Tecnocracias da destruição – Quando a eficiência suplanta a ética na política de guerra
Regimes operam em nome da segurança, da ordem ou da soberania, mas o fazem sem espaço para deliberação, dissenso ou sensibilidade ética. A política é substituída por relatórios. A dor humana, por mapas. A vida, por indicadores. E tudo é legitimado sob o argumento da racionalidade técnica — que se torna, paradoxalmente, o véu da brutalidade

A palavra “eficiência” costuma ter boa reputação. Na administração pública, ela evoca agilidade, resultado e racionalidade. Na política, sugere superação de impasses, pragmatismo e governança responsável. Mas, em determinados contextos, essa mesma eficiência pode ser o nome dado à destruição sistemática e deliberada de vidas, direitos e instituições, especialmente quando invocada para justificar decisões unilaterais, tomadas sem debate público, em meio a crises fabricadas ou perpetuadas com fins políticos.
Vivemos um tempo em que a guerra tem sido convertida, em diversas partes do mundo, em instrumento de governo. Não apenas como resposta a ameaças externas ou internas, mas como método de controle político, como narrativa mobilizadora e como expediente de sobrevivência no poder.
‘A guerra, em vez de ser tratada como tragédia e exceção, é normalizada como política pública’
O que chama atenção, no entanto, é a forma como esses conflitos são administrados: com linguagem gerencial, lógica de desempenho, metas operacionais. A guerra, em vez de ser tratada como tragédia e exceção, é normalizada como política pública. Matricial, estratégica, calculada.
Essa é a marca das tecnocracias da destruição. Regimes que operam em nome da segurança, da ordem ou da soberania, mas o fazem sem espaço para deliberação, dissenso ou sensibilidade ética. A política é substituída por relatórios. A dor humana, por mapas. A vida, por indicadores. E tudo é legitimado sob o argumento da racionalidade técnica — que se torna, paradoxalmente, o véu da brutalidade.
‘O caso mais emblemático e atual desse processo é o do governo de Benjamin Netanyahu em Israel’
O caso mais emblemático e atual desse processo é o do governo de Benjamin Netanyahu em Israel. Desde os ataques terroristas de 7 de outubro de 2023, que deixaram mais de mil mortos e resultaram no sequestro de cerca de 250 civis israelenses e estrangeiros pelo Hamas, o governo israelense vem conduzindo uma campanha militar devastadora na Faixa de Gaza. Mais de 30 mil palestinos já morreram, segundo estimativas das agências humanitárias, e o território colapsou sob bloqueios, bombardeios e deslocamentos forçados. Mas o que torna essa guerra particularmente alarmante é que, ao contrário do que afirma seu discurso oficial, ela não tem conseguido oferecer segurança à população israelense, tampouco devolver os reféns.
Mesmo diante de alertas de comandantes militares e de protestos constantes das famílias dos sequestrados, o governo optou por ampliar a ofensiva militar sem garantir qualquer avanço concreto nas negociações para libertação dos reféns. Muitos deles estão possivelmente mortos, outros sobrevivem em condições desumanas, escondidos em túneis, à espera de uma solução política que nunca veio.
‘A política foi substituída pela obstinação técnica de “vencer a guerra” a qualquer custo’
O poder civil falhou em priorizá-los. A política foi substituída pela obstinação técnica de “vencer a guerra” a qualquer custo, mesmo que isso implique sacrificar os próprios cidadãos sequestrados.
A incoerência entre o discurso de proteção e as ações concretas é evidente. A promessa de segurança foi usada para justificar uma campanha que expôs ainda mais a população israelense à instabilidade regional, aumentou a pressão diplomática internacional sobre o país e acentuou sua divisão interna. O governo Netanyahu parece governar não para proteger vidas, mas para manter-se de pé, alimentando o conflito como estratégia de permanência e mobilização política. Trata-se de uma gestão da guerra, não uma busca pela paz ou pela justiça.
‘O que vemos, em várias partes do mundo, é a consolidação de regimes que concentram poder sob a justificativa da eficiência: segurança, economia, infraestrutura, saúde pública’
Esse modelo não é exclusivo de Israel, embora atinja ali uma de suas expressões mais dramáticas. O que vemos, em várias partes do mundo, é a consolidação de regimes que concentram poder sob a justificativa da eficiência: segurança, economia, infraestrutura, saúde pública. Governos que decidem sozinhos, que tratam a política como ruído e a deliberação como perda de tempo. A política é substituída por planos de ação; o conflito, por protocolos operacionais; o dissenso, por medidas emergenciais.
Esses regimes não precisam abolir eleições, nem silenciar totalmente a imprensa. São, muitas vezes, funcionalmente democráticos, mas deliberadamente antidemocráticos em espírito. Tomam decisões estruturais com base em algoritmos, planilhas e simulações, sem escuta, sem transparência e sem o reconhecimento do outro como interlocutor legítimo. As guerras se tornam “operações”, os civis mortos viram “danos colaterais”, os opositores internos passam a ser tratados como obstáculos técnicos.
‘O que está em jogo é o próprio sentido da política democrática, que exige tempo, escuta, abertura ao conflito. Ela é tudo aquilo que a lógica tecnocrática despreza’
O que está em jogo, nesse processo, não é apenas a legitimidade de uma ação específica, mas o próprio sentido da política. Porque a política democrática — como campo de disputa, negociação e construção coletiva de futuro — exige tempo, escuta, abertura ao conflito. Ela é tudo aquilo que a lógica tecnocrática despreza. O tecnocrata não quer ouvir; quer decidir. Não quer debater; quer implementar. Não quer pluralidade; quer desempenho.
Em contextos de guerra, esse modelo atinge seu ápice. As justificativas técnicas passam a encobrir operações profundamente ideológicas, motivadas por interesses políticos internos. A condução de ofensivas militares sem perspectiva de resolução, a administração de populações civis sob ocupação, a recusa em negociar acordos mesmo diante do colapso humanitário, tudo isso é tratado como cálculo racional, quando, na verdade, muitas vezes se trata de manter coalizões, evitar derrotas eleitorais ou sufocar adversários.
‘O desafio é expor o uso da linguagem técnica como disfarce para decisões profundamente políticas e, muitas vezes, eticamente inaceitáveis’
O desafio, portanto, não é apenas denunciar a concentração de poder. É expor o uso da linguagem técnica como disfarce para decisões profundamente políticas e, muitas vezes, eticamente inaceitáveis. Governos que prolongam conflitos sem justificativa viável, deslocam populações inteiras, ou impedem o acesso humanitário sob pretexto de segurança nacional não estão apenas sendo “ineficientes”, estão violando princípios fundamentais de humanidade e democracia.
Não se trata de rejeitar a técnica. A expertise é fundamental para qualquer ação pública séria. Mas ela não pode ocupar o lugar da deliberação. A técnica deve informar a política, não a substituir. Quando um governo toma decisões letais com base apenas em relatórios, algoritmos ou reuniões de gabinete, sem diálogo com a sociedade, sem prestar contas, sem considerar alternativas, ele não está sendo eficiente. Está sendo autoritário.
A política precisa ser resgatada como espaço ético. A legitimidade de uma decisão se constroi na escuta, no debate, na complexidade’
A política precisa ser resgatada como espaço ético. Isso não significa paralisia ou ingovernabilidade, mas reconhecimento de que a legitimidade de uma decisão se constroi na escuta, no debate, na complexidade. É mais demorado, mais imperfeito, menos “eficiente”, mas infinitamente mais democrático.
Em um mundo em que conflitos armados são geridos como planos de governo e populações inteiras são tratadas como variáveis logísticas, devemos lembrar que a política, quando verdadeiramente democrática, é o contrário da morte administrada: é a arte imperfeita de garantir vida, dignidade e futuro em comum.
Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).
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