30 novembro 2022

Antonio Carlos Lessa: Protagonismo climático é o caminho para o Brasil reconquistar relevância internacional

Diplomacia de Bolsonaro afetou a imagem do país como um parceiro estável e confiável na política global, segundo o professor de relações internacionais. Apesar do contexto global desafiador, ele alega que a política de combate ao aquecimento global se tornou uma prioridade no mundo e pode servir como plataforma para o país buscar uma posição de prestígio

Diplomacia de Bolsonaro afetou a imagem do país como um parceiro estável e confiável na política global, segundo o professor de relações internacionais. Apesar do contexto global desafiador, ele alega que a política de combate ao aquecimento global se tornou uma prioridade no mundo e pode servir como plataforma para o país buscar uma posição de prestígio

Encontro do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva com representações da sociedade civil brasileira durante a COP27, no Egito (Foto: Ricardo Stuckert)

Por Daniel Buarque

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva vai ter algumas oportunidades importantes para reconquistar um lugar de destaque para o Brasil na política internacional. Após quatro anos de Jair Bolsonaro, quando muitos parceiros no exterior colocaram um “pé no freio” nas relações com o país, o contexto global é desafiador, mas pode permitir que o Brasil recupere uma posição de prestígio. A principal delas, segundo o professor de relações internacionais Antonio Carlos Lessa é a diplomacia ambiental.

“Se o Brasil conseguir estruturar a política externa a partir do protagonismo na agenda ambiental, temos um bom caminho para começar. Não vai ser difícil de se construir uma imagem crível de novo”, disse Lessa, em entrevista à Interesse Nacional.

Professor da Universidade de Brasília, Lessa atualmente está desenvolvendo pesquisa nos Estados Unidos, na University of Illinois at Urbana-Champaign. Ele avalia que Bolsonaro danificou a percepção externa de que o Brasil é um ator confiável e estável nas relações internacionais, mas que muitos dos “estragos” causados pelo governo na diplomacia podem ser desfeitos.

Por outro lado, alega que o presidente fez o trabalho de um “idiota útil” na política externa. “Algumas agendas que são particularmente custosas, que tinham custos efetivos altos, foram trabalhadas de modo tão atrapalhado que, no final das contas, diminui o custo de operação para o novo governo”, disse, citando como exemplos a integração regional, a candidatura à OCDE e o acordo do Mercosul com a União Europeia.

Leia abaixo a entrevista completa 

Daniel Buarque – A política externa do governo Bolsonaro foi muito criticada ao longo de quatro anos. Que impactos esse rompimento com as tradições do Itamaraty trazido por ele pode deixar na diplomacia brasileira?

Antonio Carlos Lessa – É preciso pensar esses impactos em camadas diferentes: 

Há uma camada superficial, em que o prejuízo que ele causa também é mais superficial. É como um risco em uma mesa bem polida, em que se faz um tratamento e se recupera sem dificuldade nenhuma. Não é uma cicatriz profunda. Nós vimos isso, por exemplo, nessa capacidade quase imediata após a eleição de termos uma adesão maciça de boa parte da comunidade internacional saudando a vitória de Lula. Nessa dimensão, o retorno do Brasil a posições interessantes da cena internacional não vai ser difícil. De certo modo, já no primeiro ano do governo Bolsonaro, a maior parte dos parceiros mais importantes do país pôs um pé no freio para avaliar o que estava acontecendo com o Brasil. E essa avaliação indicou a necessidade de, nos anos seguintes, desarticular projetos com o Brasil, de desarticular posições com o país. São questões que podem ser facilmente retomadas, como a liderança em algumas coalizões, uma performance interessante em espaços multilaterais. Por mais que não haja espaços vagos na política internacional, talvez o Brasil tenha tradicionalmente atributos que singularizem e facilitem esse reposicionamento.

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Mas é verdade que tem estragos que são mais permanentes, ainda que também não sejam incuráveis. Tem cicatrizes mais profundas, que não chegam a inviabilizar nenhuma estrutura fundamental, mas que causaram prejuízos muito grandes. E diria que são prejuízos em duas dimensões, uma interna e outra externa. Na dimensão interna, é o caso notadamente de direitos humanos e meio ambiente, com a desativação dos aparatos de fiscalização, a virulência com que foram atacadas as questões de direitos reprodutivos, a questão do aborto em casos de crianças que foram estupradas, a violência com que isso surgiu no Brasil foi realmente chocante, revelando uma extrema direita que se articulou de um modo muito efetivo e que, aparentemente, veio para ficar. Na dimensão ambiental, os ambientalistas avaliam que o estrago que se fez do ponto de vista dos biomas vai demorar décadas para serem refeitos.

Na dimensão dos estragos mais permanentes externos, um importante é aquela imagem tradicional do Brasil como um parceiro crível. Acho que nisso nós tivemos um dano importante, mesmo que na diplomacia isso não seja preservado por tão longo tempo, isso permanece como informação subjacente, especialmente para a academia. O Brasil de Bolsonaro reverteu tão rapidamente compromissos importantes nos quais o país aparecia como fiador relevante, e isso foi tão fácil de ser feito numa mudança de governo, que a grande questão é que ninguém garante que isso não acontecerá de novo em uma outra alternância violenta da forma que nós tivemos com Bolsonaro. A confiança irrestrita que havia nessas credenciais e na estabilidade, no fato de o Brasil ser considerado um ator razoável, um país que tradicionalmente trabalhava pela construção de consensos. Isso foi tão facilmente desmantelado que deixa uma marca importante, criando uma desconfiança.

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Daniel Buarque – Houve algum avanço relevante nesse período?

Antonio Carlos Lessa – Desde o primeiro momento, Bolsonaro fez o trabalho de um idiota útil. Algumas agendas que são particularmente custosas, que tinham custos efetivos altos, foram trabalhadas de modo tão atrapalhado que, no final das contas, diminui o custo de operação para o novo governo. 

‘Bolsonaro fez o trabalho de um idiota útil. Algumas agendas que são particularmente custosas foram trabalhadas de modo tão atrapalhado que diminui o custo de operação para o novo governo’

Por exemplo, nós tínhamos tínhamos chegado a um impasse no arranjo regional, especialmente em torno da relevância e funcionamento da Unasul, com um impasse do mecanismo de criação de convergência, de trabalhar consenso, na medida em que se tornou muito evidente que as ondas progressistas ou conservadoras, afetavam de um modo muito dramático a estabilidade do arranjo. A inexistência de um eixo efetivo, dinâmico, de cooperação econômica era um problema ali dentro. Ao mesmo tempo há a estagnação do Mercosul, da dimensão sub-regional. Nesse contexto, os desvarios de Bolsonaro, a desarticulação da Unasul, fazem com que o Brasil tenha que pensar num arranjo diferente, efetivo, que parta do consenso entre os vizinhos para dar efetividade a ele. Nós tivemos contestações públicas que eram inimagináveis alguns anos atrás vindo de atores constituídos, como o ministro da Economia, atacando abertamente um dos fundamentos da política externa brasileira, que é a integração regional. Esse é um aspecto que é muito importante.

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Outra agenda em que Bolsonaro prestou um serviço por conta dos custos efetivos é a da  candidatura do Brasil à OCDE e a preparação para a entrada na OCDE. Esse é um ponto a que historicamente a esquerda resistia por conta dos controles e dos compromissos impostos pela OCDE à gestão macroeconômica, gestão de políticas públicas. Esse é um caso notório da política externa em que Bolsonaro faz um trabalho sujo, que pode ser útil. Não há dúvida de que a adesão à OCDE fará bem ao Brasil, do ponto de vista da captação de investimentos na captação de recursos, da transparência, combate à corrupção e da gestão de políticas públicas.

De forma semelhante, a aprovação rápida do acordo do Mercosul com a União Europeia, que demorou 20 anos sendo negociado, e que talvez tenha sido alcançado pela estratégia do Ministério de Relações Exteriores de começar o governo oferecendo rapidamente uma vitória internacional, ainda que os avanços mais concretos que tenham sido feitos na negociação tenham sido feitos pelo pelo governo Temer. Mas a conclusão do acordo com a União Europeia é um desses trabalhos que Lula teria um custo elevado para processar as negociações, pelas resistências que existem nos sindicatos e em diferentes setoes da construção desses consensos, dos diferentes setores. Aí há algo positivo que inclusive oferece uma ponte para Lula construir e reconstruir a agenda internacional.

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Daniel Buarque – Você diz isso, mas antes mencionou uma possível perda de credibilidade do Brasil. Lula voltar ao poder com um discurso e com ações que encaminham a tentativa de controlar melhor a posição internacional do Brasil, essa mudança pode conseguir avançar esses projetos que podem ajudar o país?

Antonio Carlos Lessa – Isso vai ter já algum efeito, especialmente na parte da política ambiental, por conta do histórico de gestão ambiental dos governos do PT, que foi muito bom, com a diminuição radical de emissões, que um simples controle de desmatamento demonstra claramente que o Brasil consegue, com medidas muito simples, controlar. É verdade que houve uma mudança e que ilegalidades foram empoderadas pelo atual governo, mas o país tem uma credencial que é facilmente recuperável. E a agenda de política externa vai se estruturar em torno disso, porque realmente a leitura que se faz é a da urgência da agenda ambiental. A ocorrência de emergências climáticas dramáticas. E se o Brasil consegue estruturar a política externa a partir do protagonismo na agenda ambiental, temos um bom caminho para começar. Não vai ser difícil de se construir uma imagem crível de novo. Isso tudo, claro, levando em consideração que estamos entrando em um ano de recessão internacional, com uma guerra ocorrendo com consequências inimagináveis e a reativação de políticas energéticas intensivas em carbono. Não vai ser tão fácil fazer progredir uma agenda ambiental, especialmente relacionada à mudança climática, nesse contexto. Ainda assim, o protagonismo na agenda climática é a única possibilidade de o Brasil adquirir rapidamente relevância internacional. E essa ideia do protagonismo é central para o Celso Amorim desde 1994, sobre um cálculo de que os ganhos para o Brasil, da assertividade, do protagonismo, são muito maiores do que os custos políticos e econômicos que são empregados para isso. 

‘O protagonismo na agenda climática é a única possibilidade de o Brasil adquirir rapidamente relevância internacional’

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Daniel Buarque – Sua pesquisa atualmente nos Estados Unidos trata da relação do país com o Brasil. Essa relação mudou radicalmente nos últimos anos, primeiro com um alinhamento total de Bolsonaro a Trump, depois com o distanciamento de Biden. Como você avalia essa situação da relação Brasil-Estados Unidos nesse contexto de volta de Lula ao poder? 

Antonio Carlos Lessa – O comando mais fácil de ser reativado é o do pragmatismo, que historicamente informa a gestão das relações bilaterais, agora temperado por circunstâncias históricas diferentes. A primeira delas é a ameaça permanente de um recobro de energia da extrema direita. E o que aconteceu nos Estados Unidos pode acontecer no Brasil. O retorno de um comando pragmático é extremamente importante, inclusive como chave para a gestão de outras questões interessantes que interessam ao Brasil e que interessam aos Estados Unidos, como a estabilidade da América Latina e o encaminhamento de convergências nas agendas globais na América Latina. A questão da Venezuela, que está em aberto desde o primeiro momento do governo Bolsonaro, e que o Brasil de Lula pode ter um protagonismo, se procurar o encaminhamento democrático. E a mesma coisa com outros pontos de tensão.

‘A rivalidade entre a China e os Estados Unidos vai ser muito importante. Temos a oportunidade de testar uma gestão de política externa racional e avaliar os efeitos da rivalidade de um modo pragmático, para que o Brasil ganhe com isso’

Outro aspecto extremamente importante é que nos governos de Lula a China era uma potência emergente, e agora a China é uma superpotência. Isso foi dramático, uma evolução rapidíssima, impressionante. E a rivalidade entre a China e os Estados Unidos, especialmente na região, vai ser muito importante. Temos que saber como o Brasil se posiciona nisso. Temos a oportunidade de testar uma gestão de política externa racional, reinstalando o comando pragmático no tratamento das relações com os Estados Unidos, e avaliar os efeitos da rivalidade entre a China e os Estados Unidos de um modo pragmático também, para que o Brasil ganhe com isso. Pensar com criatividade o que é que é possível extrair de ganhos concretos com essa crescente rivalidade que se instalou na América Latina. Lula se dá muito bem e tem essa perspectiva de um recobro das relações com a China, mas também tem essa perspectiva de recobrar as relações com os Estados Unidos. Então acho que nós vamos ter ali o melhor dos mundos para negociar uma posição de equilíbrio que leve ao crescimento do perfil internacional do Brasil. Não tem como separar as relações entre Brasil e Estados Unidos da China hoje em dia.

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Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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