Ucrânia e os riscos da neutralidade do Brasil
Estudo diz que ‘ficar em cima do muro’ pode trazer ganhos estratégicos imediatos, mas também cria riscos significativos à medida que a polarização aumenta
Na esteira da invasão russa da Ucrânia, o Brasil e muitos outros países latino-americanos preferiram ficar “em cima do muro”, sem se posicionar claramente a favor de Moscou ou do Ocidente, que apoia a Ucrânia. Essa postura tem chamado a atenção de analistas internacionais – quase sempre de forma crítica – e há um forte debate acadêmico sobre a suposta neutralidade de diferentes Estados em situações de conflito, bem como sobre os impactos dessa posição.
Segundo um estudo recente, esta postura de países como o Brasil pode trazer ganhos estratégicos imediatos, mas também cria riscos significativos à medida que a polarização aumenta. O argumento é apresentado no artigo acadêmico The Ukraine War and the Limits of Latin American Fence-Sitting de Luis Schenoni, Diego Leiva e Thales Carvalho, publicado no Bulletin of Latin American Research.
Segundo eles, em contextos de baixa polarização, adotar uma postura neutra é a estratégia ideal para os estados latino-americanos, permitindo-lhes extrair concessões de todos os lados. A neutralidade ou “fence-sitting” refere-se à adoção de uma política externa aceitável para dois ou mais Estados poderosos em conflito, com o objetivo de manter relações com ambos e maximizar o poder de barganha. Em um cenário de baixa polarização, essa estratégia pode ser benéfica, pois permite uma maior autonomia política e um menor risco de sanções.
Esta parte do argumento segue o que diz Matias Spektor em um estudo que defende os países que ficam “em cima do muro”. Segundo ele, essa estratégia é usada não apenas como uma forma de extrair concessões materiais, mas pelo desejo de evitar ser pisoteado em uma briga entre China, Rússia e Estados Unidos.
No entanto, à medida que a polarização aumenta entre as potências em atrito, um dilema de dupla hegemonia torna-se uma possibilidade real para os países latino-americanos. Isso encolhe as margens de manobra desses países e cria riscos nas relações tanto com o Ocidente quanto com a Rússia e a China.
Neste contexto, dizem, alinhamentos estratégicos começaram a ser punidos com tensões diplomáticas, reduções no comércio, empréstimos e ajuda, além de sanções diretas. Isso reduziu o espaço para manobras diplomáticas, tornando a neutralidade uma estratégia cada vez mais arriscada.
Segundo o estudo, uma possível eclosão de guerra por Taiwan faria com que os países precisassem escolher entre ser sancionados pelos EUA ou pela China – ou por ambos. Portanto, os incentivos para manter uma estratégia de neutralidade podem diminuir, enquanto a opção de se alinhar a um dos lados pode parecer mais benéfica.
O caso do Brasil
O Brasil exemplifica bem a estratégia de neutralidade, mantendo boas relações tanto com o Ocidente quanto com Rússia e China, apesar das mudanças ideológicas de seus presidentes, diz o artigo. Durante o governo de Jair Bolsonaro, o Brasil buscou aumentar o comércio com a Rússia, enquanto no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o país continuou evitando críticas diretas à Rússia, mas manteve uma postura pró-Ocidente em fóruns internacionais.
Essa neutralidade, a busca pela equidistância entre potências é uma posição tradicional do Brasil. Essa busca brasileira pela autonomia é conhecida por diplomatas e líderes estrangeiros há tempos, conforme demonstrei no artigo acadêmico A Country on the Fence, publicado em 2020. O Brasil agiu assim mesmo no início da Segunda Guerra Mundial, quando demorou para assumir o lado dos Aliados e buscou vantagens ao fazer isso.
O problema é que ficar “em cima do muro” não é bem visto por nenhum dos dois lados, que veem uma oscilação nos posicionamentos do país em política externa e passam a desconfiar permanentemente do Brasil, que pode perder com isso. Com o aumento das hostilidades e tensões entre os dois lados, a cobrança deles por uma decisão de o Brasil escolher quem vai apoiar. E manter essa “neutralidade”, equilíbrio em cima do muro, tem se tornado cada vez mais difícil e perigoso. Enquanto as potências brigam, quem tenta se equilibrar de forma equidistante entre elas corre o risco de tomar pedradas dos dois lados.
Além disso, ficar “em cima do muro” é um claro entrave para o objetivo brasileiro de aumentar o status do país. Ser uma potência, alegam os países que já detêm esta posição na hierarquia global, requer assumir a responsabilidade de tomar decisões e escolher lados. Não é possível ser um líder sem ter um posicionamento claro que vá além de uma defesa um tanto ingênua da paz, segundo a comunidade de política externa das grandes potências.
O artigo de Schenoni, Leiva e Carvalho reconhece que a posição mantida até agora pelo governo brasileiro pode realmente fazer sentido ao evitar conflitos e buscar vantagens com todos os lados, mas aponta para um futuro de maior tensão global, em que a “neutralidade” pode deixar de ser uma opção. É importante que o Brasil tenha noção disso e esteja preparado para assumir um lado, caso seja necessário.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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