Hayle Melim Gadelha: Em busca do soft power perdido
Primeiro ano do novo governo teve mais acertos que tropeços em processo de soerguimento institucional e amadurecimento político. Para diplomata, ao passo em que devemos beneficiar-nos da potente reputação cultural já construída, é necessário, também, mitigar persistentes percepções negativas
Primeiro ano do novo governo teve mais acertos que tropeços em processo de soerguimento institucional e amadurecimento político. Para diplomata, ao passo em que devemos beneficiar-nos da potente reputação cultural já construída, é necessário, também, mitigar persistentes percepções negativas
Por Hayle Melim Gadelha*
Ao fim do governo Dilma Rousseff (2011-2016), enquanto a unipolaridade norte-americana se dissolvia em uma ordem de contornos ainda pouco definidos, almejávamos certa liderança de um sistema multipolar baseado em regras equilibradas que favorecessem o desenvolvimento dos países emergentes.
Naquele momento, o Brasil ocupava a 24ª posição no ranking Soft Power 30 e a 22ª no Monocle Soft Power. O Global Soft Power Index de 2023, de metodologia comparável, mostra-nos na 31ª colocação (Brand Finance, 2023). A falha proteção ambiental, a corrupção, o desprezo pelos direitos humanos, a desigualdade e a violência minam a credibilidade do país. De outro lado, a riqueza cultural constituiu, historicamente, o principal fator para que nos tornássemos conhecidos e reconhecidos como capazes de aportar à comunidade internacional (Gadelha, 2023).
A partir de contribuições como a arquitetura moderna, a bossa nova e a arte concreta deixamos para trás a imagem de um latifúndio monocultor escravista. Já nos anos 1990, as políticas exteriores de “renovação de credenciais” e “autonomia pela participação” (Fonseca Jr., 1998) e o papel proeminente nas agendas de desenvolvimento, de direitos humanos e ambiental permitiram ao país não só afirmar seu peso mas sua vontade e faculdade de tomar parte na definição das pautas globais.
No início deste século, atribuiu-se prioridade sem precedente à inclusão social; a até então a marginalizada população negra ocupou o centro das políticas públicas; e sobressaiu uma cultura popular diversa, que ecoava a concepção diplomática “ativa e altiva” (Amorim, 2015) de um mundo polifônico. Enquanto o ministro da Cultura Gilberto Gil (en)cantava no plenário das Nações Unidas (Google Arts & Culture), o Brasil sediava megaeventos esportivos e era percebido como o grande país emergente atento aos princípios democráticos, aberto aos investimentos e com a visão de um mundo sem fome, pacífico e equânime.
As sucessivas crises econômicas, políticas, sociais – e mais recentemente sanitária e civilizatória – deslocaram o espaço do Brasil na governança e no imaginário internacionais. O completo descompasso entre, de um lado, os valores e normas predominantes no concerto das nações e, de outro, a política, a diplomacia e a projeção cultural dos últimos anos excluiu o governo brasileiro dos círculos decisórios e tornou o país um pária aos olhos da opinião pública.
Em organismos multilaterais, o Brasil passou a combater suposto “marxismo cultural” e outras formas de “progressismo”. Diante da iconografia de covas a céu aberto para as vítimas da gestão da Covid-19, queimadas recordes na Amazônia e crescente pobreza e intolerância, pode até surpreender que não tenhamos perdido ainda mais posições nos rankings de soft power.
O Festival do Futuro, que festejou a posse do presidente Lula, deu o tom e a cara do Brasil de 1º de janeiro de 2023 em diante: um país ecumênico, inclusivo, colorido e sofisticado (Gadelha, 2023). A restauração do Ministério da Cultura, sob a figura representativa de Margareth Menezes e com o orçamento mais alto de sua história, devolveu ares de normalidade ao sistema cultural.
No front externo, colhemos alguns frutos alvissareiros. Em 2023, o Brasil conquistou, pela primeira vez, o Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza. O projeto de Gabriela de Matos e Paulo Tavares dialogou com valores contemporâneos prevalecentes na comunidade das nações e propôs utopias de futuro com selo brasileiro.
O Brasil foi o país homenageado pelo Mercado de Indústrias Culturais da Argentina. Em visita presidencial à China, assinou-se um acordo de fomento do audiovisual televisivo que garante tratamento nacional, mecanismos de incentivo e cotas de exibição para coproduções, o que abre espaço no tradicionalmente fechado e disputado mercado chinês. Em Lisboa, o Ministério da Cultura retomou os aportes governamentais ao programa CPLP Audiovisual, para promover a cooperação e o intercâmbio cultural entre os países lusófonos, e firmou protocolo de financiamento de coproduções com Portugal.
Apoio conjunto do Ministério da Cultura, do Itamaraty e da Apex permitiu a presença robusta do país no Marché du Film de Cannes, com o mote ‘O Brasil Voltou’. A visibilidade da luta pelos direitos indígenas marcou o festival, por onde passaram o cacique Raoni e Sonia Guajajara, a titular do recém-fundado Ministério dos Povos Indígenas. A Bienal de São Paulo, segunda do mundo e possivelmente o mais cosmopolita dos eventos culturais brasileiros, exibiu 80% de artistas não brancos.
No mesmo sentido, o Itamaraty vem apoiando, por meio do programa Brasil em Sabores, campanha de gastrodiplomacia que enfatiza os aspectos de solidariedade, sustentabilidade e ancestralidade de nossa culinária (Gadelha, 2023). O Brasil assumiu, em 2023, as presidências pro tempore do Grupo de Trabalho de Cultura do G20 e do Mercosul Cultural, esta encerrada em novembro, no coração da Amazônia, com o Mercado de Indústrias Culturais do Brasil, retribuindo homenagem à parceira estratégica Argentina.
Voltamos a apostar na cultura para elevar nossa posição, internacionalizar nossa produção e influenciar positivamente as agendas multilaterais. Nosso setor cultural, que responde por mais de 3% do PIB (Itaú Cultural, 2023), já deu provas da vocação para transformar o lugar do Brasil no mundo. A centralidade finalmente conferida aos povos originários – agora dotados de um Ministério – nas políticas culturais legitima o esforço de repaginar-se como uma potência ambiental, de maneira análoga ao papel que as políticas de inclusão racial e de combate à fome – com a criação das respectivas Pastas em 2003 – cumpriram para a reputação de um país comprometido com o desenvolvimento igualitário.
Conforme o presidente proclamou ante à Assembleia-Geral da ONU, “o mundo inteiro sempre falou da Amazônia. Agora, a Amazônia está falando por si” (Presidência da República, 2023). A ideia de uma “potência verde” sobrevém, necessariamente, políticas públicas ousadas que logrem aproveitar a melhor vantagem comparativa de que o país dispõe: sua capacidade de formular e exportar um modelo de desenvolvimento que contemple todos os aspectos da sustentabilidade (Gadelha, 2022), tema fundamental em que se demanda liderança brasileira.
O soft power em que nos apoiamos no passado jamais suplantou nosso poder econômico e militar. E o tipo de associações em que nossa reputação se amparou, por sua vez, nem sempre se reverteu nos dividendos políticos e econômicos esperados, já que, não raro, remetia a uma imagem decorativa (Buarque, 2022).
Passado um ano de mais acertos que tropeços, de soerguimento institucional e amadurecimento político, é preciso levar adiante agenda propositiva e converter o simbolismo da ministra em resultados que correspondam aos interesses da sociedade brasileira. Assim, ao passo em que devemos beneficiar-nos da potente reputação cultural já construída –amplificada pelas mensagens de sustentabilidade e incorporação real das populações originárias –, é necessário, também, mitigar persistentes percepções negativas.
*Hayle Melim Gadelha é colunista da Interesse Nacional, diplomata e doutor em relações internacionais pelo King’s College London. Suas opiniões pessoais não necessariamente refletem a posição oficial do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Referências:
Amorim, Celso Teerã, Ramalá e Doha: Memórias da Política Externa Ativa e Altiva [Livro]. – São Paulo : Benvirá, 2015.
Brand Finance Global Soft Power Index [Online] // Brand Finance Directory. – 2023. – 20 de Agosto de 2023. – https://brandirectory.com/softpower/.
Buarque, Daniel O Brazil é um País Sério? [Livro]. – São Paulo : Pionera, 2022.
Fonseca Jr., Gelson A legitimidade e outras questões internacionais [Livro]. – São Paulo : Paz e Terra, 1998.
Gadelha, Hayle A cara do Brasil no Festival do Futuro [Online] // Interesse Nacional. – 14 de Fevereiro de 2023. – 9 de Setembro de 2023. – https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/hayle-melim-gadelha-a-cara-do-brasil-no-festival-do-futuro/.
Gadelha, Hayle Mentes, corações e estômagos. Interesse Nacional. [Online] // Interesse Nacional. – 29 de Março de 2023. – 19 de Outubro de 2023. – https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/hayle-melim-gadelha-mentes-coracoes-e-sstomagos/.
Gadelha, Hayle Quem te viu, quem te verde: não basta ser sustentável, é preciso projetar-se [Periódico]. – São Paulo : Interesse Nacional, 2022. – 59.
Itaú Cultural PIB da economia da cultura e das indústrias criativas: a importância da cultura e da criatividade para o produto interno bruto brasileiro [Relatório]. – São Paulo : Itaú Cultural, 2023.
Presidência da República Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura da 78ª Assembleia da ONU [Online] // Planalto. – Presidência da República, 19 de Setembro de 2023. – 19 de Setembro de 2023. – https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2023/discurso-do-presidente-luiz-inacio-lula-da-silva-na-abertura-da-78a-assembleia-da-onu.
Show da Paz Gilberto Gil na Onu [Online] // Google Arts & Culture. – Google. – 25 de Agosto de 2023. – https://artsandculture.google.com/asset/gilberto-gil-s-concert-for-peace-at-the-un/fQH6KUsdPTpgsw.
Hayle Melim Gadelha é colunista da Interesse Nacional, diplomata e doutor em relações internacionais pelo King’s College London. É autor do livro "Public Diplomacy on the Front Line: The exhibition of modern Brazilian paintings". (Anthem Press).
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