Daniel Buarque: Brasil, Índia, democracia e status internacional
Tratada como fundamental para o aumento do status brasileiro aos olhos do Ocidente, a democracia é jogada para segundo plano quando EUA e Europa lidam com a Índia. Potencial econômico e militar indiano aparenta colocar o país em um patamar mais alto de prestígio, e seu papel como possível contraponto à China e à Rússia aumentam a tolerância ocidental com o risco de autocracia sob Narendra Modi
Tratada como fundamental para o aumento do status brasileiro aos olhos do Ocidente, a democracia é jogada para segundo plano quando EUA e Europa lidam com a Índia. Potencial econômico e militar indiano aparenta colocar o país em um patamar mais alto de prestígio, e seu papel como possível contraponto à China e à Rússia aumentam a tolerância ocidental com o risco de autocracia sob Narendra Modi
Por Daniel Buarque*
Quando Luiz Inácio Lula da Silva visitou os Estados Unidos em fevereiro, um mês após assumir a presidência, a situação da democracia brasileira foi um dos temas centrais da reunião bilateral. “Brasil e Estados Unidos estão juntos, rejeitam a violência política e dão grande valor às instituições democráticas”, disse Joe Biden.
A democracia é um tema fundamental da construção do prestígio brasileiro no mundo. Para alguns membros da elite de política externa das grandes potências globais, o caminho democrático melhora a imagem internacional do Brasil e pode impulsionar seu status global.
Durante todo o ano anterior, o governo americano havia atuado nos bastidores da eleição presidencial para deixar claro para Jair Bolsonaro que não apoiaria um golpe de Estado. A percepção externa de uma ameaça autocrata durante os quatro anos de governo de extrema-direita ameaçou o já abalado status do Brasil. E a noção de que um golpe tornaria o país um pária com certeza ajudou a impedir os planos mais radicais de Bolsonaro e dos militares.
É inegável que a democracia é um tema caro a Biden, que assumiu a presidência dos EUA depois de uma tentativa de Donald Trump de reverter ilegalmente o resultado das urnas e de ter vistoa insurreição dos eleitores do republicano que invadiram o capitólio americano. Em meio a disputas geopolíticas com governos autocráticos da Rússia e da China, o americano já declarou até mesmo que a batalha entre a democracia e a autocracia é a luta que define os nossos tempos.
Mas quando a ameaça à democracia acontece em um país que é visto como mais importante no atual cenário global, e que pode favorecer os interesses ocidentais, o comportamento dos EUA e de outras grandes potências é diferente.
Ao receber o primeiro-ministro indiano Narendra Modi em Washington neste mês, o presidente americano silenciou sobre a situação da democracia na Índia, apesar dos crescentes relatos de centralização de poder, perseguição a opositores e violações aos direitos humanos no país. De acordo com o New York Times, o contexto de disputas com a Rússia e a China leva os EUA a ignorarem os problemas políticos domésticos da Índia, assim como o fazem com países como Arábia Saudita e Filipinas, que também têm problemas de direitos humanos.
A democracia é vista pelas grandes potências ocidentais como fundamental para o Brasil, país que é percebido pelas grandes potências como uma nação emergente sem muito poder militar, em uma região pacífica e sem direito a uma voz ativa em questões de impacto global além do aquecimento global. Mas a ameaça autocrata é relativizada quando se observa a Índia, “a nação intermediária mais importante na política global. Influente o suficiente para mudar o equilíbrio de poder”, explicou o NYT.
Além de ainda ser formalmente uma democracia, o país é visto como um verdadeiro candidato a ser uma potência global, com sua imensa população, economia ascendente e mesmo poder militar de peso. Como explicou o correspondente do jornal recentemente, “os EUA olham para a Índia como um possível substituto parcial para a China. Eles não querem pensar nessas questões relacionadas ao estado da democracia indiana ou à minoria indiana. Eles se contentam em se concentrar no progresso econômico, na reconstrução da infraestrutura, em superar muitos velhos obstáculos e deixar de lado as questões sobre liberdades políticas e a natureza da democracia.”
A Índia tornou-se estrategicamente importante para o Ocidente, explicou o analista político Pankaj Mishra ao jornal britânico The Guardian. “A Índia é vista como um importante contrapeso para a China e a Rússia, e é vista como o tipo de país que pode inclinar a balança para o outro lado”.
Minha pesquisa de doutorado pelo King’s College London (em parceria com a USP) revelou que a percepção do status do Brasil é parecida. O país é visto como uma peça disputada no tabuleiro da geopolítica. Mas o Brasil é apenas um “peão”, uma peça de menor valor, enquanto a Índia se coloca como um ator cada vez mais relevante na política internacional. Relevante a ponto de a democracia não ser nem vista como tão fundamental, mesmo enquanto a maior potência do mundo diz que a grande disputa do mundo atual é pela sua defesa.
Uma hipótese que pode ser tirada da comparação entre os dois países é que, apesar de a ameaça à democracia estar presente tanto no Brasil (especialmente durante o governo Bolsonaro) quanto na Índia (sob Modi), ela afeta mais o status do Brasil. Isso se dá porque o Brasil não tem tanta força econômica e militar, então precisaria de outros fatores que ajudassem a melhorar seu prestígio, como a democracia. A Índia de Modi, por outro lado, mantém uma economia em ascensão, tem poder militar e armas nucleares — além de estar em uma região volátil e importante para o mundo. O status da Índia, portanto, depende menos da imagem da sua democracia, fundamental para o prestígio brasileiro.
*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, pesquisador do pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. É jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor dos livros “Brazil, um país do presente” (Alameda) e “O Brazil É um País Sério?” (Pioneira).
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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