07 agosto 2024

As consequências econômicas da guerra – Lições de Keynes para a paz na Ucrânia

O objetivo do economista inglês de mostrar que “a `paz de Cartago´ não é justa nem possível” serve de inspiração para pensar sobre as negociações para dar fim à atual guerra na Europa

O vagão do armistício, onde foi assinado o tratado de paz em 11 de novembro de 1918 (Foto: Wikimedia Commons)

Diante da retórica de Donald Trump e de seu vice, J.D. Vance, sobre o recuo dos Estados Unidos na Otan, a Ucrânia dá sinais de interesse em discutir o fim da guerra. O presidente Volodymyr Zelensky declarou que a Rússia deveria ser convidada para a reunião negociadora na Suíça, em novembro, antes das eleições americanas. Após visita do presidente húngaro, Viktor Orbán, o chanceler Dmytro Kuleba elogiou, em Guangzhou, o papel da China como força global para a paz. Em resposta, o porta-voz do Kremlin Peskov pediu mais detalhes da proposta ucraniana.

Em reflexão preliminar sobre as condições de um armistício, talvez seja útil lembrar – for the sake of argument e sob o risco consciente de anacronismo – as lições de Keynes a respeito do Tratado de Versalhes, no célebre texto As consequências econômicas da paz”, de 1919.

‘Já na introdução, vem o alerta de que o “espírito dos anos” se expressava na forma sombria em que “nada resta além da vingança entre os fortes; entre os fracos, uma ira impotente”’

Já na introdução, vem o alerta de que o “espírito dos anos” se expressava na forma sombria em que “nada resta além da vingança entre os fortes; entre os fracos, uma ira impotente”. O objetivo do economista inglês de mostrar que “a `paz de Cartago´ não é justa nem possível” serve de inspiração a este artigo. 

Os poucos que apelam a tomar em conta as preocupações da potência invasora em futuro acordo são rotulados de ingênuos ou lenientes ao autoritarismo de Putin. Confusão entre Estados e governantes, entre geopolítica e afetos, que atingiu até o papa Francisco, quando instou Zelensky a “levantar a bandeira branca e ter a coragem de negociar”. 

A propósito, Keynes já advertia que o então presidente dos EUA, Woodrow Wilson, por ter visão um pouco mais generosa em relação à Alemanha derrotada, fora acusado de querer “to let the Hun off” (livrar os hunos, expressão, aliás, eivada de preconceito contra povos euroasiáticos). Neste quesito, prefiro errar com Keynes do que acertar com os falcões de Washington.

‘Keynes foi cáustico na análise dos termos econômicos do Tratado. A cláusula que permitia a expropriação de bens alemães além de suas novas e reduzidas fronteiras foi considerada uma violação dos fundamentos do direito internacional’

Keynes foi cáustico na análise dos termos econômicos do Tratado. A cláusula que permitia a expropriação de bens alemães além de suas novas e reduzidas fronteiras – seja nas ex-colônias africanas, na Alsácia-Lorena ou em qualquer parte do globo – foi considerada uma violação dos fundamentos do direito internacional. “Não há precedente na história recente para tal tratamento da propriedade privada”, escreveu o clássico analista, lembrando que os ativos podiam ser apropriados em ouro, produtos, navios ou títulos, à semelhança do que ocorre hoje com o sequestro de fundos russos em bancos estrangeiros.

Keynes tingiu de cores escuras o futuro da Europa, caso o Tratado fosse aplicado em sua integralidade. As restrições impostas ao uso de carvão pela Alemanha prenunciavam rebate crítico para a indústria de todo o continente; a inflação, se mantida na paz, corromperia a moeda, em “modo sutil de subverter a base da sociedade”. A combinação perversa de nacionalismo e interesses privados poria fim ao que restava da organização social.

‘Keynes recomendava refrear o impulso protecionista de bloquear a importação de cereais da Rússia’

No capítulo Soluções, Keynes recomendava refrear o impulso protecionista de bloquear a importação de cereais da Rússia, no que qualificou de “bloqueio de nós mesmos”. O vaticínio ressoa forte em tempos de destruição de gasodutos e aumento exponencial dos preços da energia. 

Igualmente perspicaz foi a sugestão de cancelar dívidas entre aliados. Os EUA, maiores credores, deveriam perdoar os devedores (França, Itália, Bélgica, Iugoslávia), uma vez que “no longo prazo, os europeus não se sacrificarão para que o fruto de seu esforço seja desviado a outro país”. Aviso que se projeta hoje como custo a ser suportado por agricultores e trabalhadores empobrecidos da Europa no esforço armamentista, que resultou no crescimento da direita xenófoba.

‘A economia russa, sob um irônico neokeynesianismo de guerra, vem crescendo mais do que o previsto’

Em circunstâncias históricas particulares, as consequências econômicas desta crise têm sido, entretanto, surpreendentes. Se as sanções comerciais desviaram para os EUA as importações europeias de petróleo e gás, conforme programado, é fato que a economia russa, sob um irônico neokeynesianismo de guerra, vem crescendo mais do que o previsto (de 4% a 5% em 2024). 

O banimento da Rússia do sistema swift de transações bancárias (num paralelo com a proibição à Alemanha de pertencer a organizações financeiras internacionais, reprovada por Keynes) fez crescer o comércio em moedas alternativas. O aumento das exportações, inclusive pelo fornecimento de bens sob embargo, reforçou também a parceria política com a China. Em consequência, o Brics se expandiu, atraindo pesos-pesados do Sul Global, a exemplo de Egito, Irã e Emirados Árabes Unidos, em movimento pela multipolaridade no sistema-mundo. 

Hitler e outros oficiais nazistas chegam ao vagão do armistício para negociação em 1940 (Foto: Wikimedia Commons)

Outros efeitos colaterais foram a compra de armamentos da Coreia do Norte e o relançamento da iniciativa para a África, iniciada em 2019. De modo a garantir recursos estratégicos e ampliar influências, há projetos ambiciosos mesmo com pequenos países de língua portuguesa, como Guiné-Bissau, para a exploração das reservas de bauxita, e São Tomé e Príncipe, que assinou acordo militar. O recuo da França deu espaço a maior presença russa no Sahel, em disputa pelas minas de cobre e cobalto do Congo, e de urânio do Níger, sob a proteção do Africa Corps, empresa que sucedeu o grupo Wagner do falecido Prigozhin.

‘Em face do declínio da hegemonia americana, a China desponta como artífice da paz mundial’

Em face do declínio da hegemonia americana, a China desponta como artífice da paz mundial. Aproximou Arábia Saudita e Irã, adversários tradicionais dentro do islamismo, e ajudou a recriar a histórica Organização para Libertação da Palestina, a partir de 14 grupos rivais, em favor da unificação de Cisjordânia e Faixa de Gaza como um Estado soberano. Na mesma veia, está em construção uma ponte para a Ucrânia, aliando o perdão de sua dívida com a China a uma fórmula engenhosa para a suspensão das hostilidades.

Cabe recordar aqui a crítica mordaz de Keynes, para quem Wilson era insensível à realidade. Mesmo reconhecendo que “a moral natural não autoriza as nações a fazer recair sobre os filhos dos inimigos a perversidade de seus governantes”, o presidente norte-americano sucumbiu à tentação de punir com rigor excessivo uma Alemanha não aniquilada no campo de batalha, em nome de uma ideia particular de justiça. 

A boa notícia é que Xi Jinping e Lula são líderes sensíveis aos desafios de sua época. Sob uma Casa Branca renovada, a proposta negociadora China-Brasil poderá engajar atores políticos com igual senso de oportunidade, como o Papa, em esforço conjunto para esboçar, num horizonte ainda improvável, os contornos de uma paz possível. 

Cláudia de Borba Maciel é diplomata e embaixadora do Brasil na Guiné Bissau. Mestre em relações internacionais pela UNB, atuou nas embaixadas do Brasil em Buenos Aires, Caracas, Quito e Paris, no Consulado em Munique e na Missão junto à ONU, em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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