26 janeiro 2023

Daniel Buarque: Novo governo retoma a integração regional como trampolim para a projeção global do país

Novo estudo mostra que as relações do Brasil com a América do Sul foram um dos pontos mais abalados pela guinada diplomática imposta por Bolsonaro, mudando o padrão das relações do país com seus vizinhos e tirando a região da lista de prioridades da sua política externa. Lula começa seu mandato reforçando a importância da integração e da cooperação regional com foco em fortalecer os laços no continente e impulsionar o país a ter protagonismo global

Novo estudo mostra que as relações do Brasil com a América do Sul foram um dos pontos mais abalados pela guinada diplomática imposta por Bolsonaro, mudando o padrão das relações do país com seus vizinhos e tirando a região da lista de prioridades da sua política externa. Lula começa seu mandato reforçando a importância da integração e da cooperação regional com foco em fortalecer os laços no continente e impulsionar o país a ter protagonismo global

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa durante a Cúpula da Celac (Foto: Agência Brasil)

Por Daniel Buarque*

Em sua primeira viagem internacional desde que assumiu o terceiro mandato, Luiz Inácio Lula da Silva esteve na Argentina, no Uruguai e se reuniu com líderes regionais durante a Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). A participação do brasileiro selou o retorno do país ao fórum após três anos de ausência por decisão do ex-presidente Jair Bolsonaro. 

A Cúpula ocorreu também em meio a uma nova onda de governos de esquerda na região e pode ser interpretada como um símbolo de uma retomada de boas relações entre o país e seus vizinhos –parte do processo de reconstrução do lugar do Brasil no mundo iniciado pelo novo governo.

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Desde de que voltou ao poder, Lula tem falado sobre a importância de desenvolver uma maior integração do Brasil com a região a fim de promover os laços políticos e melhorar as perspectivas para as economias locais. “Nosso protagonismo se concretizará pela retomada da integração sul-americana a partir do Mercosul”, reforçou logo no início do seu novo governo.

Essas conexões sul-americanas têm um histórico de grande importância para a diplomacia brasileira e foram uma das prioridades dos primeiros mandatos do petista, mas haviam perdido importância desde que Dilma chegou ao poder –e especialmente pelo isolacionismo Bolsonarista. Retomado agora, o processo também vem sendo defendido por outros líderes dessa nova “onda rosa”, mas tem o potencial de beneficiar o Brasil além das suas relações regionais.

Mesmo que o Brasil nunca tenha sido exatamente uma potência hegemônica na América do Sul, a liderança regional tem sido muitas vezes considerada pelo país como trampolim para suas aspirações de alcançar status mais elevado e reconhecimento como uma grande potência em escala mundial. Maior, mais forte e mais rico da região, o país por muito tempo acreditou que falar em nome dela faria com que sua voz tivesse um peso mais relevante na política global. 

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Isso de fato parece fazer sentido. Em entrevistas com a comunidade de política externa das grandes potências, com frequência ouvi que ter um papel de liderança da América do Sul (ou mesmo da América Latina) seria uma das melhores opções para o país conseguir ampliar seu prestígio internacional. No processo de alcançar um alto status, tornar-se uma potência regional primeiro é um passo comumente encontrado na literatura de relações internacionais como um facilitador em diferentes partes do mundo –e isso pareceu ser o caso especialmente durante os dois primeiros mandatos do presidente petista, entre 2003 e 2010. 

A retomada dessas relações a partir de 2023 se faz importante não apenas por essa busca por status do país, mas porque, apesar dos laços fortes e históricos entre o Brasil e os países da América do Sul, a política externa do país em relação aos vizinhos foi uma das áreas mais impactadas pela mudança de perfil da diplomacia brasileira sob Bolsonaro. 

A avaliação faz parte do um artigo acadêmico South America at the core of Brazilian foreign policy during Bolsonaro’s administration (2019-2022), recém-publicado pela Revista Brasileira de Política Internacional. De acordo com Miriam Gomes Saraiva, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora do estudo, enquanto Lula havia priorizado a construção de uma governança sul-americana em que o Brasil tivesse um papel decisivo em processos de integração, colocando o país na liderança regional, o governo Bolsonaro rompeu com a tradição da diplomacia brasileira e defendeu uma nova narrativa para a identidade internacional do Brasil.

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O ex-presidente priorizou laços do país com o Ocidente de forma mais ampla, fazendo com que a América do Sul deixasse de ser uma prioridade para o Itamaraty. Essa posição se tornou ainda mais entrincheirada a partir do momento em que líderes de esquerda começaram a vencer eleições em países importantes para as relações regionais, como a Argentina, o Chile e a Colômbia. 

Apesar de uma outra pesquisa recente ter mostrado que a guinada do Itamaraty sob Bolsonaro tenha sido mais marcada por uma mudança retórica do que uma transformação na prática da diplomacia, Saraiva alega que a política externa do presidente de extrema-direita mudou marcadamente em relação a seu foco na integração e em iniciativas de cooperação com a América do Sul que existiam em um padrão já estabelecido pelo país.

É este perfil de um Brasil integrado e atento à cooperação regional que Lula tenta reconstruir em seu novo governo. Por mais que a identificação do país com os vizinhos e a aspiração de usar a liderança regional como trampolim global também tenham seus críticos entre acadêmicos e diplomatas (ou seja, vista como um passo desnecessário), a cooperação volta a ser prioridade. O novo governo retoma a ideia de que um protagonismo regional pode ajudar o Brasil a convencer o mundo de que está pronto para ter um papel importante na política global.


*Daniel Buarque é editor-executivo e colunista do portal Interesse Nacional. Doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP, é jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor dos livros “Brazil, um país do presente” (Alameda) e “O Brazil É um País Sério?” (Pioneira).

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Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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