Sem ir além da conversa, política externa do novo governo Lula fica aquém do seu potencial
Em um ano, Itamaraty conseguiu facilmente retomar relações fragilizadas durante o governo de Bolsonaro, mas não foi muito além do diálogo. Para professor, a participação em temas chave da política global é uma questão muito séria e complicada, mas é um desafio que o Brasil enfrentará repetidamente nos próximos anos
Em um ano, Itamaraty conseguiu facilmente retomar relações fragilizadas durante o governo de Bolsonaro, mas não foi muito além do diálogo. Para professor, a participação em temas chave da política global é uma questão muito séria e complicada, mas é um desafio que o Brasil enfrentará repetidamente nos próximos anos
Por Sean Burges*
A mais contundente crítica à política externa brasileira que ouvi ao longo de 25 anos de estudo veio de um diplomata de outra nação, que comentou: “Os diplomatas brasileiros são ótimos conversadores.” Esse indivíduo apenas pretendia fazer uma observação, não uma crítica. No entanto, seu comentário aponta diretamente para a principal falha da política externa brasileira. Também ajuda a explicar por que o primeiro ano da política externa do terceiro governo Lula ficou significativamente aquém de seu potencial.
Em janeiro de 2024, Mauro Vieira escreveu na revista Interesse Nacional que uma grande ambição da política externa era reconstruir a reputação do Brasil no mundo e restabelecer o país como um ator internacional engajado. Nisso, ele obteve sucesso facilmente. Quando o interregno de Bolsonaro começou em 2019, a maioria do mundo simplesmente colocou o Brasil em compasso de espera. O volume impressionante de acordos e visitas feitas por Lula em 2023 é evidência de que um retorno a conversas civilizadas com parceiros globais, a habilidade dos diplomatas brasileiros, foi mais do que suficiente para trazer o Brasil de volta da beira do abismo.
Onde as coisas se complicam é na vontade declarada do Brasil de ir além de ser apenas um conversador. Tanto Vieira quanto o assessor de política externa presidencial, Celso Amorim, têm falado recentemente sobre o Brasil assumir um papel de liderança e coordenação para enfrentar questões críticas regionais e globais. Para isso, foram realizadas diversas reuniões, incluindo a reunião dos países do Tratado de Cooperação Amazônica em 2023 e uma reaproximação com mecanismos pancontinentais como o antigo Unasul e Celac.
O problema enfrentado pelos formuladores de políticas nos palácios do Planalto e do Itamaraty é que a liderança envolve mais do que convocar uma conversa onde tópicos difíceis podem ou não ser abordados. A liderança também envolve tomar posições firmes sobre questões e se envolver em ações que nem todos podem apreciar.
De fato, o tipo de liderança baseada em princípios vista durante os mandatos de Fernando Henrique Cardoso e Lula envolveu tomar posições que poderiam irritar parceiros-chave, mas que eram toleradas porque estavam fundamentadas em uma visão clara de paz, segurança e cooperação regional ou global. Exemplos abundam em múltiplos campos, desde a desvalorização do real por FHC em 1998 e o bloqueio das remoções lideradas pelos EUA dos presidentes Fujimori e Chávez, até o entrave de Lula na reunião ministerial da OMC em Cancún em 2003 e na Assembleia Geral da OEA em 2005.
Os primeiros sinais indicam que o tipo de liderança baseada em princípios vista nos governos Lula I e II está de volta, mas também estão de volta as principais falhas desse governo. O que ainda falta hoje é a disposição de ir além da conversa para ação concreta, física, acarretando custos políticos e econômicos para o Brasil.
Se olharmos para o governo Lula II, não é surpresa que iniciativas como a Cúpula da Amazônia em agosto de 2023 tenham tido um resultado tão morno. No final dos anos 2000, países como o Peru estavam abraçando abertamente a ideia de uma liderança brasileira ativa na América do Sul, mas adiavam a aceitação aguardando respostas a perguntas-chave: que benefícios concretos o Brasil forneceria além da conversa envolvente e quais ganhos o Brasil estaria disposto a oferecer para obter a aceitação continuada e aprofundada dos países vizinhos?
Os líderes são seguidos por uma variedade de razões, mas, na política internacional, a mais importante é que há um benefício concreto em ser um seguidor, seja na forma de pagamento ou na evitação de sanções coercitivas. Dado que grande parte do poder da política externa do Brasil reside em sua aversão estudada à coerção, os países vizinhos estavam, na verdade, perguntando quanto o Brasil estava disposto a pagar pelos grandes planos que estava propondo? A resposta naquela época, e parece que ainda é a mesma hoje, é não muito.
Projetos grandiosos com ambições amplas exigem que um membro fundador faça o investimento necessário para colocá-los em prática. Para grande parte do sistema de governança global existente, esse membro foi os Estados Unidos. Em outras ordens regionalizadas, esse papel é desempenhado pela Alemanha e França na UE e, até recentemente, pelo Japão no Sudeste Asiático; a China tem sua própria versão com a Iniciativa Cinturão e Rota. Sucessivos presidentes brasileiros fizeram muito para promover planos visionários no Cone Sul (Mercosul) e na América do Sul, mas relativamente pouco para sustentá-los economicamente.
O problema criado por essa avareza metafórica diante de uma retórica expansiva é ampliado por um certo egoísmo centrado em si mesmo em sua execução, como visto na ameaça contínua da Venezuela à Guiana. Sim, Amorim viajou para Caracas para expressar a visão do Brasil, e isso foi reiterado a autoridades visitantes em Brasília. No entanto, o tipo de ação concreta, tangível e baseada em princípios necessária para prevenir efetivamente a possibilidade de uma guerra tem estado ausente.
Quando a guerra eclodiu entre Equador e Peru em 1995, Fernando Henrique Cardoso foi rápido em posicionar membros de suas forças armadas entre os combatentes, apesar da situação financeira decididamente frágil do Brasil. Em 2023, o Brasil pareceu se preocupar menos em evitar a guerra do que em proteger sua própria soberania, garantindo que suas fronteiras e rodovias não estivessem disponíveis para o exército venezuelano. Ações diretas e baseadas em princípios garantindo a soberania guianense foram deixadas para os EUA e o Reino Unido. Por que Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa, não pensou em sugerir algo inovador, como um programa conjunto de treinamento de guerra na selva no Essequibo, é um mistério que provavelmente nunca será resolvido.
Os potenciais efeitos decorrentes da crise do Essequibo nos levam de volta ao perigo de o Brasil continuar sendo conhecido apenas como um ótimo conversador. A intervenção direta que eu menciono aqui certamente teria envolvido tomar partido e ofender o governo Maduro, mas também teria enviado um sinal poderoso de que o Brasil está disposto a agir para defender princípios-chave na América do Sul.
Isso importa porque é também um elemento essencial para manter atores estrangeiros fora do continente, uma prioridade de longa data e contínua da política externa brasileira. Como está, a precaução do governo Lula no Norte significa que a possibilidade de bases dos EUA ou do Reino Unido serem abertas na borda da bacia amazônica tornou-se repentinamente muito real.
Decidir intervir em outros países ou conflitos é uma questão muito séria e complicada, mas também algo que um líder tem que fazer e um desafio que o Brasil provavelmente enfrentará repetidamente nos próximos anos.
A quem, podemos perguntar, os países como Equador, Peru e Paraguai recorrerão em busca de ajuda para seus próprios problemas criminais muito sérios, que, vale a pena notar, são de natureza transnacional, mesmo que perpetrados por atores não estatais? É aqui que ser um bom conversador não é suficiente.
As palavras agradáveis às vezes exigem ação concreta para lhes dar substância. É provável que a maioria dos países regionais prefira trabalhar com um parceiro quase alérgico à intervenção estrangeira (ou seja, o Brasil) do que com os EUA. Para observadores extracontinentais, a questão é se Lula e sua equipe perceberão que, em algumas questões, o tempo para conversas eruditas chegou ao fim.
*Sean Burges é colunista da Interesse Nacional e professor de estudos globais e internacionais na Carleton University. É autor dos livros ‘Brazil in the World’ e ‘Brazilian Foreign Policy After the Cold War’.
Leia mais artigos de Sean Burges
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Sean Burges é colunista da Interesse Nacional e professor de estudos globais e internacionais na Carleton University. É autor dos livros ‘Brazil in the World’ e ‘Brazilian Foreign Policy After the Cold War’.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional