17 julho 2024

Uma aliança global contra fome e a pobreza 

Brasil levará ao G20 a proposta de promover a troca de experiências entre países para a implementação de políticas públicas eficazes no combate à fome e à pobreza

Primeira reunião presencial da Força-Tarefa responsável por construir a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza (Foto: Roberta Aline/MDS)

No final do mês de julho, o governo brasileiro levará aos ministros das Finanças do G20 a proposta de criação de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Gestada ao longo do ano de 2024, a aliança visa promover a troca de experiências entre países para a implementação de políticas públicas eficazes no combate à fome e à pobreza. 

Nas palavras de seus idealizadores, a aliança deve servir de catalisador para a ação e cooperação internacionais na matéria. A fim de dar mais força à iniciativa, o governo brasileiro decidiu ancorá-la no G20, ainda que a mesma não esteja limitada apenas aos países do grupo. 

A construção da iniciativa até então tem sido liderada por uma força-tarefa composta de representantes do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e do Ministério da Fazenda em diálogo com especialistas dentro e fora do governo (incluindo na Presidência, no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea, nas agências das Nações Unidas, nas universidades e na sociedade civil). 

Em junho, a força-tarefa concluiu os documentos constitutivos da aliança, já submetidos a consultas e negociações informais com os demais países membros do G20. O lançamento oficial está previsto para novembro, na Cúpula de Líderes.  

O combate à fome de volta à agenda internacional  

Não é de hoje que a agenda do combate à fome ganha força na agenda da política externa brasileira petista. Ao assumir a Presidência em 2023, no pós-pandemia do Covid-19, e diante do aumento da insegurança alimentar no Brasil e ao redor do mundo, Luiz Inácio Lula da Silva decidiu novamente colocar a fome “no orçamento nacional”. A retomada do tema na agenda doméstica veio acompanhada de um novo ativismo presidencial no tema, enfatizando o apelo para que a questão seja priorizada politicamente e financeiramente também na arena global. 

‘Ao priorizar esse tema, o governo brasileiro reforça a mensagem de que vontade política é fundamental para ação coletiva em relação a problemas globais como a fome’

Por “segurar a caneta” do G20 em 2024, o Brasil tem um poder de agenda não negligenciável. Ao priorizar esse tema, o governo brasileiro reforça a mensagem de que vontade política é fundamental para ação coletiva em relação a problemas globais como a fome. Nas palavras de Lula: “Nesse G20 do Brasil, temos coisas importantes a discutir. Uma é o combate à fome e à pobreza. Essa é uma coisa fácil de resolver se houver disposição política dos governantes de assumir a responsabilidade”. 

Vontade política importa no atual contexto diante das alarmantes estatísticas de aumento da insegurança alimentar grave ao redor do mundo, em países em desenvolvimento e no mundo desenvolvido. Como descreveu o ex-primeiro ministro do Reino Unido Gordon Brown em um recente artigo de opinião no jornal The Guardian, o Reino Unido (a sexta maior economia do mundo) é uma nação dependente de bancos de alimentos. Segundo Brown, o país hoje conta com uma rede de 2.800 bancos de alimentos geridos por organizações não-governamentais. O número é, no entanto, insuficiente para atender os 7,2 milhões de pessoas que hoje passam fome no país. 

‘A fome está intimamente ligada a múltiplas desigualdades e ao aumento da pobreza’

A insegurança alimentar em um dos principais centros do capitalismo global é um alerta para o caráter universal do problema. Tanto lá como aqui, a fome está intimamente ligada a múltiplas desigualdades e ao aumento da pobreza, incluindo a cada vez mais prevalente “in-job poverty” (em que indivíduos, apesar de empregados, não conseguem arcar com os custos de vida). 

O Reino Unido, um dos maiores financiadores de programas de combate à fome ao redor do mundo, por meio de sua cooperação internacional, não tem uma lei que garanta o direito à alimentação ou uma política nacional de combate à fome. 

O hiato entre política doméstica e externa em países como o Reino Unido, a volta do Brasil ao Mapa da Fome em 2022, assim como o consenso que aos poucos se forma ao redor do globo a respeito da conexão entre pobreza, desigualdade e insegurança alimentar bem como em torno das assimetrias nacionais e globais de produção e consumo de alimentos, reforça o entendimento de que o combate à fome é uma questão política e uma agenda de política global.   

Circulação de políticas pautadas em evidência 

Em seu intuito de “coordenar ações e parcerias técnicas e financeiras para apoiar a implementação de programas nacionais” de combate à fome e à pobreza, a aliança fornecerá aos países que aderirem à proposta uma “cesta de experiências exitosas em políticas de combate à fome e à pobreza”. 

Concretamente, a “cesta de políticas” funcionará como um repositório virtual de políticas e experiências repertoriadas a partir do diálogo com os países membros e especialistas. Dentre as políticas que o Brasil pretende compartilhar, estão programas sociais como o Bolsa Família, o Minha Casa, Minha Vida, a Tarifa Social e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). 

Para os técnicos envolvidos nas negociações, gestores brasileiros também poderão aprender com países como a Indonésia, Vietnã e Bangladesh, Colômbia ou México. Trata-se de uma colocação importante, dado o crescimento da insegurança alimentar no país nos últimos anos e os atuais desafios de reestruturação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. 

‘Caso logre fomentar a circulação multidirecional e multinível de políticas comprovadamente exitosas, a aliança trará uma contribuição importante às ações de combate à fome e pobreza dentro do Brasil’

A aliança promete, em teoria, ser um espaço de trocas e cooperação multidirecional (Norte-Sul, Sul-Sul, Sul-Norte). Pode também ser um espaço em que a experiência e a inovação vindas de atores não-estatais e subnacionais (incluindo governos locais e sociedade civil), e não apenas o “sucesso” de políticas nacionais, ganhe visibilidade. Caso logre fomentar a circulação multidirecional e multinível de políticas comprovadamente exitosas, a aliança trará uma contribuição importante às ações de combate à fome e pobreza dentro do Brasil e às ações de Cooperação Sul-Sul do país, tradicionalmente focadas em “exportar” políticas exitosas do Brasil para combate à fome e pobreza para países terceiros.

Ao focar nas sinergias com as instituições existentes, fazendo parcerias estratégicas com entidades do sistema ONU para o Secretariado e com fontes de financiamento internacional existentes (mas fragmentadas), o governo brasileiro acerta. Parte da crise do multilateralismo reflete a fragmentação de arenas, instrumentos e iniciativas. Apenas no sistema ONU há múltiplas agências que lidam com o tema do combate à fome e a pobreza (incluindo o PNUD, a FAO, o PMA e a Unicef, apenas para citar algumas), sem contar as múltiplas instituições financeiras e fundos (como a Associação Internacional de Desenvolvimento do Banco Mundial). 

‘O Brasil tem conhecimento, credibilidade e autoridade para propor arranjos que envolvam múltiplas instituições, valorizando as vantagens comparativas e as sinergias entre elas’

O Brasil coopera com todos para aprimorar suas ações em âmbito doméstico e para o compartilhamento de suas experiências com outros países. Tem, portanto, conhecimento, credibilidade e autoridade para propor arranjos que envolvam essas múltiplas instituições, valorizando as vantagens comparativas e as sinergias entre elas.

Acerta também em propor que os países participantes da aliança assinem uma declaração de compromisso. Aqui, para concretizar o espírito de troca de experiências, seria importante propor aos futuros membros da aliança, no momento de adesão, expor aos demais membros o que o país pode e quer “ofertar” e “receber” (em termos de recursos e/ou políticas). Tal exercício fortalecerá o compromisso de cada membro e da própria Aliança com a troca multidirecional e o aprendizado mútuo

Usando o exemplo do Reino Unido novamente, caso Londres opte por somar-se à aliança apenas para financiar programas nacionais na África Subsaariana ou na América Latina, perderá uma oportunidade de aprender com outros países e buscar inspiração e instrumentos para desenvolver seu próprio programa nacional de segurança alimentar. 

Para além do tecnicismo

Ainda que à primeira vista pareça uma agenda bastante técnica, a aliança tem o potencial de angariar ganhos políticos e simbólicos para a política externa brasileira, além de servir de exemplo para o tão desejado fortalecimento do multilateralismo.

No marco da atual política externa de reconstrução (e após anos de descaso e desmonte), o atual governo reativou estruturas ligadas ao tema (como o MDS, o Consea  e o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar – MDA) e criou novas estruturas ligadas ao tema, como a coordenadoria-geral de Segurança Alimentar e Nutricional do MRE. Tais ações permitiram a retomada desta agenda na política externa brasileira, incluindo os esforços para lançar a aliança, e reforçam o papel construtivo e propositivo do Brasil nesta temática, bem como as articulações do país com organismos internacionais e contrapartes no mundo desenvolvido e em desenvolvimento. Os esforços de técnicos e políticos, inclusive do próprio ministro Wellignton Dias, para trazer outros países não-membros do G20 para a iniciativa é um exemplo. 

Apesar de modesta, a iniciativa tampouco deve ser minimizada nas análises sobre os “resultados” do G20 no Brasil. À luz dos múltiplos impasses na agenda do G20 e em outros fóruns multilaterais, dadas as múltiplas tensões geopolíticas, conflitos armados na Eurásia e Oriente Médio e a crescente competição entre China e Estados Unidos, pequenos ganhos como esse podem, inclusive, contribuir para o poder negociador do Brasil em outras agendas mais contenciosas, seja a questão da taxação de grandes fortunas ou os avanços nas negociações climáticas, o outro dossiê que o Brasil presidirá ano que vem.

Laura Trajber Waisbich é cientista política, diretora do Programa de Estudos Brasileiros e professora de estudos latino-americanos na Universidade de Oxford.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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