26 novembro 2025

EUA-China – O espetáculo se curva diante da estratégia (segunda parte)

A corrida EUA-China pela hegemonia do poder mundial revela dois descaminhos. A aposta de Trump se fundamenta na crença da “dominância na escalada” com a China e usa como instrumento mágico as tarifas. A China enfrenta desafios derivados de seu próprio sucesso. O projeto de nação de Xi Jinping não pode mais se resumir à prosperidade econômica nem adotar a métrica do crescimento do PIB

Foto: Casa Branca

Disputa pela hegemonia – A ilusão da “dominância na escalada”

A rivalidade EUA-China pela hegemonia do poder mundial sofreu forte inflexão com a subida ao poder de Xi Jinping em 2012, com a eleição de Trump em 2016 e, sobretudo, com a política tarifária do segundo mandato. 

Trump estava convencido de que sua escalada tarifária forçaria Pequim a aceitar acordo altamente vantajoso para os EUA. Como ficou claro no último encontro entre os dois líderes, os EUA foram obrigados a passar da ameaça ao recuo, e a suposta “dominância na escalada” com a China se revelou uma ilusão. 

Essa circunstância, somada ao declínio relativo dos EUA, ao exponencial crescimento econômico e à crescente influência geopolítica da China, podem levar à conclusão de que é inevitável a supremacia de Pequim sobre Washington na disputa pelo poder mundial. 

Entretanto, tal diagnóstico deve ser matizado. O exitoso modelo econômico chinês apresenta graves disfuncionalidades. Em que medida essas deficiências  poderão alterar a disputa entre as duas superpotências?

Direção estatal na macroeconomia e mecanismos de mercado na micro

Como amplamente reconhecido, a grande transformação da China começou em 1978, com Deng Xiaoping e sua visão de que a economia de mercado poderia ser compatível com o socialismo. 

O resultado foi um sistema híbrido que combina centralização política e descentralização econômica, com a peculiaridade de existir forte conexão e até mesmo intimidade entre Estado e setor privado.  

A base do sistema é o mix entre direção estatal em nível macro e mecanismos de mercado, em nível micro. 

Como adverte Keyu Jin, em seu livro A Nova China. Para além do socialismo e do capitalismo. “Assim, é fácil cometer o erro, como fazem muitos especialistas no assunto, de atribuir o sucesso da China ao surgimento de uma economia de mercado ou ao poder de um regime comunista extremamente centralizado. A verdade, no entanto, está em algum ponto entre esses dois extremos.” (Pág.15)

Mudanças radicais nas condições de vida – Da escassez à abundância

O modelo chinês difere tanto de Estados totalmente centralizados (União Soviética), como do federalismo norte-americano. 

Esse sistema híbrido explica as grandes transformações, como aponta Jin. “No decorrer das últimas quatro décadas, mais de 800 milhões de pessoas na China saíram da extrema pobreza … Entre 1978 e 2011, a taxa de crescimento médio do PIB chinês foi de 10% … Nasci nessa era de transformação … No começo da década de 1980, minha família vivia de cupons de alimentação, que eram racionados. … A vida em um apartamento de 20 metros quadrados, com cozinha e banheiro comunitários, era considerada luxuosa. Cozinhávamos em fogões a carvão. … Fazia poucos anos que havíamos entrado na nova era de reformas econômicas de Deng Xiaoping… Foi a passagem da escassez para a abundância.” (Pág. 27).

Da China pobre com igualdade de Mao, para a rica e desigual de Xi Jinping

Mas essa passagem não transcorreu com amenidades. 

Na ideologia, prevaleceu a indiferença de Deng Xiaoping, refletida no conhecido princípio. “Tanto faz que um gato seja branco ou preto, desde que cace ratos.” 

Essa fuga da ideologia condicionou a prioridade ao crescimento e não ao combate à desigualdade. 

“Para que a China pudesse sair da pobreza, um certo número de pessoas teria que ser autorizado a enriquecer primeiro. Essa maré crescente então levantaria todos os barcos e traria ampla prosperidade.” (Pág. 255). 

O país pobre com igualdade da era Mao Zedong se transformou na segunda economia do mundo, com níveis de desigualdade comparáveis aos dos EUA.

A prosperidade chegou, construiu a Fábrica do Mundo, com um nível de investimento que gerou capacidade produtiva muito superior ao nível de consumo interno. Ao mesmo tempo, o motor do crescimento – setor externo – declinou, o que teve como consequência a redução do crescimento do PIB de dois dígitos para 4,5% em 2024.    

Como assinala Keyu Jin, a China tem hoje o segundo maior número de bilionários e a desigualdade migrou dos níveis nórdicos para os norte-americanos. 

“A metade da população chinesa … reúne apenas 15% da renda do país, (em comparação com 12% nos Estados Unidos e 22% na França). … Olhando para o Ocidente, a China observa como o abismo entre ricos e pobres nas economias avançadas tem alimentado a divisão, a desconfiança, a toxicidade e o extremismo – um cenário que o país oriental fervorosamente deseja evitar. … Prefere que seus líderes políticos ditem a música para que as empresas dancem, em vez do contrário, o que inspirou uma ação regulatória contra plataformas de tecnologia e colocou pressão sobre empreendedores ricos.” (Pág, 255) 

Como migrar do excedente de poupança para a expansão do consumo? 

O sonho de Deng Xiaoping era preservar a China como um gigante econômico e um anão político. 

Ele teve sucesso e a mudança nesse modelo só ocorreu com Xi Jinping, quando a China já era a segunda economia do mundo e, obviamente, capaz de assumir a condição de gigante político. Hoje, o desafio da transição na China é econômico, ou seja, deixar de ser um megainvestidor para ser um super consumidor. 

O atual Plano Quinquenal (2026-2030), o décimo quinto desde 1949, diferentemente dos anteriores, prevê crescimento do consumo superior ao do PIB, que, no primeiro semestre de 2025, alcançou 5,3%, mas impulsionado pelo binômio tradicional – indústrias e exportações.  

O consumo como percentagem do PIB mundial é 73%, sendo na China bem inferior, de 53%. Embora seja o maior exportador mundial, com 30% do total de produtos industrializados, a China responde apenas por 18% do consumo global. 

Mesmo antes do tarifaço de Trump, muitos estudos indicavam que a China precisava alterar seu modelo econômico, de forma a privilegiar o consumo, ao invés do investimento. 

As razões eram muitas: declínio da globalização; aumento do protecionismo mundial; redução da relação capital/produto na China; e elevação da capacidade ociosa.  

De certa forma a redução do investimento já vem ocorrendo, mas em ritmo muito lento. 

Por exemplo, segundo The Economist de 11 de 0utubro e de 3 de novembro, a fraca demanda doméstica está causando deflação – o índice  de preços ao consumidor caiu 0,4% em agosto, em comparação com um ano antes. Da mesma forma, nos primeiros nove meses de 2025, o investimento foi negativo em 0,5%, em comparação com igual período do ano anterior. 

Para aumentar o consumo de forma significativa, o atual Plano Quinquenal precisaria injetar recursos na rede de proteção social, dirigidos aos mais pobres, de forma a convencê-los a reduzir a poupança destinada à aposentadoria (na China não há INSS). O gasto em políticas sociais vem-se elevando, mas de forma ainda modesta: correspondia a 3% do PIB em 2008, e atingiu 5% em 2023. (The Economist, 25 de julho de 2024)

Embora o baixo consumo como proporção do PIB seja uma realidade na China, para a maioria dos analistas o problema fundamental da economia  reside na superprodução, resultante do padrão histórico, desde Deng Xiaoping, de estimular a produção e a exportação. 

Esse ponto fica muito claro no artigo The China´s model fatal flaw. Why Beijing can´t overcome overcapacity, de Lizzi C. Lee (Foreign Affairs, November/December,2025). “ The fundamental problem is rewarding speed and scale over productivity and differentiation. China´s political economy incentivizes business to produce too much.”  Certos resultados do excesso de capacidade produtiva já se notam, tais como redução de lucros e pressões deflacionárias. Vários analistas enfatizam que a China precisa de reformas e que a insistência em avançar ainda mais nas cadeias de produção tenderá a agravar os problemas. 

A pergunta natural resultante desse diagnóstico é onde reside a resistência às reformas destinadas a priorizar o consumo em relação ao investimento. A resposta de Lee é muito direta.  “China´s tendency to overproduce starts in an unlikely place: CCP´s performance and promotion system”. 

Crescimento exitoso do passado mas perigoso no presente

Os líderes políticos ditam a música para que as empresas dancem. Essa metáfora de Keyu Jin descreve bem a economia chinesa. A música é composta pelo PCC e inspirada no sistema de estímulos dirigidos aos agentes do sistema econômico – empresas, bancos e prefeitos. 

Desde a ascensão de Deng Xiaoping em 1978, a prioridade inquestionável é o crescimento econômico. 

Para as empresas isso se reflete em aumento do nível de investimento. O setor financeiro é estimulado na mesma direção pelo sistema tributário. 

Os prefeitos – gestores da economia na sua esfera territorial de atribuição – são igualmente avaliados pelo mesmo critério. 

O sistema de promoções adotado pelo PCC para avaliação de seus quadros também magnifica a importância do crescimento do PIB.   

O excedente de investimento e a consequente superprodução são resultado desse sistema econômico que, nos últimos anos, vem gerando consumo anêmico, capacidade ociosa, guerra de preços, queda de produtividade e outras disfuncionalidades.

Essas evidências exigem mudanças na política econômica, algumas delas previstas no Plano Quinquenal 2026-2030. Entretanto, ainda estão distantes das reformas necessárias – elevação substancial nos gastos sociais, estímulos ao consumo, alterações efetivas no sistema tributário, mudanças nas regras de promoção dos quadros do PCC. 

Diversos analistas tendem a concordar que o modelo de eficácia responsável por alçar a China à liderança mundial em áreas avançadas de tecnologia – carros elétricos, energia limpa, robôs – gerou excesso de produção de aço, de painéis solares. O resultado foi, em muitos casos, um mercado doméstico e internacional próximo da saturação. 

Conclusão: EUA-China – Uma corrida e dois descaminhos.

A corrida EUA-China pela hegemonia do poder mundial revela dois descaminhos. 

A aposta de Trump – Make America Great Again  (MAGA) – se fundamenta na crença da “dominância na escalada” com a China e usa como instrumento mágico as tarifas. 

O país retoma, na terceira década do século 21, a fórmula protecionista da tarifa Smoot-Hawley de 1930, que agravou a depressão, pavimentou a estrada das autocracias nazifascistas e culminou na hecatombe da Segunda Grande Guerra. Ignorar a história tem o custo de repeti-la. 

No caso da política econômica de Trump, o preço já está sendo cobrado. É a América mais pobre, desigual, dividida e isolada de seus aliados históricos. A grandeza retórica transformada em pequenez real.

A China enfrenta hoje grandes desafios, alguns derivados de seu próprio sucesso. O projeto de nação de Xi Jinping não pode mais se resumir à prosperidade econômica nem adotar a métrica do crescimento do PIB. Precisa se redirecionar para o mercado interno, ampliar o consumo. Não pode seguir a trilha rumo a um novo grande salto tecnológico – como parece indicar seu líder. 

O caminho virtuoso desde a década de 1980 se revela tortuoso hoje. A imagem desenhada por Keyu Jin – “arquétipo de um país correndo uma maratona como quem corre os 100 metros rasos” – seria o descaminho da China e deve ser abandonado. O risco é não completar o percurso.

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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