Novidade na terra do Tio Sam: Escolhas claras para um pleito histórico
Fim da campanha de Biden e provável candidatura de Kamala Harris contra Donald Trump colocam em disputa dois candidatos e projetos de país contrastantes, com influência para o mundo e para o Brasil
Para que quem achava que as eleições norte-americanas já estavam consolidadas dentro do curso de um rematch do pleito de 2020, os dramáticos acontecimentos dos últimos dias certamente trouxeram surpresas. Primeiro, repetindo um elemento histórico trágico da política naquele país, Donald Trump sofreu um atentado, que ainda não foi de todo explicado, e houve a possibilidade que talvez pudesse ter sido retirado a força da disputa.
Uma semana mais tarde, após a confirmação de uma chapa puro sangue de fundamentalistas da extrema-direita, Tump e J.D. Vance, na convenção Republicana, Biden abriu mão de forma histórica da sua indicação para a disputa eleitoral, abrindo caminho para que um novo nome seja escolhido pelo Partido Democrata.
E embora formalmente não haja um nome definido para substituir o atual presidente, o mais provável, por razões legais e pelo fato de não existir uma alternativa forte o suficiente para naturalmente aglutinar os vários grupos que compõem o partido, o mais certo é que a atual vice-presidente Kamala Harris seja a nova candidata dos democratas para o pleito de novembro próximo nos EUA. Vislumbra-se pois uma eleição que não poderia ser mais contrastante entre as opções oferecidas ao eleitor.
Se há quase quatro anos dois homens brancos e de quase 80 anos foram as escolhas dadas, dessa vez, haverá, de um lado, um ex-presidente, misógino, condenado pela justiça, consagrado em sua base por posições extremadas e uma retórica anti-sistemica, por vezes violenta, apoiando uma visão xenofóbica, por vezes racista, ultra-nacionalista, protecionista e de caráter hegemônico (anti-minorias).
Do outro lado, provavelmente teremos uma mulher não-branca, ex-procuradora do estado da Califórnia, ativista dos direitos reprodutivos das mulheres e das minorias raciais e LGBTQIA+, que representa, portanto, tudo o que a base trumpista, que urge pelo suposto retorno da América branca tradicional mítica, não está disposta a aceitar.
Parece definir-se, assim, um pleito efetivamente histórico onde o eleitorado será convidado a escolher entre dois projetos de país bem diferentes. Um deles de país que se fecharia mais em si mesmo, se negaria a aceitar as profundas mudanças demográficas e culturais já existentes, e aceleraria ainda mais a decadência econômica, educacional e tecnológica em curso. O outro, um projeto de construção de uma democracia de fato multicultural, com a possibilidade de resgatar maiores níveis de inclusão que vêm sendo perdidos desde o desmonte neoliberal dos anos 1980 e 1990, e aprofundado com as aventuras intervencionistas no Oriente Médio do início dos anos 2000.
Por serem visões de sociedade muito distintas, é pouco provável que haja mudanças significativas de eleitores de um projeto que venham agora, com um novo candidato no lado dos democratas, a apoiar o partido oposto.
E assim, dentro da profunda polarização política que tem definido a sociedade norte-americana ao longo das últimas duas décadas, ganhará o candidato ou a candidata que conseguir mobilizar mais a sua própria base a fim de efetivamente irem votar no dia da eleição. No momento a base trumpista está motivada. Mas, com um novo do lado democrata, abriu-se a possibilidade de que haja uma nova dinâmica de mobilização entre as bases do partido.
Para além do contexto doméstico, ter Trump ou Harris no poder nos próximos quatro anos implicaria também em distintos possíveis caminhos para a política externa norte-americana.
Trump promete aprofundar a disputa hegemônica com a China, enquanto pretende, por outro lado, dar um fim ao conflito na Ucrânia, provavelmente com um processo de negociação favorável ao Kremlin. Promete fechar a fronteira para imigrantes, especialmente da América Latina e expulsar imigrantes não documentados em solo norte-americano. Ele sinaliza também com um forte aumento de medidas protecionistas e com um maior isolacionismo ou anti-multilateralismo no comportamento internacional do país. Todas as ações se alinham perfeitamente bem com a agenda da extrema-direita que tem obtido crescente apelo em escala global.
Por sua vez, embora também veja a China como o grande desafio do futuro, Harris tenderia a manter a visão mais internacionalista e liberal do Partido Democrata, desde pelo menos os anos 1990. Haveria também uma maior pressão na fronteira sul, mas com maior grau de humanismo no tratamento dos imigrantes. Os EUA continuariam engajados na guerra ucraniana, assim como com a Otan e com organizações multilaterais de base não militar. O atual estado das relações internacionais continuaria, portanto, complexo, mas não se aprofundaria a retórica xenofóbica e isolacionista do trumpismo.
Para o Brasil, tal quadro também deve ser visto como expondo possibilidades distintas. E embora haja muitas semelhanças na política externa democrata e republicana, ter no poder do país mais importante do mundo o maior líder da extrema-direita radical não oferece nada construtivo para um país que busca reconstruir sua própria democracia após anos de obscurantismo e destruição.
Trump certamente reforçaria a extrema-direita brasileira, provavelmente na direção de assumir posições ainda mais extremadas e violentas. Será importante pois acompanharmos de perto os desdobramentos da histórica eleição presidencial nos Estados Unidos em novembro deste ano. Muito está em jogo, para os EUA e para o mundo.
Rafael R. Ioris é professor de história latino-americana no Departamento de História da Universidade de Denver. É pesquisador do Instituto de Estudos dos Estados Unidos no Brasil e autor de vários artigos e capítulos de livros sobre a história do desenvolvimento no Brasil e em outras partes da América Latina e sobre o curso das relações EUA-América Latina, particularmente durante a Guerra Fria. Autor de livros como Qual desenvolvimento? Os debates, sentidos e lições da era desenvolvimentista, Transforming Brazil: A history of national development in the postwar era. É non-resident fellow do Washington Brazil Office, em DC.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional