O Brasil e a busca por um assento permanente – Diplomacia presidencial como política de Estado
Com novo governo, Brasil traz de volta o apelo por reforma do Conselho de Segurança. Para que ela tenha ocorra, é preciso que a cobrança se torne uma política de Estado, sendo pauta de todos os presidentes
Em visita recente à Etiópia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mencionou, mais uma vez, a necessidade de se ter uma reforma do Conselho de Segurança da ONU (CSNU). Em pouco mais de um ano de governo, Lula citou a reforma provavelmente mais do que todos os últimos três presidentes somados, recuperando a temática como elemento central para a política externa brasileira.
Entrar no Conselho tornou-se, nas últimas décadas, um tema prioritário na agenda de política externa do Brasil. De fato, não é de hoje que governos brasileiros veem a obtenção de um assento no principal órgão multilateral gestor de segurança internacional como um objetivo fundamental.
Ainda na Liga das Nações, houve um claro movimento em prol desse desígnio. A não aceitação brasileira como membro permanente do Conselho Executivo da Liga foi, inclusive, a principal motivação para que o então presidente Júlio Prestes retirasse o Brasil do organismo. Mais tarde, durante as discussões para o desenho institucional da ONU, em seu processo de gestação, o Brasil foi seriamente cogitado para figurar entre os membros permanentes – tentativa, contudo, malograda após a morte de Roosevelt, o principal fiador dessa ideia, como bem retratado pelo diplomata Eugenio Vargas Garcia, e sua obra sugestivamente intitulada de O sexto membro permanente.
O CSNU possui dez assentos rotativos, sendo que dois deles são escolhidos dentre Estados da América Latina e Caribe, grupo conhecido por Grulac. Ao longo da história da ONU, o Brasil procurou se cacifar como um membro recorrente entre os não permanentes. O país figura entre um dos dois Estados que mais vezes ocupou o assento rotativo, eleito 11 vezes – juntamente com o Japão (12 vezes). É um feito considerável, tendo em mente o hiato de 20 anos de ausência, durante a maior parte do período ditatorial (entre 1968-1988) – vale lembrar que não é possível haver reeleição de membro rotativo para termo subsequente.
Uma reforma do CSNU demanda uma emenda à Carta da ONU, aprovada por 2/3 dos membros da Assembleia Geral (AGNU), e posteriormente ratificada pelos próprios membros do Conselho – também por 2/3 –, tendo de ser, necessariamente, chancelada por todos os membros permanentes.
Na prática, os cinco membros permanentes (P5) possuem um veto implícito no caso de reformas do órgão. Após uma aprovação de reforma, os novos membros seriam eleitos pela Assembleia Geral (AGNU). Vale lembrar que o Conselho já foi reformado: entre 1963 (resolução 1991) e 1965, os membros da ONU aprovaram a ampliação do número de assentos rotativos de 6 para 10. Essa, no entanto, foi a única reforma institucional ocorrida desde 1945 até hoje.
Em um relato pessoal de memória, Celso Amorim – capítulo do livro Brasil e as Nações Unidas: 70 anos – aponta como já no início da Nova República o presidente José Sarney trouxe o tema da reforma para a agenda diplomática presidencial. Essa diplomacia presidencial foi reforçada pelo então presidente Itamar Franco, que, por influência de Amorim (em suas palavras), inseriu o tema em discurso feito à Assembleia Geral.
A diplomacia presidencial, contudo, atingiu o patamar mais alto no primeiro governo Lula, quando foi lançado o G4: grupo composto por Brasil, Índia, Alemanha e Japão. Como proposta, a iniciativa previa dez novos assentos, 6 permanentes e 4 rotativos. Como permanentes, além dos quatros países referidos, haveria ainda dois africanos. Um elemento importante da reforma, um artifício de barganha com as grandes potências, foi o fato de que os novos membros não teriam direito a veto.
Apesar de grande destaque, a iniciativa estagnou em poucos anos. Isso ocorreu não só por países refratários como Estados Unidos e China, mas também por uma falta de consenso verificada no âmbito do próprio Sul Global. Propostas antagônicas, notadamente a Unidos pelo Consenso, revelaram uma clara falta de coesão dos países do Sul; rivalidades regionais se sobrepuseram a uma ideia de reforma nos termos propostos pelo G4. Divergências complementares sobre a proposta também pesaram para seu malagro, como a mudança de posição de alguns Estados africanos, que passaram a exigir direito de veto. Formalmente, a iniciativa ainda continua ativa, com reuniões com certa regularidade entre os corpos diplomáticos do G4, mas sem grandes apelos políticos, como na primeira década dos anos 2000 – pelo menos até a entrada do governo Lula.
O que mudou com o governo Lula 3? Claramente, Lula e Amorim decidiram trazer a ideia de reforma novamente para o centro da agenda de política externa brasileira, inserindo-a no âmbito da diplomacia presidencial. O que tem se verificado é que há uma clara estratégia de inserir a temática, sempre que possível, em qualquer agenda de órgãos multilaterais. Isso vale para diferentes concertações, como o G20 e o Bric.
Por que isso importa? É evidente que por mais vocal e popular internacionalmente que um país e um presidente sejam, uma reforma institucional nesse nível demanda uma grande conjunção de apoios. Mas para que esses apoios surjam, é necessário que um tema sensível como esse esteja vivo na agenda internacional.
Um caso ajuda a ilustrar a importância dessa estratégia. Em conversa com um diplomata brasileiro na ONU, o professor Rafael Mesquita (UFPE), colega de trabalho no Departamento de Ciência Política, questionou por que a ideia de Responsabilidade ao Proteger – conceito lançado pelo Brasil em 2011, como regras de accountability para a Responsabilidade de Proteger – não vingou. Na visão do diplomata, um dos motivos centrais foi que o Brasil deixou justamente de trazer o tema para as agendas de segurança e humanitárias. Ele citou o caso dos países do Pacífico que correm risco de desaparecer, segundo ele, em todas as agendas possíveis, eles sempre colocam a questão climática no seio das discussões que participem.
De maneira acertada, o Brasil traz de volta, em seu mais alto nível diplomático, a questão da reforma. Para que ela tenha sucesso, esse comportamento de deixar o tema sempre latente é um dos pré requisitos fundamentais que podem ser adotados. A reforma deve ser vista como uma maratona, não como uma prova de 100 metros. É preciso resistência e constância. Mas para que isso ocorra, é essencial que a estratégia de deixar o tema em evidência, notadamente na diplomacia presidencial, seja adotada por diferentes governos, é preciso que se torne uma política de Estado. Esse é um grande desafio que a burocracia do Itamaraty, já que caberá a ela, convencer diferentes presidentes a, no futuro, manter viva essa diplomacia presidencial.
Miguel Mikelli Ribeiro é colunista do Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em RI pela Universidade Estadual da Paraíba e doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor do livro "Política internacional contemporânea: questões estruturantes e novos olhares".
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional