Diplomacia temperada – O papel da culinária nas relações internacionais
Quando a diplomacia culinária e a gastrodiplomacia caminham lado a lado, dão-se as condições para que os representantes estatais alcancem melhores entendimentos e promovam relacionamentos duradouros de confiança entre suas sociedades
A relação entre a diplomacia e a comida é visceral. Por um lado, a gastrodiplomacia – ferramenta de diplomacia pública – é o uso da gastronomia para transmitir mensagens e melhorar a reputação de um país entre sociedades estrangeiras. Por outro lado, a diplomacia culinária – instrumento diplomático tradicional – busca criar ambiente propício às negociações internacionais, em geral por meio de refeições cuidadosamente planejadas, nas quais se costuram tratados de paz, acordos comerciais e alianças. Não raro, esses conceitos convivem e se reforçam, como no histórico banquete que o rei do império neoassírio Assurnasirpal II ofereceu em 879 a.C. a 70 mil convidados, entre os quais dignitários e emissários estrangeiros, para inaugurar sua nova capital, Ninrode.
No Brasil, de maneira contraintuitiva, a família imperial não era particularmente afeita aos banquetes, e o mais famoso deles naquele período foi o que precedeu, em poucos dias, a derrocada da monarquia. O luxo e o esplendor experimentados pelos 5 mil presentes ao Baile da Ilha Fiscal, em que o governo do Império homenageou os oficiais do navio chileno Almirante Cochrane em novembro de 1889, contrastavam com a crise social que culminaria na mudança de regime. Uma semana depois, o governo republicano brindaria a mesma tripulação, na mesma Ilha Fiscal, com outro banquete, para assinalar a continuidade das boas relações entre Brasil e Chile.
De fato, foi a República que notavelmente lançou mão da diplomacia culinária para aproximar o país do resto do mundo. O Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira e chanceler de quatro presidentes (apesar de carregar o título nobiliárquico do passado monarquista), ensinava a seus familiares e funcionários que, nas relações exteriores, ‘”os estômagos desempenham seus papéis, pois a um anfitrião não é agradável que não se lhe aprecie a mesa. Mas as orelhas estarão também atentas”.
Quando enviou Rui Barbosa para a Conferência da Paz em 1907, Rio Branco assegurou orçamento para uma ambiciosa “política de jantares”, que permitiu ao delegado brasileiro arquitetar consenso em torno do princípio da igualdade jurídica entre as nações. O diplomata baiano trouxe de volta para o Brasil certo protagonismo internacional e o apelido de Águia de Haia. Apreciador do Café Brito e das feijoadas do Rio Minho, no Rio de Janeiro, e dos célebres restaurantes parisienses, o Barão cultivava a fama de glutão e apostava em cardápios pensados e impressos em francês. Do consommé à pâtisserie, havia esforço para salpicar um à la brésilienne no menu do diner.
O protocolo rígido e impregnado de hábitos importados e aristocráticos de outros tempos ajustou-se, mais tarde, a uma diplomacia moderna, em que o Estado e seus assuntos são coisas públicas. A primeira visita de um monarca inglês a Washington, em 1939, foi celebrada com a Cúpula do Cachorro-Quente, um piquenique em cadeiras dobráveis. Para persuadir o público norte-americano de que era boa ideia aliar-se com os ex-colonizadores britânicos contra o fascismo, Roosevelt convidou o rei George VI e a rainha Elizabeth para comer hot dog e beber cerveja no jardim, numa tentativa de nutrir empatia pela realeza entre a sociedade local. A iniciativa foi um êxito, e logo os Estados Unidos passariam a enviar suprimentos e soldados para apoiar o front europeu.
Duas décadas mais tarde, para marcar a reaproximação com a Alemanha, o texano Lindon Johnson inovou com a “diplomacia do churrasco”, quando recebeu com pratos de papel e toalhas quadriculadas, em seu rancho, o chanceler alemão Ludwig Erhard. Os antigos adversários transmitiram à opinião pública mensagem de íntima amizade, e o New York Times considerou as posições norte-americanas “no ponto” e as mensagens “bem passadas”.
Outros presidentes usaram a comida para transgredir mais frontalmente os protocolos diplomáticos e buscar identificação direta com os eleitores. Na cerimônia de posse de Ronald Reagan, consumiram-se 40 milhões de balas de goma – sua marca pessoal – com as cores da bandeira americana. Donald Trump ofereceu hambúrgueres e pizzas das principais lanchonetes de fast-food – em bandejas de prata – a jogadores de futebol americano, no salão de Estado da Casa Branca. Jair Bolsonaro divulgou imagens cozinhando miojo no quarto de hotel para evitar as iguarias do banquete de entronização do imperador japonês, buscando distanciar-se de qualquer protocolo que pudesse ser associado a sofisticação.
Mas uma diplomacia culinária séria e inteligente, planejada a partir de objetivos de política externa, pode determinar os rumos da humanidade. Como dizia o chef Anthony Bourdain, “a comida talvez não seja a reposta para a paz mundial, mas é um começo”.
O jantar diplomático mais lembrado talvez seja o do Chopstick. Conhecedor da importância atribuída pelos chineses aos banquetes, Nixon aprendeu a comer com palitos antes de viajar para Pequim em 1972, naquela que chamou de “a semana que mudou o mundo”. Com a chamada diplomacia do pingue-pongue, a República Popular da China e os Estados Unidos distensionaram relações, emitiram seu primeiro comunicado conjunto e inauguraram modus vivendi que rege a coexistência das duas grandes potências dos dias atuais.
No Brasil, um banquete histórico foi o oferecido pelo presidente Collor a 108 chefes de Estado e de governo, por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO 92. A complexa empreitada de acolher tantas culturas e armar o palco ideal para os grandes consensos que se formaram em torno do desenvolvimento sustentável constituiu verdadeira façanha de diplomacia culinária, que elevou definitivamente o perfil internacional do Brasil.
O meio ambiente e a preservação da Amazônia também foram a pauta do almoço que o presidente Lula ofereceu, em março de 2024, a Emmanuel Macron para normalizar as relações com o tradicional aliado, que haviam sido descuidadas nos anos passados.
Já distantes os primeiros banquetes da República, o Brasil realizou sua vocação antropofágica e orgulhosamente apresentou à França as diversas cozinhas de seus vários biomas, seus queijos, seus vinhos. Após a visita de Estado em que se assinou plano de ação da parceria estratégica bilateral, o presidente francês declarou publicamente seu amor pelo Brasil, que, por sua vez, alimentou a imagem de uma nação biodiversa, ambientalmente responsável e inclusiva.
Quando a diplomacia culinária e a gastrodiplomacia caminham lado a lado, dão-se as condições para que os representantes estatais alcancem melhores entendimentos e promovam relacionamentos duradouros de confiança entre suas sociedades. Não por acaso, pratos populares, como a sopa Leão Veloso e o filé à Oswaldo Aranha, homenageiam diplomatas que “devoraram” ideias de fora, criaram laços afetivos com interlocutores e, mirando o interesse nacional, projetaram a identidade do Brasil moderno e plural por onde passaram.
Hayle Melim Gadelha é colunista da Interesse Nacional, diplomata e doutor em relações internacionais pelo King’s College London. É autor do livro "Public Diplomacy on the Front Line: The exhibition of modern Brazilian paintings". (Anthem Press).
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