25 janeiro 2024

Com posicionamento sobre genocídio em Gaza, Brasil põe pé fora do muro

Apoio político à denúncia contra Israel inova e tem relevância para a discussão sobre o status internacional do país. Postura faz com que o Brasil deixe de lado a histórica neutralidade que afeta sua busca por prestígio e leva à declaração surpreendente de que o país não quer ser ‘mediador universal’

Apoio político à denúncia contra Israel inova e tem relevância para a discussão sobre o status internacional do país. Postura faz com que o Brasil deixe de lado a histórica neutralidade que afeta sua busca por prestígio e leva à declaração surpreendente de que o país não quer ser ‘mediador universal’

O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, durante entrevista coletiva (Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil)

Por Daniel Buarque*

O anúncio do apoio político do Brasil à denúncia da África do Sul à Corte Internacional de Justiça, cobrando que Israel interrompa atos e medidas que possam constituir genocídio, surpreendeu observadores e criou polêmica no país e no exterior. Líderes políticos e empresariais divulgaram manifestos contra e a favor do governo brasileiro, enquanto a discussão foca em um suposto alinhamento do país contra o “Ocidente” representado por Israel e sua ligação com os EUA. 

Para além da questão política da denúncia e do apoio do Brasil, o posicionamento também tem relevância para a discussão sobre o status internacional do país de duas formas marcantes: ele faz com que o Brasil tire um pé de “cima do muro” em disputas internacionais e gera declarações de que o país não quer ser um “mediador universal”.

‘Sem avaliar o mérito do posicionamento do Brasil, o apoio do país à denúncia sul-africana vai contra a tradicional imagem de que o país não toma partido’

A primeira questão é uma surpresa positiva para a análise do prestígio internacional do Brasil. Sem avaliar o mérito do posicionamento do Brasil – ou mesmo as ações de Israel – na questão da guerra na Faixa de Gaza, o apoio do país à denúncia sul-africana vai contra a tradicional imagem de que o país não toma partido em grandes questões da política global. 

Pesquisas com a comunidade de política externa das grandes potências confirmam o que acadêmicos e mesmo políticos como o ex-presidente americano Barack Obama já apontam há tempos em relação ao país. Historicamente isso tem sido apontado como um empecilho para a ampliação do status do Brasil, pois é preciso assumir posições claras ao tentar ter um papel de líder internacional.

Em sua coluna de estreia na Interesse Nacional, o professor Sean Burges reiterou este ponto e escreveu que “a liderança envolve mais do que convocar uma conversa onde tópicos difíceis podem ou não ser abordados. A liderança também envolve tomar posições firmes sobre questões e se envolver em ações que nem todos podem apreciar”. 

O chanceler Mauro Vieira já tinha dado indícios de uma postura mais assertiva do país ao assumir o Itamaraty. Em entrevista ainda no início de 2023, ele declarou que o Brasil havia saído de cima do muro em relação à guerra na Ucrânia – embora o Brasil ainda seja questionado por um posicionamento frágil contra a Rússia.

‘Ao tomar partido, o Brasil dá um passo importante para romper com uma percepção externa que atrapalha sua busca por status’

Essa postura mais incisiva está bem mais alinhada ao que acontece na questão da Faixa de Gaza atualmente. O Brasil tomou uma postura rara, e gerou reações de insatisfação, o que é natural. Ao tomar partido, o Brasil dá um passo importante para romper com uma percepção externa que atrapalha sua busca por status. 

Mais uma vez, isso não leva em consideração o mérito da posição do Brasil, mas ser visto como assumindo uma posição, após décadas alimentando a imagem de ficar “neutro”, chama a atenção e tem aspectos positivos para a percepção do papel do país no mundo. 

O segundo ponto também está ligado à questão política da disputa em Gaza e também tem aspectos positivos para o prestígio brasileiro. 

Em um artigo sobre o apoio do país à denúncia sul-africana contra Israel, Vieira argumentou que “a crítica de que a posição brasileira afetaria suas credenciais como suposto mediador nesta e em outras questões globais parte de pressuposto equivocado de que o Brasil é candidato a ser uma espécie de mediador universal. Essa pretensão não existe e não é realista”.

‘O Brasil historicamente usa a reiterada neutralidade em diferentes conflitos como justificativa para tentar se emplacar no papel de mediador’

Este posicionamento é novo e chama a atenção, pois o Brasil historicamente usa a reiterada neutralidade em diferentes conflitos como justificativa para tentar se emplacar no papel de mediador, buscando usar essa função para ampliar seu prestígio.

Em artigo recente, publicado pela Revista Brasileira de Política Internacional, com o professor Miguel Mikelli Ribeiro, apontou-se que a busca por uma atuação de destaque na resolução pacífica de conflitos é um elemento constitutivo da diplomacia do país, há muito tempo vista como parte da ambição do Brasil de alcançar um alto status internacional.

A declaração de Vieira indica uma mudança nessa postura histórica e tem aspectos positivos porque o mesmo estudo apontava limitações nessa tentativa brasileira. O Brasil em muitos momentos não era reconhecido como uma parte relevante nas disputas (como no caso do acordo nuclear do Ocidente com o Irã), mas continuava tentando mesmo assim (como ficou claro na tentativa de formar um “clube da paz” para a questão da Ucrânia). Essa postura indiscriminada tinha o potencial de reduzir ainda mais as chances de o país ser reconhecido como um mediador de peso. 

Ao rejeitar a imagem de país que quer ser mediador universal e reconhecer que “mediadores são escolhidos pontualmente pelas partes em conflito”, Vieira dá demonstração de entender as complexidades da geopolítica e as dificuldades do Brasil em buscar um papel relevante na política internacional. Este é um primeiro passo no desenvolvimento de uma estratégia para promover o status do Brasil.

Assim como no posicionamento do Brasil sobre a denúncia de genocídio em Gaza, é difícil saber de imediato se o movimento foi correto e vai trazer frutos para o país. Mas é importante reconhecer que, ao dar este passo, o país pelo menos não está mais no mesmo lugar.  


*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, pesquisador no pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP (ISI/USP), doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de livros como Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial) e O Brazil é um país sério? (Pioneira). 

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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional 

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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