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Interesse Nacional
16 fevereiro 2023

Daniel Buarque – O ChatGPT e o Brasil como um peão na geopolítica global

Piada desenvolvida por ferramenta de inteligência artificial revela a percepção externa de que o país não tem relevância no tabuleiro da política internacional. Estudo sobre o status do Brasil mostra, entretanto, que o ‘peão’ pode ter relevância no xadrez global, e que a metáfora pode ajudar o país a construir estratégias para buscar a sua promoção a um ator de maior prestígio

Piada desenvolvida por ferramenta de inteligência artificial revela a percepção externa de que o país não tem relevância no tabuleiro da política internacional. Estudo sobre o status do Brasil mostra, entretanto, que o ‘peão’ pode ter relevância no xadrez global, e que a metáfora pode ajudar o país a construir estratégias para buscar a sua promoção a um ator de maior prestígio

Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Joe Biden e suas equipes durante reunião na Casa Branca (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Por Daniel Buarque*

“Por que a política externa brasileira sempre se parece com um jogo de xadrez? Porque sempre tem algum país jogando com o Brasil como peão”. A “piada” foi elaborada pela ferramenta de inteligência artificial ChatGPT em um teste informal realizado pelo advogado Ronaldo Lemos para a sua coluna na Folha de S.Paulo. Discussões sobre a qualidade do humor do robô à parte, a brincadeira revela uma faceta real e importante da projeção internacional do Brasil, e repete uma ideia que de fato tem força na forma como o país constrói seu lugar no mundo.

Em minha pesquisa de doutorado sobre a percepção externa a respeito do status do Brasil, uma das principais descobertas foi que as grandes potências do mundo de fato veem o país como um peão, uma peça pouco relevante no xadrez global. Apesar dessa imagem aparentemente desdenhosa, entretanto, as nações mais poderosas do mundo também querem que este Brasil pouco relevante em temas de peso na política global esteja alinhado a elas. Mais do que isso, se esforçam para que o Brasil não se alie a seus adversários em disputas internacionais. A ideia, portanto, é de que o país é visto como um peão, mas um peão disputado e cobiçado pelas grandes potências.

‘O país é visto como um peão, mas um peão disputado e cobiçado pelas grandes potências’

Isso fica evidente durante a guerra na Ucrânia, por exemplo, quando o Brasil não é reconhecido como uma nação com peso suficiente para influenciar o conflito, mas ainda assim é pressionado pelos Estados Unidos e Europa a condenar a Rússia, enquanto o governo Putin recebeu o então presidente Jair Bolsonaro às vésperas da invasão e agradeceu a postura brasileira de evitar tomar partido. Nenhum dos dois lados reconhece uma relevância muito grande do país, mas ambos querem o Brasil como aliado.

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A ideia de que o Brasil é um peão da política internacional está bem estabelecida na literatura sobre a política externa do país e na forma como ele é tratado pelas nações mais poderosas do mundo. 

Após a independência, no século XIX, por exemplo, o Brasil passou a ser usado como peão diplomático até mesmo por potências menores da região, como Argentina e Chile, que jogaram com o Brasil para defender seus próprios interesses, diz Joseph Smith. Durante o século XX, o país foi tratado por estados poderosos como “um peão econômico ou político que poderia ser tratado de acordo com suas necessidades”, segundo Frank D. McCann. Na Conferência de Versalhes, por exemplo, apesar de sua vontade de se pronunciar nos procedimentos, o Brasil acabou sem influência real nas negociações e “tornou-se um peão no jogo da política das grandes potências”, avalia Smith. Durante a Guerra Fria, toda a América Latina, inclusive o Brasil, tornou-se um peão nas disputas internacionais do conflito, avaliam Jan Black e Orlando Bonturi. Da mesma forma, durante a década de 1990, o Brasil era visto pelos Estados Unidos e outros Estados poderosos como uma ‘potência contingente’, percebida como importante apenas na medida em que era relevante para os interesses em jogo das grandes potências, segundo Scott Tollefson.

Dicionários costumam definir “peão” em referência ao jogo de xadrez como “uma das peças menos valiosas”. Mais relacionado com o significado utilizado para se referir ao Brasil, entretanto, um peão é tradicionalmente definido como “uma pessoa ou organização que não tem nenhum poder real, mas é usado por outros para conseguir algo’, ou ‘uma pessoa que é controlada por outros e usada para sua própria vantagem’. 

Apesar de não serem valorizados, os peões podem ser fundamentais para um bom enxadrista, o que pode justificar por que podem ser cobiçados, como no caso do Brasil na política global. 

‘A versatilidade do peão levou alguns jogadores e estudiosos do jogo a chamá-lo de “a alma” do xadrez, a vida do jogo’

Peões têm a possibilidade de criar ataque e defesa e também trazem versatilidade ao tabuleiro, pois têm de se deslocar para permitir a participação de outras peças, podem tornar-se estratégicos e oferecer vantagens ao jogador. Essa versatilidade do peão levou alguns jogadores e estudiosos do jogo a chamá-lo de “a alma” do xadrez, a vida do jogo. As razões para esta valorização são o fato de existirem muitos peões no tabuleiro e de eles ditarem se as outras peças têm espaço de manobra, enquanto outras peças têm de recuar ou mover-se à sua volta evitando serem capturadas por um peão tão humilde. Além disso, eles podem agir em conjunto para criar uma “formação” que pode fazer uma grande diferença na forma como o jogo se desenrola. Os peões também têm a capacidade de se transformar. Assim que um peão atinge a oitava fileira, ele pode ser imediatamente promovido a qualquer peça do jogo, com base na preferência do jogador. O peão pode se tornar uma rainha, bispo, torre ou cavalo. 

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No contexto das relações internacionais, entretanto, a metáfora também oferece esperança para um país que por tanto tempo aspira a um papel mais importante na política global. Por um lado, é possível argumentar que os peões são relevantes em RI da mesma forma como alguns autores dizem que podem ser no xadrez. Eles podem ser relevantes para defesa e ataque e ajudar peças mais poderosas a se posicionarem no tabuleiro. Quando juntos, a formação de Estados-peões pode fazer a diferença no contexto da política global, assim como o multilateralismo pode tornar um Estado-peão mais poderoso e relevante. 

A “formação” de peões também parece uma analogia interessante com o trabalho que o Brasil desenvolveu tentando angariar apoio de outros países emergentes do Sul Global na tentativa de se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, por exemplo. Acreditava-se que esse apoio a outros “peões” em potencial permitiria aumentar seu status e torná-lo mais importante nas relações globais.

‘A metáfora do xadrez pode oferecer esperança de que um Estado-peão possa ser promovido em sua busca por status internacional’

Em última análise, a metáfora do xadrez pode oferecer esperança de que um Estado-peão possa ser promovido em sua busca por status internacional. Um país que inicia o jogo de xadrez geopolítico sendo menos valorizado, pouco respeitado e limitado em suas ações pode apostar em sua versatilidade para trazer mais “alma” ao jogo. Um humilde peão pode trabalhar duro em todo o tabuleiro e acabar do outro lado, ganhando uma promoção. 

No caso do status do Brasil, a percepção externa é que essa trajetória deve começar com o foco em resolver problemas domésticos que parecem limitar a capacidade do país. Além disso, o Brasil também pode dar atenção especial a áreas nas quais ele pode fazer diferença em política externa, como a política ambiental e as mediações de paz, que podem ser pensadas como uma metáfora para essa longa marcha de um peão. Se o país for capaz de desenvolver sua economia, estabilizar sua política, tornar-se um líder regional, um líder ambiental e continuar a defender a paz e a soberania, poderá chegar a um ponto em que poderá ser promovido ao nível de uma peça mais valiosa no jogo. 


*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. É jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor dos livros “Brazil, um país do presente” (Alameda) e “O Brazil É um País Sério?” (Pioneira).


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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