29 janeiro 2024

A síndrome do eterno retorno e crise da política norte-americana

Dentro da lógica binária da política estadunidense, tudo indica que as próximas eleições presidenciais serão definidas, novamente, pelo trumpismo e pelo anti-trumpismo. O quadro eleitoral já começou a se desenhar em linhas bem claras em uma nova disputa entre um Biden buscando de maneira quase inercial sua reeleição e Trump com chances reais de voltar ao poder

Dentro da lógica binária da política estadunidense, tudo indica que as próximas eleições presidenciais serão definidas, novamente, pelo trumpismo e pelo anti-trumpismo. O quadro eleitoral já começou a se desenhar em linhas bem claras em uma nova disputa entre um Biden buscando de maneira quase inercial sua reeleição e Trump com chances reais de voltar ao poder

Donald Trump e Joe Biden durante debate presidencial em 2020 (Foto: Reprodução/Misouri Ind)

Por Rafael R. Ioris*

Os Estados Unidos vivem hoje em uma encruzilhada histórica definida por ecos de um passado que parece não querer, ou talvez conseguir, ir embora. Frutos de um processo construído há pelo menos 50 anos, quando grupos conservadores começam a se organizar de maneira efetiva para reverter os avanços em políticas sociais e raciais, os últimos ciclos eleitorais têm demonstrado, de maneira cada vez mais clara que o eleitorado norte-americano se encontra hoje profundamente dividido. 

O resultado é que o país como um todo não tem conseguido decidir qual rumo seguir. Afinal, tornar-se-ão os EUA de fato a primeira grande democracia multicultural do século XXI, ou aprofundarão eles suas clivagens estruturais rumo a um um sistema político crescentemente definido pela exclusão do direito ao voto a grupos sociais minoritários, tornando-se, assim, de vez,  um governo de natureza minoritária e oligárquica?

Dentro da lógica binária da política estadunidense, tudo indica que as próximas eleições presidenciais, chave para determinar os rumos do país e mesmo do mundo como um todo, serão definidas, novamente, pelo trumpismo e pelo anti-trumpismo. E embora faltem meses para o pleito de novembro de 2024, o quadro eleitoral já começou a se desenhar em linhas bem claras: teremos novamente uma disputa entre um Biden buscando de maneira quase inercial sua reeleição e Trump, ou pelo menos alguém proximamente alinhado às suas posições – definindo-se, assim, uma revanche histórica que a maioria dos eleitores gostaria de evitar. 

‘A se confirmar, revanche entre Biden e Trump apresentará uma disputa bastante acirrada, mas que não apresenta nenhuma novidade’

A se confirmar, tal cenário apresentará uma disputa bastante acirrada, mas que não apresenta nenhuma novidade. O alto grau de indefinição da política norte-americana é algo que vem, de fato, se consolidando já faz tempo, e as últimas eleições nacionais foram um forte retrato disso. Trump chegou a ser derrotado em tentativa de reeleger mais, ainda assim, conseguiu, de maneira preocupante, receber um número maior de votos do que quando foi eleito em 2016. E em 2022, nas últimas eleições congressuais de meio mandato, o ex-presidente duas vezes impeachimado, mesmo não tendo conseguido emplacar candidatos abertamente alinhados ao seu estilo agressivo, conseguiu se consolidar no comando do Partido Republicano, que continua a comandar uma maioria esmagadora nas pequenas cidades e nas áreas rurais da “América Branca”.

Certamente, muitos imponderáveis impactarão os rumos da campanha, o que faz com que não se deva buscar previsões de resultados, mas sim, alternativamente, refletir sobre elementos que poderão ajudar a definir os rumos políticos do país. 

‘Trump enfrenta inúmeros processos legais graves, incluindo a imputação de um possível crime de sedição, o que poderá imprimir desdobramentos inesperados ao pleito’

Um desses elementos, talvez o mais decisivo, refere-se aos crescentes percalços legais que o ex-presidente enfrentará pela frente. Trump enfrenta inúmeros processos legais graves, incluindo a imputação de um possível crime de sedição, o que poderá imprimir desdobramentos inesperados ao pleito, ainda que sua capacidade de se valer de subterfúgios processuais para impedir uma condenação até novembro de 2024 seja impressionante. 

Do lado democrata, é quase impossível imaginar um nome alternativo ao de Biden, a menos que algo inusitado venha a ocorrer. Contudo, embora sem concorrentes, o atual mandatário terá um enorme trabalho para empolgar sua base a ir às urnas. E esse é o ponto chave em um país profundamente dividido e onde o voto é facultativo. 

De maneira muito clara, nos EUA as eleições tendem a ser definidas pelo comparecimento efetivo dos apoiadores de cada candidato, já que cada lado possui um número similar de afiliados. Tal tarefa não será fácil dado, especialmente junto a segmentos latinos organizados, crescentemente importante em estados-chave como Georgia e Nevada. Talvez um pouco mais garantido, o voto afro-americano feminino, especialmente após a decisão da Suprema Corte norte-americana de derrubar a garantia do acesso ao direito ao aborto em nível nacional, oferece alguma margem de conforto para Biden. 

‘Revanche histórica entre Biden e Trump reflete de maneira cristalina a continuidade das divisões profundas que vem definindo a sociedade norte-americana no início do século XXI’

Ocorrendo mesmo uma revanche histórica entre Biden e Trump, teremos não só algo inusitado, mas que também reflete de maneira cristalina a continuidade das divisões profundas que vem definindo a sociedade norte-americana no início do século XXI. Se os democratas conseguirem se manter unidos e mobilizar suas bases – que são mais amplas, mas também mais diversas e menos coesas do que as bases do Partido Republicano – é possível que Biden vença. Mas é também possível que o atual presidente vença no voto popular, mas perca nos votos do Colégio Eleitoral dadas as inúmeras mudanças que legislaturas em Estados têm aprovado e que impõe restrições crescentes no acesso ao voto às minorias étnicas, sociais ou econômicas. 

Esse quadro de profunda divisão se agrava ainda mais dada a realidade do declínio relativo do país em um mundo em grande turbulência, onde cisões Norte-Sul e rivalidades Leste-Oeste se aprofundam. Mas se a urgência de tais questões não poderia ser maior, o quadro eleitoral que se vislumbra no horizonte, a menos de um ano das eleições, é de profunda paralisia. De maneira concreta, aborto, porte de armas, pena de morte, saúde pública etc., assuntos complexos sobre os quais cabem múltiplas abordagens, acabam se alinhando em linhas exclusivas, cuja posição contrária é vista como uma ameaça à própria existência e sentido do engajamento político de cada parte. 

‘Disputa fala cada vez menos sobre políticas públicas e cada vez mais sobre a imagem e modo de vida de cada polo, em uma rivalidade sem reconciliação possível’

Além disso, genuínas noções a respeito da identidade de cada um, por exemplo, sobre sua sexualidade, religião e etnia, são forçadas a se fixar dentro de um dos dois lados binários de uma disputa que fala cada vez menos sobre políticas públicas e cada vez mais sobre a imagem e modo de vida de cada polo, em uma rivalidade sem reconciliação possível. Tais divisões vêm assumindo cada vez mais contornos geográficos, dificultando ainda mais a possibilidade de negociação. Eleitores de um lado não convivem mais com eleitores do outro. Cidades grandes, onde o poder aquisitivo médio e nível educacional são maiores, tendem a votar cada vez mais nos Democratas, ao passo que cidades pequenas e zonas rurais, com crescimento econômico e padrão de formação mais baixos, se consolidam como redutos republicanos. 

É esse alto grau de polarização que, por fim, ajuda a entender que, mesmo em meio a uma das maiores crises econômicas e sanitárias que o país já enfrentou, Trump tenha conseguido receber 7 milhões a mais de votos em 2020 do que em 2016. Parece mesmo plausível supor que, caso a crise da Covid-19 não tivesse existido e, assim, a economia estivesse nos padrões baixos de desemprego do início de 2020, Trump teria provavelmente sido reeleito. Parece também certo que, pelo menos no curto prazo, o Partido Republicano continuará sendo pautado pela agenda e estilo político de Trump. Mas agora, após quase quatro anos de mandato de Biden, seria possível um retorno do autodenominado magnata ao poder dos EUA? 

‘Os que ainda veem como pouco provável um cenário em que Trump possa ser novamente eleito presidente cometem o mesmo erro dos que pensavam que sua candidatura era inviável em 2016’

Entendo, pois, que os que ainda veem como pouco provável um cenário em que Trump possa ser novamente eleito presidente cometem o mesmo erro dos que pensavam que sua candidatura era inviável em 2016. Inúmeras sondagens ao longo dos últimos meses confirmam de maneira clara e conclusiva que o eleitorado continua profundamente dividido, quase nos mesmos parâmetros da última eleição presidencial – o que significa dizer que tudo o que ocorreu nos últimos três anos não teve quase que nenhum efeito decisivo em reconfigurar as preferências eleitorais de cada lado, que parecem atuar, cada vez mais, como blocos inamovíveis. Se houve alguma mudança, foi a favor de Trump que venceria a eleição se ocorresse agora. 

Alguns apontam um quado onde cada lado detêm hoje 45% das intenções de votos, e tenderá a deter os mesmos números daqui a um ano, mas que Biden corre mais risco de perder votos até lá, especialmente agora que o conflito palestino tem começado a provocar erosão de apoio entre minorias sempre decisivas nos estados estados-chave. Além disso, se houver candidatos de outros partido no pleito, o mais provável é que sejam candidatos à esquerda de Biden, portanto tirando seus votos. 

‘A repetição de um pleito tão polarizado, com características de farsa, reflete, de fato, insuficiências mais profundas no funcionamento, talvez mesmo na própria lógica, da política americana como um todo’

Da mesma forma, o alto comprometimento por parte dos apoiadores de Trump em se mobilizarem na defesa de seu líder e, especialmente em comparecerem às urnas no ano que vem, de modo a garantir que ‘seu país não lhes seja roubado’, indica bem a alta probabilidade de que os EUA tenham novamente Trump na Casa Branca a partir de janeiro de 2025. E considerando tudo o que o ex-presidente já fez, buscou fazer e prometeu fazer, caso volte à presidência, esse eventual retorno deveria ser visto como sintoma de uma crise maior. Afinal, a repetição de um pleito tão polarizado, com características de farsa, reflete, de fato, insuficiências mais profundas no funcionamento, talvez mesmo na própria lógica, da política americana como um todo.

Se uma possível volta de Trump ao controle da maior potência militar do mundo é vista como preocupante não só por eleitores democratas, mas mesmo por comentadores dos principais jornais conservadores do mundo, apoiadores de Trump também expressam muito preocupação sobre os prospectos da próxima eleição que veem como inerentemente fraudulenta já, na sua visão, seu líder foi roubado na última eleição – demonstrando, assim, o alto grau de imprevisibilidade, e prováveis atos violentos, relacionados ao próximo pleito presidencial. 

No mesmo sentido, há um sentimento crescente de que a democracia norte-americana como um todo não é, de fato, um sistema político digno de tal designação já que, a maioria de seus membros a veem como um regime oligárquico onde as perspectivas de cada cidadão são, em grande parte, definidas por fatores como renda e raça, e onde a polarização política, crescentemente radicalizada, define o funcionamento do processo decisório. E assim, dentro de um quadro político tão polarizado e preocupante, por mais difícil que seja, parece ser desde já necessário pensar sobre como seria uma segunda presidência de errático e autoritário personagem chamado Donald Trump.  


*Rafael R. Ioris é colunista da Interesse Nacional e professor de história latino-americana no Departamento de História da Universidade de Denver. É pesquisador do Instituto de Estudos dos Estados Unidos no Brasil e autor de vários artigos e capítulos de livros sobre a história do desenvolvimento no Brasil e em outras partes da América Latina e sobre o curso das relações EUA-América Latina, particularmente durante a Guerra Fria. Autor de livros como ‘Qual desenvolvimento? Os debates, sentidos e lições da era desenvolvimentista’, ‘Transforming Brazil: A history of national development in the postwar era’. É non-resident fellow do Washington Brazil Office, em DC.

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Este texto é uma versão de um artigo publicado pelo Inteligência-Insight


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Rafael R. Ioris é professor de história latino-americana no Departamento de História da Universidade de Denver. É pesquisador do Instituto de Estudos dos Estados Unidos no Brasil e autor de vários artigos e capítulos de livros sobre a história do desenvolvimento no Brasil e em outras partes da América Latina e sobre o curso das relações EUA-América Latina, particularmente durante a Guerra Fria. Autor de livros como Qual desenvolvimento? Os debates, sentidos e lições da era desenvolvimentista, Transforming Brazil: A history of national development in the postwar era. É non-resident fellow do Washington Brazil Office, em DC.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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