28 agosto 2023

Turbulência no Equador – Tráfico, massacres de presos e impasse político

Fraturado em sua geografia e em sua sociedade, o país passou por um momento promissor no início do século, mas nos últimos anos caiu na instabilidade política com forte aumento da violência e da criminalidade. Para embaixador, eleições presidenciais podem levar ao aumento do autoritarismo como aconteceu no Brasil sob Bolsonaro

Fraturado em sua geografia e em sua sociedade, o país passou por um momento promissor no início do século, mas nos últimos anos caiu na instabilidade política com forte aumento da violência e da criminalidade. Para embaixador, eleições presidenciais podem levar ao aumento do autoritarismo como aconteceu no Brasil sob Bolsonaro

Indígenas do Equador protestam contra o governo, em 2022 (Foto: Open Democracy)

Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*

O Equador é um país com forte identidade nacional, mas fraturado na geografia, entre a costa liberal e o altiplano conservador, e na sociedade, entre indígenas excluídos e brancos hegemônicos. Esses fatores estruturais explicam em parte a instabilidade política crônica, agravada recentemente pelo assassinato de um candidato presidencial, por trágicos massacres de presos envolvendo máfias do tráfico e por provável impeachment do presidente Guillermo Lasso.

O assassinato do candidato presidencial Fernando Villavicencio, assumido por grupo traficante, deu transparência a uma nova e dura realidade. Embora situado entre os dois maiores produtores de coca do mundo – Colômbia e Peru –, o Equador era pouco afetado até 2015 e 2016. A partir de então, gradualmente, o porto de Guayaquil foi sendo conquistado por organizações criminosas mexicanas, colombianas e europeias. Segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), o país se transformou, nos últimos três anos, em país de origem da droga, responsável por 25% do total apreendido de cocaína na Europa.  

Algumas razões explicam essa triste trajetória. Em 2016, o governo colombiano assinou um histórico acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farc), que eram importante ator no negócio da cocaína. Sua retirada do mercado criou espaço para a entrada de novos grupos, e novas rotas do tráfico ganharam peso, entre elas o Equador. A isso se somou forte aperto na investigação e na fiscalização do tráfico na Colômbia, que procurou portos alternativos para os embarques de cocaína, se tornando Guayaquil o mais importante.

‘Fator relevante nessa migração do tráfico foi o fato de ser o Equador uma economia dolarizada desde 2000, o que facilita tanto o comércio globalizado de cocaína como a lavagem de dinheiro’

Fator relevante nessa migração do tráfico foi o fato de ser o Equador uma economia dolarizada desde 2000, o que facilita tanto o comércio globalizado de cocaína como a lavagem de dinheiro, ambos feitos em dólar. O vulto dessas operações já corresponde hoje à metade do total das principais exportações do Equador (petróleo, camarões, banana, flores e peixe processado).

Embora a dolarização tenha demonstrado ser um antídoto contra a hiperinflação, seu custo social é alto: aumento da desigualdade, elevação do custo de vida e das despesas trabalhistas, o que incentiva a informalidade. Ao agravar esses indicadores sociais, a dolarização alimenta, indiretamente, a criminalidade e o tráfico.

Enquanto na Colômbia o tráfico era controlado por um grupo guerrilheiro e predominava em determinadas regiões do país, o que facilitava operações militares, no Equador esse comércio ilícito está espalhado no território e na sociedade, o que dificulta a repressão armada e facilita sua expansão.

‘O crescimento da cocaína no Equador estimulou de forma marcante o aumento da criminalidade no país’

O crescimento da cocaína no Equador estimulou de forma marcante o aumento da criminalidade no país, que teve como consequência a expansão vertiginosa da população carcerária, da violência e dos motins nos presídios. Em novembro de 2021, massacre em prisão de Guayaquil deixou ao menos 58 mortos, e a decretação de Estado de Emergência nas penitenciárias do país. No final de julho de 2023, novos conflitos armados entre gangues rivais produziram toque de recolher em três províncias da costa, e a morte de mais de 30 pessoas.

Fontes governamentais estimam que cerca de um terço da população carcerária do país é composto por membros de organizações criminosas. Nos primeiros oito meses de 2022, o número de assassinatos dobrou em relação a igual período do ano anterior e fez a taxa de homicídios no país suplantar a do México e da Colômbia.

Os dois fenômenos aqui avaliados – explosão do tráfico de drogas e trágicos motins de presos – potencializam a histórica instabilidade no país, cujo epicentro político reside na resistência das elites à perda de privilégios e na instrumentalização dos movimentos indígenas pelos dirigentes políticos, sobretudo nas duas últimas décadas.

‘A turbulência política crônica do Equador se tornou mais visível a partir dos anos 1980, quando o país teve 13 presidentes em 30 anos’

A turbulência política crônica do Equador se tornou mais visível a partir dos anos 1980, quando o país teve 13 presidentes em 30 anos, sendo dois destituídos por rebeliões populares e um por golpe de Estado. Os mandatos presidenciais têm durado em média apenas dois anos e, em alguns casos, poucos dias.

Talvez um ponto de inflexão para compreender o agravamento dessa vulnerabilidade do sistema político equatoriano sejam os três mandatos consecutivos, no total de dez anos, do presidente Rafael Correa (2007-2017). Antes dele, o país tinha vivido, no final dos anos 1990, grave crise política, resultante, em grande medida, da queda dos preços do petróleo (principal item de exportação) e das vicissitudes do fenômeno climático el niño.

Correa assumiu em meio à crise econômica internacional de 2007-2008, que fez despencarem as remessas dos imigrantes da diáspora equatoriana – a segunda fonte de divisas, logo após o petróleo.

O início de seu mandato foi marcado por um ciclo virtuoso: crescimento do PIB; aumento de impostos diretos, tornando menos injusto um sistema tributário altamente regressivo; renegociação de contratos com petrolíferas internacionais, e consequente elevação da renda do petróleo, equivalente a um terço da receita governamental.

‘À semelhança do governo Lula, Correa se beneficiou de uma economia internacional em franca expansão, que facilitou o avanço das reformas econômicas e ampliou as sociais’

À semelhança do governo Lula, Correa se beneficiou de uma economia internacional em franca expansão, que facilitou o avanço das reformas econômicas e ampliou as sociais. No âmbito da “Revolução Cidadã”, implantou o Bono de Desarollo Humano, programa equivalente ao nosso Bolsa Família,que, combinado com o reformismo econômico, produziu queda substancial no nível de pobreza do país, de 64% em 2000, para 27% em 2013.

No último ano do governo Correa (2017), a taxa de homicídios no Equador era de 5 para cada 100 mil habitantes, uma das mais baixas da América Latina, enquanto em 2023 se elevou para 26, entre as mais altas da região.

A declaração, em 2008, de default da dívida externa, acusada de “imoral e ilegítima”, implicou na súbita retração de investimentos estrangeiros. Essa queda foi compensada pela entrada de capitais chineses, sobretudo na indústria do petróleo, o que tornou a economia equatoriana altamente dependente da China.

‘As reformas econômicas e as políticas sociais altamente exitosas criou um forte vínculo entre o presidente Correa e a população mais pobre’

As reformas econômicas e as políticas sociais altamente exitosas (o percentual de pobres foi reduzido a menos da metade e o índice de criminalidade baixou de forma significativa) criou um forte vínculo entre o presidente Correa e a população mais pobre, em sua enorme maioria indígena, o que constituiu a base do correismo, fenômeno político que guarda semelhanças com o lulismo no Brasil. 

Apesar do ciclo virtuoso dos primeiros mandatos presidenciais de Rafael Correa, a falta de alternância no poder gerou distorções, que se manifestaram sob a forma de crescente autoritarismo e corrupção. Isso conformou um clima de polarização, Correa foi forçado a buscar asilo na Bélgica, onde nasceu sua esposa, e o Equador é hoje um país dividido entre movimentos correistas e anticorreistas.  

Uma manifestação dessa cisão ocorreu em 2019, quando a federação dos povos indígenas, a Conaie, forçou o presidente Lenin Moreno, associado a Correa, a cancelar o aumento de preço dos combustíveis, o que marcou seu declínio político.

‘O sucessor de Moreno, o banqueiro conservador Guillermo Lasso, tinha como projeto de governo uma política econômica favorável ao mercado, estímulos ao investimento privado e equilíbrio fiscal’

O sucessor de Moreno, o banqueiro conservador Guillermo Lasso, tinha como projeto de governo uma política econômica favorável ao mercado, estímulos ao investimento privado e equilíbrio fiscal. Nesse sentido, aprovou, por decreto presidencial, uma Reforma Tributária. Houve resultados iniciais muito positivos na economia, beneficiada pelo aumento dos preços do petróleo – taxa de inflação de 3,4%, uma das menores da América Latina; e o primeiro orçamento equilibrado do país, desde o ano 2000.

Apesar desse início promissor, quando Lasso conseguiu atingir 70% de aprovação popular, graças também a uma exitosa campanha de combate à pandemia, rapidamente essa popularidade caiu para 30%.

Como explicar esse declínio? Primeiro, Lasso foi eleito graças à insatisfação popular e ao desgaste do governo de Lenin Moreno, nome muito vinculado a Rafael Correa. Mas foi quase uma vitória de Pirro – seu partido elegeu apenas 12 das 137 cadeiras da Assembleia Nacional. Guillermo Lasso passou a enfrentar uma poderosa oposição de centro-esquerda, apoiada por forças identificadas com o correismo e com a militância fiel da federação indígena Conaie.  

‘As declarações otimistas do presidente contrastavam com uma onda de criminalidade crescente’

As declarações otimistas do presidente – “construí  pontes rumo a um país melhor” – contrastavam com uma onda de criminalidade crescente, intensa atuação de gangues ligadas ao tráfico, duplicação do número de homicídios e aumento constante dos massacres em penitenciárias desde 2021. Ou seja, melhorava a saúde da economia, piorava o corpo social.

Assim, o governo Guillermo Lasso passou a contar com oposição em muitas frentes: uma sociedade civil hostil, dominada por correistas e pela Conaie; um empresariado menos disposto a endossar reformas econômicas diante da queda de popularidade do presidente; e um quadro parlamentar com oposição amplamente majoritária, a ameaçar o mandatário com dois processos de impeachment e a forçar antecipação de eleições presidenciais. Lasso finalmente cedeu, decretou Estado de Exceção em 10 de agosto e concordou em antecipar o pleito.

O primeiro turno, realizado em 20 de agosto, com 70% da apuração concluída, era liderado por Luiza González (33,1% dos votos), aliada de Rafael Correa, do partido Revolução Cidadã, sendo seguida por Daniel Noboa (24,1% dos votos), do movimento Ação Democrática Nacional, filho de milionário e ex-candidato à Presidência. O segundo turno está programado para outubro próximo.

‘O destino do Equador continua a desafiar previsões, porque a única certeza é a incerteza política’

O destino do Equador continua a desafiar previsões, porque a única certeza é a incerteza política. No passado, era o país da resiliente trilogia – Oligarquia, Populismo, Golpe Militar – a armadilha do atraso da América Latina. Com o ocaso do militarismo na região, a reação às mudanças sociais ganhou novo perfil. Lideranças populistas assumem o poder em eleições livres e democráticas, para logo em seguida implantarem um novo modelo, pautado por descrédito das instituições representativas, desrespeito ao jogo político, violação de direitos humanos e, assim, cultivarem o autoritarismo. Essa foi a trajetória do Brasil no governo Bolsonaro, esse é o risco do Equador na recente eleição.


*Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra. 


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

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