Tarifa contra o Brasil – Comércio, soberania e retórica
Posições da política externa do governo Lula não devem ser desconsideradas na análise da sobretaxa norte-americana, mas a campanha antipatriótica do bolsonarismo junto a Trump foi sem dúvida a grande responsável pelo agravamento de nossas relações com os EUA

A política tarifária de Trump – derivada de seu comportamento imperial, imprevisível e irracional – ameaça o sistema multilateral de comércio e desfigura as cadeias globais de valor.
Nesse cenário, o caso brasileiro tem uma singularidade: incorpora forte componente político – a ingerência norte-americana nos assuntos internos do país, com o duplo propósito de fragilizar as instituições democráticas e de apoiar políticos de extrema-direita identificados com Trump. Isso agregou à polarização política interna novos e graves ingredientes.
A absurda tarifa de 50% imposta por Trump contra o Brasil comporta duas dimensões:
A primeira é econômico-comercial: redução das exportações para os EUA; danos ao setor industrial exportador; efeito desinflacionário; e aumento do déficit fiscal.
A segunda dimensão é político-ideológica: ofensiva bolsonarista em Washington destinada a hostilizar a economia (tarifaço), as instituições (STF) e o governo brasileiro (manifestações pró-Trump); ativismo do Brasil no Brics; e retórica presidencial.
‘Essas duas dimensões não são excludentes e se retroalimentam’
Essas duas dimensões não são excludentes e se retroalimentam. Por exemplo, o ativismo político do Brasil no Brics alimenta a hostilidade de Trump à negociação comercial destinada a flexibilizar o tarifaço.
A dimensão econômico-comercial
As exportações brasileiras para os EUA representam cerca de 12% do total e correspondem a 2% do PIB. Em contraste, a China absorveu cerca de 28% do total exportado em 2024, e 30% em 2023. Ao contrário da China, que compra apenas commodities, o valor agregado de nossas vendas aos EUA é expressivo.
A tarifa de 50% incidirá sobre 35,9% das nossas exportações para o mercado norte-americano. Seu impacto foi reduzido em função da lista de exceções de cerca de 700 produtos, tais como aeronaves, celulose, suco de laranja, petróleo e minério de ferro. Apesar disso, afetará muito negativamente segmentos específicos – pesca, frutas, calçados, móveis, café, carnes, máquinas e equipamentos. A consequência inevitável será a necessidade de ajuda financeira a esses setores, o que elevará o déficit público.
‘Dois outros temas têm importante relação com o tarifaço: minerais críticos e Big Techs’
Dois outros temas têm importante relação com o tarifaço: minerais críticos e terras raras; bem como Big Techs e a regulamentação das plataformas de redes sociais.
Sobre o primeiro tema, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apoiou sua inclusão nas negociações sobre o tarifaço, o que contrastou, com a atitude nacionalista de Lula, ao afirmar “aqui ninguém põe a mão”.
O segundo tema é considerado por muitos o “sujeito oculto” do tarifaço, dada a relação carnal de Trump com os gigantes da tecnologia. A questão, no plano doméstico, foi contaminada pela polarização política: o governo – corretamente – defende a regulamentação das plataformas, enquanto a oposição a condena, sob a alegação de que limita a liberdade de expressão.
A dimensão político-ideológica do tarifaço
A reação brasileira ao tarifaço envolve interesses econômicos e comerciais, mas é condicionada, em grande medida, pelo clima político-ideológico – tenso e nebuloso – entre Brasil e EUA, vigente no governo Trump II.
‘Trump criou um difícil dilema para a oposição no Brasil: defesa da soberania nacional versus apoio à superpotência norte-americana’
Nesse contexto, a campanha orquestrada em Washington por Eduardo Bolsonaro contra as instituições brasileiras teve o efeito desejado pelo bolsonarismo – aprofundou o ataque de Trump ao STF e ao governo brasileiro. Entretanto, essa investida coincidiu com o anúncio da tarifa de 50% contra o Brasil – a mais alta do mundo. Ao combinar essas duas dimensões – política e comercial- Trump criou um difícil dilema para a oposição no Brasil: defesa da soberania nacional versus apoio à superpotência norte-americana.
O resultado concreto desse dilema foi duplo. Provocou a reversão da perda de popularidade de Lula, que assumiu a defesa da soberania nacional e do nacionalismo. Ao mesmo tempo, ampliou a divisão do bolsonarismo entre fiéis incondicionais da família versus aliados, porém críticos do gesto antipatriótico, descrito como ato de lesa-pátria pelo decano do STF, Gilmar Mendes.
O dilema encontrou o bolsonarismo fragilizado, em consequência da inelegibilidade do ex-presidente, da aproximação de seu julgamento, e da provável condenação. Entretanto, no plano externo, Bolsonaro se fortaleceu com o apoio de Trump. Isso alimentou o radicalismo do ex-presidente, manifestado sob a forma de descumprimento de sanção do STF. Em consequência, o ministro Alexandre de Moraes decretou sua prisão domiciliar, o que transformou Bolsonaro, aos olhos de parte da opinião pública, em vítima do autoritarismo do STF e não mais em investigado por tentativa de golpe de Estado.
‘A sequência de acontecimentos deixa clara a engenharia política de Bolsonaro, destinada a envenenar a relação entre Trump e Lula’
Essa sequência de acontecimentos deixa clara a engenharia política de Bolsonaro, destinada a envenenar a relação – por natureza e ideologia conflituosa – entre Trump e Lula. Nesse sentido, a tarifa mais alta do mundo atribuída ao Brasil foi, em certa medida, produto do bolsonarismo. Entretanto, essa constatação não deve esconder outro fator, que também contribuiu para a tarifa de 50% – o nosso ativismo no âmbito do BRICS e em outros encontros de presidentes e chefes de Estado, refletido na retórica de Lula.
O Brics é importante instrumento de nossa política externa: espaço de articulação política e diplomática; interesse brasileiro na conformação de nova governança global; e plataforma de cooperação.
Criado em 2001 por inspiração de representante do ícone do capitalismo financeiro – o banco Goldman Sachs -, incorporou as grandes economias emergentes. Entretanto, por ironia do destino, o Brics vem assumindo, duas décadas mais tarde, perfil de um agrupamento antiocidental liderado pela China. Três fenômenos contribuíram para essa nova feição do Brics: a invasão da Ucrânia, que selou a aliança sino-russa; sua recente expansão, ao incorporar o Irã; e a crescente rivalidade entre a China mais assertiva de Xi Jinping e o ultranacionalismo de Trump (Make America Great Again – MAGA).
‘O Brasil deveria assumir posição de equilíbrio, distante de radicalismo antiocidental e próximo da Índia’
Diante dessa nova feição do Brics, o Brasil deveria assumir posição de equilíbrio, distante de radicalismo antiocidental e próximo da Índia. Entretanto, nosso país tem-se distanciado desse padrão, sobretudo em função de iniciativas diplomáticas e de declarações de Lula, tais como: críticas ao Ocidente como responsável pela continuidade da guerra na Ucrânia; projeto sino-brasileiro para pôr fim à guerra, com óbvio viés pró-Rússia; e reiterado apoio à internacionalização do yuan, em substituição ao dólar.
Essas posições personalistas de Lula, além de gestos de excessiva aproximação com posições da Rússia e do Irã, prevaleceram sobre o comportamento mais pragmático de nossa diplomacia. Nesse sentido, dificultaram o diálogo do Itamaraty com autoridades norte-americanas de alto nível a respeito do tarifaço.
‘As declarações de Lula com forte viés antiocidental alimentaram o clima de hostilidade entre Trump e Lula, com efeitos sobre a política tarifária norte-americana’
As declarações de Lula com forte viés antiocidental, sobretudo as críticas ao dólar como moeda padrão – ocorridas na recente cúpula do BRICS em nosso país e em outros encontros de presidentes e chefes de Estado -, alimentaram o clima de hostilidade entre Trump e Lula, com efeitos sobre a política tarifária norte-americana aplicada a nosso país.
Esse aspecto de nossa política externa não deve ser desconsiderado na análise da sobretaxa norte-americana. Entretanto, a campanha antipatriótica do bolsonarismo junto a Trump foi sem dúvida a grande responsável pelo agravamento de nossas relações com os EUA, que culminaram com a tarifa de 50% contra o Brasil – a mais alta do mundo.
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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