Notice: Function _load_textdomain_just_in_time was called incorrectly. Translation loading for the wordpress-seo domain was triggered too early. This is usually an indicator for some code in the plugin or theme running too early. Translations should be loaded at the init action or later. Please see Debugging in WordPress for more information. (This message was added in version 6.7.0.) in /home/storage/c/6b/bd/interessenaciona1/public_html/wp-includes/functions.php on line 6114
Interesse Nacional
01 fevereiro 2024

Hayle Melim Gadelha: Em busca do soft power perdido

Primeiro ano do novo governo teve mais acertos que tropeços em processo de soerguimento institucional e amadurecimento político. Para diplomata, ao passo em que devemos beneficiar-nos da potente reputação cultural já construída, é necessário, também, mitigar persistentes percepções negativas

Primeiro ano do novo governo teve mais acertos que tropeços em processo de soerguimento institucional e amadurecimento político. Para diplomata, ao passo em que devemos beneficiar-nos da potente reputação cultural já construída, é necessário, também, mitigar persistentes percepções negativas

Ministros e membros do governo acenam durante discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Por Hayle Melim Gadelha*

Ao fim do governo Dilma Rousseff (2011-2016), enquanto a unipolaridade norte-americana se dissolvia em uma ordem de contornos ainda pouco definidos, almejávamos certa liderança de um sistema multipolar baseado em regras equilibradas que favorecessem o desenvolvimento dos países emergentes. 

Naquele momento, o Brasil ocupava a 24ª posição no ranking Soft Power 30 e a 22ª no Monocle Soft Power. O Global Soft Power Index de 2023, de metodologia comparável, mostra-nos na 31ª colocação (Brand Finance, 2023). A falha proteção ambiental, a corrupção, o desprezo pelos direitos humanos, a desigualdade e a violência minam a credibilidade do país. De outro lado, a riqueza cultural constituiu, historicamente, o principal fator para que nos tornássemos conhecidos e reconhecidos como capazes de aportar à comunidade internacional (Gadelha, 2023). 

‘A partir de contribuições como a arquitetura moderna, a bossa nova e a arte concreta deixamos para trás a imagem de um latifúndio monocultor escravista’

A partir de contribuições como a arquitetura moderna, a bossa nova e a arte concreta deixamos para trás a imagem de um latifúndio monocultor escravista. Já nos anos 1990, as políticas exteriores de “renovação de credenciais” e “autonomia pela participação” (Fonseca Jr., 1998) e o papel proeminente nas agendas de desenvolvimento, de direitos humanos e ambiental permitiram ao país não só afirmar seu peso mas sua vontade e faculdade de tomar parte na definição das pautas globais. 

No início deste século, atribuiu-se prioridade sem precedente à inclusão social; a até então a marginalizada população negra ocupou o centro das políticas públicas; e sobressaiu uma cultura popular diversa, que ecoava a concepção diplomática “ativa e altiva” (Amorim, 2015) de um mundo polifônico. Enquanto o ministro da Cultura Gilberto Gil (en)cantava no plenário das Nações Unidas (Google Arts & Culture), o Brasil sediava megaeventos esportivos e era percebido como o grande país emergente atento aos princípios democráticos, aberto aos investimentos e com a visão de um mundo sem fome, pacífico e equânime.

‘As sucessivas crises econômicas, políticas, sociais – e mais recentemente sanitária e civilizatória – deslocaram o espaço do Brasil na governança e no imaginário internacionais’

As sucessivas crises econômicas, políticas, sociais – e mais recentemente sanitária e civilizatória – deslocaram o espaço do Brasil na governança e no imaginário internacionais. O completo descompasso entre, de um lado, os valores e normas predominantes no concerto das nações e, de outro, a política, a diplomacia e a projeção cultural dos últimos anos excluiu o governo brasileiro dos círculos decisórios e tornou o país um pária aos olhos da opinião pública. 

Em organismos multilaterais, o Brasil passou a combater suposto “marxismo cultural” e outras formas de “progressismo”. Diante da iconografia de covas a céu aberto para as vítimas da gestão da Covid-19, queimadas recordes na Amazônia e crescente pobreza e intolerância, pode até surpreender que não tenhamos perdido ainda mais posições nos rankings de soft power

‘O Festival do Futuro deu o tom e a cara do Brasil de 1º de janeiro de 2023 em diante: um país ecumênico, inclusivo, colorido e sofisticado’

O Festival do Futuro, que festejou a posse do presidente Lula, deu o tom e a cara do Brasil de 1º de janeiro de 2023 em diante: um país ecumênico, inclusivo, colorido e sofisticado (Gadelha, 2023). A restauração do Ministério da Cultura, sob a figura representativa de Margareth Menezes e com o orçamento mais alto de sua história, devolveu ares de normalidade ao sistema cultural. 

No front externo, colhemos alguns frutos alvissareiros. Em 2023, o Brasil conquistou, pela primeira vez, o Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza. O projeto de Gabriela de Matos e Paulo Tavares dialogou com valores contemporâneos prevalecentes na comunidade das nações e propôs utopias de futuro com selo brasileiro. 

O Brasil foi o país homenageado pelo Mercado de Indústrias Culturais da Argentina. Em visita presidencial à China, assinou-se um acordo de fomento do audiovisual televisivo que garante tratamento nacional, mecanismos de incentivo e cotas de exibição para coproduções, o que abre espaço no tradicionalmente fechado e disputado mercado chinês. Em Lisboa, o Ministério da Cultura retomou os aportes governamentais ao programa CPLP Audiovisual, para promover a cooperação e o intercâmbio cultural entre os países lusófonos, e firmou protocolo de financiamento de coproduções com Portugal. 

Apoio conjunto do Ministério da Cultura, do Itamaraty e da Apex permitiu a presença robusta do país no Marché du Film de Cannes, com o mote ‘O Brasil Voltou’. A visibilidade da luta pelos direitos indígenas marcou o festival, por onde passaram o cacique Raoni e Sonia Guajajara, a titular do recém-fundado Ministério dos Povos Indígenas. A Bienal de São Paulo, segunda do mundo e possivelmente o mais cosmopolita dos eventos culturais brasileiros, exibiu 80% de artistas não brancos. 

No mesmo sentido, o Itamaraty vem apoiando, por meio do programa Brasil em Sabores, campanha de gastrodiplomacia que enfatiza os aspectos de solidariedade, sustentabilidade e ancestralidade de nossa culinária (Gadelha, 2023). O Brasil assumiu, em 2023, as presidências pro tempore do Grupo de Trabalho de Cultura do G20 e do Mercosul Cultural, esta encerrada em novembro, no coração da Amazônia, com o Mercado de Indústrias Culturais do Brasil, retribuindo homenagem à parceira estratégica Argentina. 

‘Voltamos a apostar na cultura para elevar nossa posição, internacionalizar nossa produção e influenciar positivamente as agendas multilaterais’

Voltamos a apostar na cultura para elevar nossa posição, internacionalizar nossa produção e influenciar positivamente as agendas multilaterais. Nosso setor cultural, que responde por mais de 3% do PIB (Itaú Cultural, 2023), já deu provas da vocação para transformar o lugar do Brasil no mundo. A centralidade finalmente conferida aos povos originários – agora dotados de um Ministério – nas políticas culturais legitima o esforço de repaginar-se como uma potência ambiental, de maneira análoga ao papel que as políticas de inclusão racial e de combate à fome – com a criação das respectivas Pastas em 2003 – cumpriram para a reputação de um país comprometido com o desenvolvimento igualitário. 

Conforme o presidente proclamou ante à Assembleia-Geral da ONU, “o mundo inteiro sempre falou da Amazônia. Agora, a Amazônia está falando por si” (Presidência da República, 2023). A ideia de uma “potência verde” sobrevém, necessariamente, políticas públicas ousadas que logrem aproveitar a melhor vantagem comparativa de que o país dispõe: sua capacidade de formular e exportar um modelo de desenvolvimento que contemple todos os aspectos da sustentabilidade (Gadelha, 2022), tema fundamental em que se demanda liderança brasileira.

‘O soft power em que nos apoiamos no passado jamais suplantou nosso poder econômico e militar’

O soft power em que nos apoiamos no passado jamais suplantou nosso poder econômico e militar. E o tipo de associações em que nossa reputação se amparou, por sua vez, nem sempre se reverteu nos dividendos políticos e econômicos esperados, já que, não raro, remetia a uma imagem decorativa (Buarque, 2022). 

Passado um ano de mais acertos que tropeços, de soerguimento institucional e amadurecimento político, é preciso levar adiante agenda propositiva e converter o simbolismo da ministra em resultados que correspondam aos interesses da sociedade brasileira. Assim, ao passo em que devemos beneficiar-nos da potente reputação cultural já construída –amplificada pelas mensagens de sustentabilidade e incorporação real das populações originárias –, é necessário, também, mitigar persistentes percepções negativas. 


*Hayle Melim Gadelha é colunista da Interesse Nacional, diplomata e doutor em relações internacionais pelo King’s College London. Suas opiniões pessoais não necessariamente refletem a posição oficial do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

Leia mais artigos de Hayle Melim Gadelha


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Referências:

Amorim, Celso Teerã, Ramalá e Doha: Memórias da Política Externa Ativa e Altiva [Livro]. – São Paulo : Benvirá, 2015.

Brand Finance Global Soft Power Index [Online] // Brand Finance Directory. – 2023. – 20 de Agosto de 2023. – https://brandirectory.com/softpower/.

Buarque, Daniel O Brazil é um País Sério? [Livro]. – São Paulo : Pionera, 2022.

Fonseca Jr., Gelson A legitimidade e outras questões internacionais [Livro]. – São Paulo : Paz e Terra, 1998.

Gadelha, Hayle A cara do Brasil no Festival do Futuro [Online] // Interesse Nacional. – 14 de Fevereiro de 2023. – 9 de Setembro de 2023. – https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/hayle-melim-gadelha-a-cara-do-brasil-no-festival-do-futuro/.

Gadelha, Hayle Mentes, corações e estômagos. Interesse Nacional. [Online] // Interesse Nacional. – 29 de Março de 2023. – 19 de Outubro de 2023. – https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/hayle-melim-gadelha-mentes-coracoes-e-sstomagos/.

Gadelha, Hayle Quem te viu, quem te verde: não basta ser sustentável, é preciso projetar-se [Periódico]. – São Paulo : Interesse Nacional, 2022. – 59.

Itaú Cultural PIB da economia da cultura e das indústrias criativas: a importância da cultura e da criatividade para o produto interno bruto brasileiro [Relatório]. – São Paulo : Itaú Cultural, 2023.

Presidência da República Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura da 78ª Assembleia da ONU [Online] // Planalto. – Presidência da República, 19 de Setembro de 2023. – 19 de Setembro de 2023. – https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2023/discurso-do-presidente-luiz-inacio-lula-da-silva-na-abertura-da-78a-assembleia-da-onu.

Show da Paz Gilberto Gil na Onu [Online] // Google Arts & Culture. – Google. – 25 de Agosto de 2023. – https://artsandculture.google.com/asset/gilberto-gil-s-concert-for-peace-at-the-un/fQH6KUsdPTpgsw.

Hayle Melim Gadelha é colunista da Interesse Nacional, diplomata e doutor em relações internacionais pelo King’s College London. É autor do livro "Public Diplomacy on the Front Line: The exhibition of modern Brazilian paintings". (Anthem Press).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter