07 março 2024

Percepção de inconsistência da política externa brasileira é anterior a governo Lula

Artigo publicado pela Economist apontou avanços na ‘volta’ do país ao contexto global, mas indicou que inconsistências do presidente ameaçam o prestígio brasileiro. Estudo sobre status internacional do Brasil mostra que essa visão de um país sem uma estratégia global clara é antiga e se aplica historicamente à busca por reconhecimento internacional

Artigo publicado pela Economist apontou avanços na ‘volta’ do país ao contexto global, mas indicou que inconsistências do presidente ameaçam o prestígio brasileiro. Estudo sobre status internacional do Brasil mostra que essa visão de um país sem uma estratégia global clara é antiga e se aplica historicamente à busca por reconhecimento internacional

Imagem gerada pela ferramenta de inteligência artificial Dall.E a partir de ilustração original publicada pela revista The Economist

Por Daniel Buarque*

Em um balanço do primeiro ano da política externa do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, a revista The Economist listou uma série de avanços no trabalho do governo para projetar a ideia de “volta” do Brasil ao cenário internacional, especialmente com a Presidência do G20. Ao mesmo tempo, o artigo Lula’s gaffes are dulling Brazil’s G20 shine, publicado na última semana, também adotou um tom crítico, apontou que há sérias inconsistências na postura internacional do país e indicou a percepção global de que o Brasil “não decidiu que tipo de país vai ser”

Segundo a revista, inconsistências como as críticas a Israel e a aproximação com a Rússia ameaçam enfraquecer o efeito global da política externa de Lula. “Lula quer que o Brasil seja tudo para todas as pessoas: um amigo do Ocidente e um líder do Sul global, um defensor do meio ambiente e uma potência petrolífera global, um promotor da paz e um aliado dos autocratas. O Brasil pode muito bem estar de volta, mas o papel que desempenha no cenário mundial é mais obscuro do que deveria ser”, destacou.

‘Avaliação da revista reflete de forma muito mais ampla a percepção das grandes potências a respeito do status internacional do Brasil’

A avaliação da revista editada em Londres ressoou internamente no Brasil, e foi muito usada em declarações críticas ao atual governo. Mas ela reflete de forma muito mais ampla, e sob uma perspectiva histórica, a percepção das grandes potências a respeito do status internacional do Brasil como um todo – não apenas sob Lula.

Apesar de as nações mais poderosas conhecerem a ambição brasileira de ter um lugar de destaque nas relações internacionais, elas acham que o país foi incapaz de desenvolver uma estratégia clara para tentar alcançar o nível de prestígio que quer alcançar. Isso está muito associado também à ideia de que o Brasil não sabe bem que papel quer ter no mundo, e que fica sempre em cima do muro em grandes disputas internacionais.

Estes são alguns dos resultados da minha pesquisa de doutorado sobre o status do Brasil, desenvolvida a partir de 94 entrevistas com a comunidade de política externa dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (EUA, Reino Unido, França, China e Rússia). O trabalho completo acaba de ser publicado no livro Brazil’s International Status and Recognition as an Emerging Power (Palgrave Macmillan). A percepção externa é que o Brasil sempre quer ser amigo de todos, sempre evita tomar lados e assumir posturas arriscadas e sempre evita se alinhar com blocos específicos em disputas globais. Ao mesmo tempo, o país quer ser reconhecido como “um dos grandes”, mesmo que não tenha uma estratégia clara para buscar isso. A ideia de que o Brasil “não sabe o tipo de país que quer ser” é evidente nessa percepção externa que traça o status dele desde 1989, bem antes das recentes movimentações de Lula.

‘Embora o Brasil tenha um longo histórico de ambição por reconhecimento internacional, seu comportamento internacional é percebido como errático’

Um argumento muito comum entre os entrevistados é que embora o Brasil tenha um longo histórico de ambição por reconhecimento internacional, seu comportamento internacional é percebido como errático, não baseado nas reais capacidades do Estado e formado apenas por retórica. 

Da perspectiva das grandes potências, todas as diferentes tentativas de projetar o Brasil e aumentar seu status revelam uma falta de capacidade de focar na criação de um plano claro para o Estado e seu lugar no mundo. O Brasil, afirmam eles, parece estar atirando em todas as direções possíveis e, portanto, acaba sem um caminho claro e possível para melhorar sua posição.

‘O Brasil não parece ter uma agenda consistente para alcançar o status que deseja e acaba sem um papel claro nas relações internacionais’

Ainda que o Itamaraty e muitos pesquisadores brasileiros possam argumentar que existem bases sólidas bem consolidadas para uma estratégia nacional de projeção global, isso claramente não é percebido por observadores externos há bastante tempo. Para a maioria dos entrevistados, o Brasil não parece ter uma agenda consistente para alcançar o status que deseja e acaba sem um papel claro nas relações internacionais. “Não sei dizer exatamente o que o Brasil quer”, disse um pesquisador francês. 

Um problema dessa percepção de falta de uma agenda consistente para aumentar o status do Brasil é que observadores externos veem que há muito tempo o país tenta se inserir internacionalmente de forma caótica e desorganizada. Em vez do que é visto como uma tentativa de ter relevância em todas as partes das relações internacionais, a análise das entrevistas com os entrevistados do mostra que eles acreditam que o Brasil deveria “escolher suas lutas” e “aproveitar seus pontos fortes” para promover seus interesses.

O governo Lula até fez um pouco isso ao anunciar a prioridade que daria à questão ambiental, reconhecidamente uma força do país. O artigo da Economist até menciona isso como um avanço da política externa brasileira. Ainda assim, sob a perspectiva externa faz sentido apontar que parece continuar faltando um foco e uma estratégia clara para o país.


*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, pesquisador no pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP), doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de livros como Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial) e O Brazil é um país sério? (Pioneira). 

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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional 


Daniel Buarque é editor-executivo do portal Interesse Nacional. Pesquisador no pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP), doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de livros como "Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities" (Palgrave Macmillan), "Brazil, um país do presente" (Alameda Editorial), "O Brazil é um país sério?" (Pioneira) e "o Brasil voltou?" (Pioneira)

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