Hayle Melim Gadelha: Mentes, corações e estômagos
A gastrodiplomacia é um meio eficaz de ganhar visibilidade em meios de comunicação, estabelecer laços de longo prazo com as sociedades estrangeiras e impactar positivamente a imagem nacional. Para diplomata, é um campo em que o Brasil tem muito a aportar e no qual poderá angariar influência compatível com seu peso na região e no mundo
A gastrodiplomacia é um meio eficaz de ganhar visibilidade em meios de comunicação, estabelecer laços de longo prazo com as sociedades estrangeiras e impactar positivamente a imagem nacional. Para diplomata, é um campo em que o Brasil tem muito a aportar e no qual poderá angariar influência compatível com seu peso na região e no mundo
Por Hayle Melim Gadelha*
Recentemente, o anúncio de ranking dos países com as melhores cozinhas do mundo inundou as redes sociais. No Brasil, a 12ª colocação na lista do Taste Atlas foi recebida com um misto de orgulho e surpresa, já que figuramos acima de gastronomias consagradas – como a coreana, a vietnamita, a tailandesa e a libanesa – e abaixo da americana (1)! Confirmando o que sabe qualquer viajante, a publicação aponta como nossos “pratos” mais populares o churrasco, a picanha, a feijoada e a coxinha (2). Embora o reconhecimento reflita processo de mudança de reputação, a importância gastronômica do país ainda está muito aquém de seu peso internacional.
A diplomacia culinária é praticada desde a antiguidade. O banquete de dez dias em que o rei assírio Assurnasirpal II (883 a.c – 859 a.c) exibiu a 70 mil convidados seu novo castelo é ilustrativo de como se utilizam empreitadas pantagruélicas para ostentar poder e costurar alianças. Na estreia do Brasil como protagonista no cenário multilateral, durante a Segunda Conferência da Paz de Haia em 1907, Rui Barbosa, cujo centenário da morte ora se rememora, lançou mão de exitosa “política de jantares” para assegurar apoio das demais delegações à igualdade jurídica entre as nações e consolidar certa liderança sul-americana (3).
Noutros tempos, os cardápios diplomáticos eram pensados e mesmo impressos em francês; de algum tempo para cá, os brasileiros passamos a revalorizar as próprias tradições e saberes. Segundo o ex-chanceler Celso Amorim, “ao receber visitantes estrangeiros, é natural que o Itamaraty procure oferecer-lhes o que temos de melhor. Se houve momentos no passado em que o melhor era aquilo que vinha de fora, hoje os ingredientes genuínos da nossa cultura e gastronomia encontram seu devido lugar à mesa” (3).
O termo gastrodiplomacia – que deu título ao evento Gastrodiplomacy: the politics of food, organizado pelo MoMA de Nova York em 2018 para “compreender como aquilo que colocamos em nossos pratos é uma ferramenta de soft power” (8) – entrou para o repertório diplomático em 2002, quando a Tailândia lançou o programa Global Thai com o objetivo de ampliar sua presença internacional por meio da abertura de restaurantes (5).
O empreendimento foi bem-sucedido, o número de estabelecimentos no exterior triplicou em uma década. Hoje o país recebe cerca de seis vezes mais turistas que o Brasil, e as receitas do setor correspondem a dez por cento do PIB tailandês, um terço dos quais advindo de gastos com comida e bebida. Não à toa, existe, nos Estados Unidos, um restaurante de comida tailandesa para cada 55 tailandeses que lá residem (a título de comparação, a proporção é de 650 para um, no caso dos mexicanos) (6).
Além dos exemplos óbvios de França, Itália e Japão, países como o Peru, a Dinamarca e a Coreia do Sul apostam alto na gastrodiplomacia, com diferentes objetivos e abordagens. O governo coreano iniciou a “diplomacia do kimchi”, prato cuja base é a acelga fermentada, para criar um sentido de unidade nacional em torno de idealizados tempos da dinastia Joseon, anterior à globalização e às invasões por nações vizinhas (7). Os dinamarqueses, à frente da “nova cozinha nórdica”, lograram resgatar técnicas esquecidas e ingredientes locais e construir poderosa narrativa de autenticidade e sustentabilidade, em consonância com os valores contemporâneos. Da mesma maneira, o chef Gastón Acurio encabeçou os esforços peruanos de contar a história de sua cultura alimentar a partir da ideia de ancestralidade e das propriedades nutritivas da quinoa.
De sua parte, chefs como Rafael Cagali (Da Terra, Londres), Franco Sampogna (Frevo, Nova York), Ivan Brehm (Nouri, Singapura), Marcelo Ballardin (OAK, Gent), Raphael Rego (Oka, Paris), Alessandra Montagne (Nosso, Paris), Manu Buffara (Ella, Nova York), Marcello Tully (ex-Kinloch Lodge, Isle of Skye) e Rodrigo Olveira (ex-Caboco, Los Angeles) vêm ampliando e sofisticando o conhecimento estrangeiro sobre a cultura alimentar nacional. A influente publicação The World´s 50 Best tem dado crescente destaque ao Brasil em seus rankings, nos quais figura número sem precedente de restaurantes brasileiros entre os melhores do mundo e, em particular, da América Latina (Casa do Porco, Oteque, Evvai, Lasai, Maní, Metzi, D.O.M., Charco, Nelita, Manu).
Mas só se pode falar em diplomacia gastronômica se essa promoção da identidade cultural for impulsionada pelo governo a partir de objetivos definidos de política exterior. Existe argumento corrente de que a prática favorece especialmente países médios, os quais buscam obter algum espaço na mídia e no imaginário internacional (7). Por seu turno, potências como a França ou os Estados Unidos recorreriam à gastrodiplomacia sobretudo para refinar o conhecimento de sua cultura, individualizando sutilezas de cada região, por exemplo (8). A distinção remete à interessante noção de “issue of relevance”, cunhada pelo consultor britânico Simon Anholt. Segundo ele, quanto mais relevante é considerada uma nação, mais fácil será chamar atenção para si e mais difícil será mudar as percepções a seu respeito (9).
Com suas dimensões continentais e diversidade única, o Brasil entrou, mais recentemente, no grupo de países que utilizam essa modalidade diplomática para difundir técnicas culinárias próprias, promover ingredientes e o turismo gastronômico, estimular o diálogo intercultural e elevar a reputação. O departamento cultural do Itamaraty, e uma seleção de embaixadores gastronômicos de todas as regiões do país – à guisa do celebrado American Chef Corps do Departamento de Estado (10) – lançaram, no ano passado, o programa Brasil em Sabores, para exportar a nova cozinha nacional (11). Do ponto de vista narrativo, elegeu-se a mandioca como leitmotiv da culinária que mostraremos ao mundo. Versátil, acessível, ancestral, a planta está presente no angu, no beiju, na farinha, na tapioca, no tucupi, no pão de queijo. No cauim dos rituais indígenas, no padê das religiões afro-brasileiras, na farofa do peru natalino. Sintetiza mesmo a raiz da pluralidade brasileira.
Essa história coaduna-se, ainda, com os valores predominantes na comunidade internacional e com a imagem de uma nação (bio)diversa, ambientalmente responsável, inclusiva e líder no combate à fome que o Brasil pretende projetar. O país, que hoje se reconhece e valoriza, deve transmitir mensagens eficientes e consistentes por meio dos canais apropriados para, com credibilidade, demonstrar sua vontade e capacidade de contribuir para um planeta mais sustentável, equilibrado e generoso. Para isso, é necessário entender as características e visões prévias que cada sociedade tem do Brasil e, assim, adequar a promoção de nossa gastronomia e cultura conforme cada circunstância. Entre os vizinhos, onde já somos percebidos como culturalmente relevantes, é possível pensar em ações continuadas que celebrem as idiossincrasias de cada cozinha regional brasileira, afastando estereótipos e lugares-comuns como os já mencionados pratos nacionais que o Taste Atlas realça.
A gastrodiplomacia, como provaram outros países, é um meio eficaz de ganhar visibilidade em meios de comunicação, estabelecer laços de longo prazo com as sociedades estrangeiras e impactar positivamente a imagem nacional. É um campo em que o Brasil tem muito a aportar e no qual poderá angariar influência compatível com seu peso na região e no mundo. O momento é oportuno; a direção, promissora. Há sinergia entre governo e profissionais da gastronomia. A hora é de envolver mais atores nesse esforço e convencer tomadores de decisão dos – já comprovados – retornos econômicos e de reputação da diplomacia gastronômica.
*Hayle Melim Gadelha é colunista da Interesse Nacional, doutor em relações internacionais pelo King’s College London e diplomata. Suas opiniões pessoais não necessariamente refletem a posição oficial do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional.
Referências:
1. Taste Atlas. World’s Best Cuisines. Taste Atlas. [Online] 2022. [Citado em: 7 de Março de 2023.] https://www.tasteatlas.com/best/cuisines.
2. —. Most popular Brazilian dishes. Taste Atlas. [Online] 2022. [Citado em: 7 de Março de 2023.] https://www.tasteatlas.com/brazil.
3. Cabral, Carlos. A mesa e a diplomacia brasileira: o pão e o vinho da concórdia. São Paulo : Editora de Cultura, 2008.
4. MoMA. Salon 27 Gastrodiplomacy. MoMA. [Online] 11 de Setembro de 2018. [Citado em: 1 de Março de 2023.] http://momarnd.moma.org/salons/salon-27-gastrodiplomacy/.
5. Thailand’s gastro-diplomacy. The Economist. Londres : The Economist, 2022, Vol. 23 de fevereiro de 2002.
6. Quartz. Foodie culture is now part of foreign policy — It’s Gastrodiplomacy. YouTube. [Online] 3 de Maio de 2019. [Citado em: 7 de Março de 2023.] https://www.youtube.com/watch?v=CUaZ5IGL3AY.
7. How Countries Use Food to Win Friends and Influence People. Parasecoli, Fabio. Agosto, Washington D.C. : Foreign Policy, 2022.
8. Anholt, Simon. Places: identity, image and reputation. Nova York : Palgrave Macmillan, 2010.
9. U.S. Department of State. Diplomatic Culinary Partnership. U.S. Department of State. [Online] 2023. [Citado em: 7 de Março de 2023.] https://www.state.gov/diplomatic-culinary-partnership/.
10. Ferraz, Patricia. Com parceria entre cozinheiros e o Itamaraty, sabores brasileiros vão viajar bem. Estado de São Paulo. 4 de maio, 2022.
11. Gastrodiplomacy – Soft Power With Good Flavour. Strugar, Tanja. Belgrado : CorD, 2019, Vol. 1 de junho de 2019.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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