25 maio 2023

Reação a caso Vinicius Jr. ilustra diferenças na abordagem sobre o racismo entre Lula e Bolsonaro

Postura dura do governo em defesa do jogador brasileiro ganhou tons políticos e foi chamada até de crise diplomática com a Espanha. Atitude é parte de uma guinada antirracista sob Lula e se enquadra no rompimento com o governo anterior e na tentativa de aumentar o prestígio do país no mundo

Postura dura do governo em defesa do jogador brasileiro ganhou tons políticos e foi chamada até de crise diplomática com a Espanha. Atitude é parte de uma guinada antirracista sob Lula e se enquadra no rompimento com o governo anterior e na tentativa de aumentar o prestígio do país no mundo

O jogador de futebol brasileiro Vinícius Jr., alvo de ataques racistas na Espanha (Foto: Reprodução/Twitter)

Por Daniel Buarque*

O mais recente e polêmico caso de racismo contra o jogador brasileiro Vinicius Junior, do Real Madrid, ultrapassou o futebol, ganhou tons políticos e passou a ser visto até mesmo como um incidente diplomático entre Brasil e Espanha. As manifestações enérgicas do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e a cobrança por respostas do governo espanhol, da autoridade de futebol do país e da Fifa ganharam visibilidade internacional e se tornaram mais um importante símbolo das transformações da política brasileira e da sua postura global após a troca de governos em 1º de janeiro.

Enquanto o governo de Jair Bolsonaro negava a existência do racismo e impulsionava a discriminação com discursos de ódio, alimentando uma imagem internacional bastante negativa, Lula tenta mudar a abordagem do Brasil em relação à questão racial e busca colocar o governo na vanguarda da luta antirracista, e não apenas no âmbito doméstico. Apesar de o Brasil estar bem longe de resolver seu próprio problema nesta área, o novo governo se posiciona até mesmo sobre o que seria crime em outro país, numa evidência de uma posição bem diferente do que se viu entre 2019 e 2022.

‘Durante o governo de extrema-direita houve um claro retrocesso na questão racial no Brasil’ 

É verdade que o racismo no Brasil não começou com Bolsonaro e que sua negação tem raízes históricas, como explicou uma reportagem da revista Time. Desde o fim da escravidão, as elites do país promoveram a ideia do Brasil como uma “democracia racial” com base na ideia de que a miscigenação dá uma flexibilidade à questão de raça no Brasil, reduzindo tensões que são evidentes nos EUA. Ainda assim, durante o recente governo de extrema-direita houve um claro retrocesso na questão racial no Brasil. E o presidente apareceu com frequência na mídia internacional como um político que rejeitava a luta contra o preconceito e a discriminação –com ações que colocavam em risco as minorias.

A imagem do próprio ex-presidente era fortemente associada à ideia de racismo. Em 2019, a ONG Survival International elegeu Bolsonaro o racista do ano, alegando que “seu racismo repulsivo e suas políticas perigosas colocam povos inteiros e o futuro de nosso planeta em risco”. Já o estudo Quilombolas contra Racistas registrou 94 declarações racistas de autoridades das três esferas de governo entre 2019 e 2021. 

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/pele-foi-apanhado-pelo-racismo-a-brasileira-mas-manteve-se-firme-enquanto-a-ditadura-tentava-mante-lo-jogando/

Uma reportagem da revista The New Yorker em 2020 alegou que a resposta do governo dele à pandemia expunha o racismo sistêmico do país. “Bolsonaro rejeita a existência de racismo sistêmico no Brasil e, desde sua eleição, tenta reverter programas do governo destinados a ajudar grupos marginalizados”, dizia. De fato, Bolsonaro negou o problema da discriminação no país e disse que o racismo é um problema insignificante no Brasil.

Em um artigo acadêmico publicado em 2021, o professor David Treece, do King’s College London, analisou o que via como o crescimento do racismo no Brasil e apontou para sua relação com declarações de ódio do governo Bolsonaro. 

“O novo racismo deve ser entendido como a reafirmação do projeto neoliberal da forma histórica particular de capitalismo racial que o bolsonarismo foi designado para restabelecer, que rotineiramente descarta a maioria afrodescendente do Brasil como uma ‘população periférica’ transpondo as fronteiras entre inclusão e exclusão”, explica.

‘Para professor, o antirracismo deveria se tornar uma prioridade para a esquerda, a questão nacional do Brasil’

De acordo com Treece, o antirracismo deveria se tornar uma prioridade para a esquerda, não apenas uma entre muitas causas de “justiça social”, mas a questão nacional do Brasil.

Isso parece ser parte da mobilização política do governo de Lula desde o começo do ano. Antes mesmo de assumir a Presidência, Lula indicou Silvio Almeida e Anielle Franco para os ministérios dos Direitos Humanos e da Igualdade Racial, indicando uma mudança de rumo na questão racial no governo e a defesa das minorias. Em março, o presidente lançou um pacote pela igualdade racial e declarou que políticas públicas devem ser antirracistas.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fhoutine-marie-oscar-bbb-e-mayhem-o-pacto-da-branquitude-ilustrado/

Foi neste contexto de mudança de postura em relação ao racismo que Lula cobrou providências da Espanha, para “não permitir que o fascismo e o racismo tomem os estádios de futebol” pelo mundo, e que o ministro da Justiça, Flávio Dino, disse que estudava recorrer ao princípio da “extraterritorialidade” no caso do jogador brasileiro na Espanha. 

‘Com foco em uma doutrina de política externa que busca um lugar de destaque para o Brasil no mundo, Lula tem levado adiante a tentativa de reconstruir pontes que possam ampliar o prestígio do país’

Por mais que este tipo de medida extrema seja de difícil aplicação, essas declarações demarcam mais uma evidência de mudança na postura do governo brasileiro na busca por status internacional. Com foco em uma doutrina de política externa que busca um lugar de destaque para o Brasil no mundo, Lula tem levado adiante a tentativa de reconstruir pontes que possam ampliar o prestígio do país internacionalmente. 

Ainda que a luta contra o racismo não configure entre os caminhos que as grandes potências veem como formas de ampliar o status do Brasil, trata-se de ação contra uma característica fundamental do país. Assim como o problema é antigo, não vai ser resolvido por uma canetada do governo nem desaparecer de uma hora para a outra. Mesmo assim, em vez de fingir ser uma democracia racial, assumir a existência do problema e lutar contra a exclusão de minorias pode ajudar o Brasil a diminuir as desigualdades sociais que afetam o país e a sua imagem, além de ampliar a consolidação da democracia –esses dois pontos, sim, reconhecidos como importantes para que o Brasil tenha um alto nível de prestígio internacional.


*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, pesquisador do pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. É jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor dos livros “Brazil, um país do presente” (Alameda) e “O Brazil É um País Sério?” (Pioneira).


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter