Bryan McCann: Mesmo se perder e aceitar derrota, Bolsonaro continuará ameaçando a democracia
Para historiador americano, comparação com situação dos Estados Unidos após a saída de Donald Trump do poder mostra que risco ao estado de direito continua existindo mesmo que haja uma mudança no governo brasileiro após as eleições
Para historiador americano, comparação com situação dos Estados Unidos após a saída de Donald Trump do poder mostra que risco ao estado de direito continua existindo mesmo que haja uma mudança no governo brasileiro após as eleições
Por Daniel Buarque
O aparente enfraquecimento político do presidente Jair Bolsonaro e a vantagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas de intenção de voto às vésperas da eleição deste ano não devem ser interpretados como sinais de que a democracia brasileira está à salvo, segundo o historiador americano Bryan McCann, professor da Universidade Georgetown. Para ele, mesmo se Bolsonaro perder e aceitar a derrota, ele vai continuar sendo uma ameaça ao estado de direito no país.
Uma evidência disso, segundo ele, é o paralelo entre a situação do Brasil e a política dos Estados Unidos, onde o ex-presidente Donald Trump continua sendo visto como um risco para a democracia, mesmo depois de deixar o poder.
“Caso Bolsonaro perca, ele continuará sendo uma força política no Brasil. Mesmo se aceitar a derrota, ele pode continuar sendo uma força política que ameaça a democracia, assim como Trump nos EUA”, explicou McCann em entrevista à Interesse Nacional.
McCann foi presidente da Brazilian Studies Association (Brasa) e é autor de cinco livros sobre o Brasil, incluindo The Throes of Democracy: Brazil Since 1989, Hard Times in the Marvelous City: From Dictatorship to Democracy in the Favelas of Rio de Janeiro, e Hello, Hello Brazil: Popular Music in the Making of Modern Brazil.
Apesar de ver o risco à democracia em 2022 como maior do que em 2018, ele alega que o contexto global favorece a manutenção das regras políticas no Brasil. Isso porque a comunidade internacional, os Estados Unidos e a Europa já deixaram claro que não aceitariam uma aventura golpista contra o sistema eleitoral brasileiro.
Leia abaixo a entrevista completa
Daniel Buarque – Em entrevista concedida em agosto de 2018, você dizia que existia um risco real à democracia brasileira. Olhando em retrospecto para esses quatro anos desde então, como você vê sua análise daquele momento?
Bryan McCann – O risco continua existindo e é maior agora. Em 2018, pelo menos, Bolsonaro foi eleito. A eleição foi legítima. Não tinha a menor dúvida sobre isso. Agora, a preocupação é muito maior que Lula seja eleito e Bolsonaro reaja e não aceite. Esse é o risco, mesmo sabendo que Bolsonaro tenha indicado que vai aceitar o resultado da eleição, se for limpa e transparente –e tenho toda a confiança que o resultado vai ser limpo e transparente, pois o Brasil tem um histórico muito claro disso ao longo dos últimos 25 anos. Então o risco não está no processo eleitoral, ou na urna, mas na possibilidade de o presidente não aceitar o resultado.
Olhando de forma retrospectiva para os últimos quatro anos, Bolsonaro tem governado como um presidente que não respeita profundamente as regras da democracia e os direitos civis conquistados a duras penas na luta contra o regime militar.
Daniel Buarque – Que diagnóstico você faz da democracia hoje? Independentemente do risco que diz existir, acha que a democracia se manteve sólida?
Bryan McCann – É importante enfatizar sempre os paralelos entre o Brasil e os Estados Unidos, e o risco à democracia é global no momento. É hemisférico e global, e existe nos Estados Unidos e no Brasil, na Hungria, na Polônia, na Turquia, em muitos países que têm histórico recente de administrações que não respeitam o estado de direito e a proteção de direitos civis, ou que têm divisões internas exacerbadas pela mídia social e a tendência dela de criar campos em conflito profundo e eterno. Então acho que o risco no Brasil não é totalmente diferente do risco nos Estados Unidos, onde também há uma reação da extrema-direita que não está respeitando o estado de direito. Além disso, são dois países com uma população altamente armada, onde o risco de violência no dia da eleição e após ela é muito alto.
É especialmente importante fazer a comparação com os Estados Unidos não só pelo risco de levante após a eleição, mas porque, assim como Trump, caso Bolsonaro perca, ele continuará sendo uma força política no Brasil. Mesmo se aceitar a derrota, ele pode continuar sendo uma força política que ameaça a democracia, como Trump continua sendo dos Estados Unidos.
Daniel Buarque – Mesmo se perder, Bolsonaro se manterá forte politicamente?
Bryan McCann – Sim, pois, caso Lula vença, vai assumir um governo muito problemático na situação da economia. As pesquisas indicam que Lula tem uma vantagem enorme no momento. Claro que a situação pode mudar, mas a tendência é que ele ganhe, e que a vantagem seja grande o suficiente para que Bolsonaro não possa resistir, e tenha que aceitar a derrota. Mas Bolsonaro vai continuar. E não apenas o Bolsonaro individual, mas Bolsonaro como figura política, e todo o movimento bolsonarista e todos os eleitores que apoiam Bolsonaro vão continuar e vão reclamar muito.
Daniel Buarque – Acha que isso cria possibilidade de resistência armada ou de violência em áreas diferentes do país?
Bryan McCann – Assim como nos EUA, no Brasil há uma população fortemente armada, que pode não aceitar o resultado da eleição ou ameaçar o estado de direito. Como historiador e sem querer fazer futurologia, podemos pensar que, no contexto atual, a democracia brasileira não vai ficar a salvo de uma hora para outra, e vai continuar havendo essa pressão. Temos que entender a democracia não como um estado permanente estável, mas como um processo e uma inspiração. Claro que a democracia nunca está totalmente a salvo, e sempre corre risco, mas no Brasil e nos EUA o risco atualmente é maior do que foi em outras épocas. E o risco vai continuar depois da eleição, sim.
Daniel Buarque – Acha que ainda existe espaço para uma ruptura mais radical contra a democracia?
Bryan McCann – A mobilização da sociedade civil em defesa da democracia nos últimos meses foi muito importante, e ficou evidente que a grande maioria da população brasileira vai insistir no respeito às regras da democracia. Portanto o risco de um golpe é menor do que existia até alguns meses atrás, mas ainda existe.
Daniel Buarque – Considerando este olhar histórico sobre a política brasileira, é interessante ver que Bolsonaro e seus apoiadores em nenhum momento se dizem contra a democracia e se colocam como defensores da liberdade. Que paralelos podem ser traçados com o golpe de 1964, quando a ditadura se impôs falando como se fosse um movimento democrático?
Bryan McCann – O que está acontecendo no Brasil e nos Estados Unidos é muito parecido com 1964, com um golpe que se dizia a favor da democracia. Aqui nos EUA, a extrema-direita também se diz democrata, embora na realidade não respeite as urnas, manipule os distritos legislativos para criar resultados mais favoráveis. No Brasil, isso também é evidente. E é importante definir democracia como algo que não é uma defesa de um único partido ou política, mas como processo constitucional claramente definido. Quem se diz democrata, mas não a respeita as urnas, não defende a democracia.
Daniel Buarque – Ainda comparando o momento atual com o que ocorreu em 1964, queria saber o que você acha sobre a influência internacional sobre a democracia brasileira. Naquele ano, o apoio dos EUA foi fundamental para a ditadura, mas agora o governo americano se coloca contra a ameaça de Bolsonaro rejeitar o resultado das urnas. Como vê esse posicionamento global a respeito do Brasil?
Bryan McCann – Agora a situação é muito diferente nesse aspecto. Temos um presidente nos Estados Unidos que não vai aceitar um golpe no Brasil. Temos um Congresso nos Estados Unidos que dificilmente vai aceitar um golpe no Brasil e temos um contexto internacional que vai rejeitar uma tentativa de golpe no Brasil.
Isso está claro no quanto a posição internacional do Brasil ao longo dos últimos quatro anos sofreu gravemente com Bolsonaro no poder. O trabalho político ao longo dos últimos meses para divulgar na imprensa Internacional e nos setores políticos internacionais o risco do golpe no Brasil foi muito eficiente.
Daniel Buarque – Ainda assim, no começo da entrevista, você mencionou que há vários países que estão numa situação de ameaça à democracia. Existe possibilidade de uma coligação desses países, de novas autocracias que se apoiam?
Bryan McCann – Existe, mas é um risco menor, pois não traria vantagem para o Brasil. Se aliar à Hungria? Não, isso não tem sentido. O Brasil tem que viver no hemisfério ocidental, como os Estados Unidos. Então essas alianças não seriam suficientes para recompor alianças desfeitas no caso de uma ruptura com a democracia.
Daniel Buarque – Desde o começo da entrevista estamos falando sobre um cenário de derrota de Bolsonaro, com base no que indicam as pesquisas de intenção de voto. Mas como acha que ficaria a situação da democracia em caso de uma vitória dele? O que aconteceria se Bolsonaro fosse reeleito?
Bryan McCann – Por um lado, haveria um desgaste natural de um governo que fica oito anos no poder. Mas, por outro lado, ele indicaria mais ministros do Supremo Tribunal Federal, e isso poderia consolidar mais seu poder. A democracia ficaria mais fraca em um segundo governo de Bolsonaro. Claro que a mobilização contra ele continuaria a crescer, mas a democracia e a situação do país pioraria. Já vimos, por exemplo, o crescimento da desigualdade, da violência, do desmatamento na Amazônia. Se tudo isso continuar crescendo ao longo dos próximos quatro anos, o resultado vai ser claramente, muito pior.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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