07 fevereiro 2024

A presidência brasileira no G20 e o desafio da coerência de políticas 

Após um primeiro ano de retomada da participação do Brasil na política internacional, 2024 começa marcado pela liderança do G20 como oportunidade para a busca de um protagonismo do país em questões globais. Para professora, o Brasil precisa equilibrar o hiperativismo e atuar para garantir que os esforços do grupo não acabem por promover incoerência ou fragmentação

Após um primeiro ano de retomada da participação do Brasil na política internacional, 2024 começa marcado pela liderança do G20 como oportunidade para a busca de um protagonismo do país em questões globais. Para professora, o Brasil precisa equilibrar o hiperativismo e atuar para garantir que os esforços do grupo não acabem por promover incoerência ou fragmentação

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa durante a abertura da Sessão Conjunta das Trilhas de Sherpas e de Finanças do G20 (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Por Laura Trajber Waisbich* 

O ano de 2023 foi o ano da retomada da plena participação internacional do Brasil em grandes questões internacionais. A difícil tarefa do novo governo federal era não apenas normalizar as relações internacionais do país, mas de fazê-lo em um cenário internacional em ponto de ebulição, marcado por múltiplas crises (polycrisis) ou até mesmo por um permanente estado de crise (permacrisis). Trazer o Brasil de volta é ao mesmo tempo um projeto político e uma promessa feita ao público doméstico, bem como a parceiros internacionais na região e fora dela. 

Recolocar o Brasil no mapa era necessário, em 2023, para retomar agendas e laços bilaterais abandonados nos últimos anos, bem como recolocar o país nos principais fóruns onde historicamente o Brasil tem autoridade e capacidade de atuar ou até mesmo liderar. Recuperar a liderança e credibilidade perdidas não se confunde com uma aposta irrealista em um impossível e inalcançável projeto de grandeza, e sim buscar retomar o protagonismo que pode caber ao Brasil em agendas estratégicas ao país bem como alavancar o potencial da política externa de servir como instrumento do desenvolvimento inclusivo do país em um mundo em rápida transformação. 

‘A presidência rotativa do Brasil no G20, oferece uma oportunidade de colocar em prática não apenas as ideias ventiladas ao longo do ano passado, mas também dar corpo a algumas agendas históricas da política externa’

Para isso, o ano de 2024 deve ser um ano de consolidação. Tal ajuste é necessário após o intenso período de ativismo diplomático do Brasil observado em 2023. Neste sentido, a presidência rotativa do Brasil no G20, recém iniciada, oferece uma oportunidade de colocar em prática não apenas as ideias e propostas ventiladas ao longo do ano passado, inclusive as feitas durante a abertura da Assembleia Gera das Nações Unidas em Nova York pelo próprio presidente da República, mas também dar corpo a algumas agendas históricas da política externa; algumas estagnadas há anos e outras necessitando de oxigenação. 

O G20 ganhou protagonismo nos últimos anos, em um mundo cada vez mais pós-Ocidental (STUENKEL, 2016; ACHARYA, 2017) em que as engrenagens do multilateralismo entraram em crise. O clube das economias mais importantes do planeta hoje incorpora distintas vozes do chamado mundo em desenvolvimento. A sucessão de presidências do Sul Global (Indonésia, Índia, Brasil e África do Sul) no G20 não apenas simboliza os câmbios geopolíticos e geoeconômicos em curso, mas dá considerável poder de agenda para estes países para colocar temas centrais aos países em desenvolvimento na pauta das discussões e iniciativas do grupo. 

‘A Índia logrou transformar sua presidência no G20 em plataforma para impulsionar e demarcar seu crescente protagonismo internacional’

Em 2023, a Índia logrou transformar sua presidência no G20 em plataforma para impulsionar e demarcar seu crescente protagonismo internacional. Fez de sua presidência um suntuoso palco de seu ativismo diplomático, reforçando sua ambição de ser vista como parte do rol das grandes potências do século XXI bem como incontornável voz e representante do Sul Global

Sob a batuta indiana, e apesar das tensões entre Rússia e o Ocidente após a invasão da Ucrânia em 2022, os membros do G20 lograram alguns acordos incrementais em questões ligadas ao desenvolvimento sustentável, incluindo descarbonização, energias renováveis e o papel dos bancos multilaterais no financiamento climático e verde. A presidência do G20 foi ainda palanque eleitoral para o líder indiano, Narendra Modi, que busca consolidar seu poder e apostou na visibilidade internacional do G20 como instrumento da corrida eleitoral em curso. 

O Brasil de Lula da Silva não ambiciona seguir o mesmo caminho, mas tem diante de si o importante desafio de manter ativo o diálogo multilateral na pauta do desenvolvimento sustentável inclusivo em tempos em que a agenda internacional já tensionada no contexto pós-invasão da Ucrânia encontra-se mais uma vez convulsionada por conta do conflito em Gaza. 

‘A presidência brasileira do G20 é também um verdadeiro teste para a consolidação, para além da retórica, da promessa de recolocar o Brasil no mundo’

A presidência brasileira do G20 é também um verdadeiro teste para a consolidação, para além da retórica, da promessa de recolocar o Brasil no mundo.  Em um contexto em que fóruns internacionais, inclusive o G20, carecem de legitimidade e efetividade, o foco do governo brasileiro em centrar seus esforços na luta contra a fome, a pobreza e a desigualdade, no fortalecimento da cooperação internacional para a promoção do desenvolvimento sustentável e na reforma da governança global é acertado. Tal agenda dá ao país a chance de liderar em temas em que o país já acumulou experiência diplomática e pode liderar pelo exemplo, pois possui histórico de inovação de política públicas (em âmbito federal e subnacional) e amplo diálogo social com academia e sociedade civil, podendo fazer uso deste acúmulo no marco de fóruns paralelos como o T-20 e C-20, que congregam representantes de think tanks e da sociedade civil dos países membros do grupo, respectivamente. 

A fome entrou na agenda da política externa brasileira no começo dos anos 2000 (OLIVEIRA; LIMA, 2023). Apesar da atenção ao assunto ter decrescido drasticamente no marco das crise político-econômica dos anos 2010 e da agenda de desmantelamento do arcabouço político-institucional dedicado à segurança alimentar e nutricional entre 2016 e 2022, o tema nunca desapareceu e seguiu um objeto de diálogo e cooperação técnica com países da região,  África e Ásia (SABOURIN; CRAVIOTTI; MILHORANCE, 2020; LIMA; WAISBICH; SERAFIM, 2022; LUIZ; MILANI, 2022). 

‘Longe de serem questões exclusivas ao mundo em desenvolvimento, a fome, pobreza e as desigualdades são questões de caráter universal’

A importância da experiência brasileira e as décadas de acúmulo de invocação local, arranjos de governança e produção de dados ficaram ainda visíveis no contexto da pandemia de Covid-19 e reforçaram o papel do Brasil na renovada promoção dessa agenda. Longe de serem questões exclusivas ao mundo em desenvolvimento, a fome, pobreza e as desigualdades são questões de caráter universal. Em curva ascendente há décadas, os anos de pandemia aceleraram ainda mais a urgência de um esforço multilateral de combate à fome, pobreza e desigualdade ao redor do mundo, inclusive nas maiores economias do planeta que hoje compõem o G20. 

A proposta de uma Aliança Global pela Fome é nesse sentido estratégica para a consolidação dos esforços brasileiros de retomar a centralidade da luta contra a fome em âmbito doméstico, colocando-a uma vez mais “no orçamento” no jargão utilizado pelo governo e seus aliados. É também uma demonstração da renovada contribuição brasileira no sentido de inclusão do tema na agenda internacional, na esteira do ativismo brasileiro para a inclusão destas temáticas no rol dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e na agenda das Nações Unidas, mais amplamente, nas últimas duas décadas.  

Já as outras duas prioridades elegidas pelo Brasil (a da promoção do desenvolvimento sustentável em suas dimensões social, econômica e ambiental e a da reforma da governança global, incluindo o sistema das Nações Unidas e a arquitetura financeira internacional) são prioridades clássicas na agenda do G20 nos últimos anos. Aqui a principal tarefa do Brasil deve ser não apenas de buscar dar visibilidade para a inovação, oxigenando um debate que transcorre há anos, mas sobretudo de articular de forma coerente a contribuição do G20 para debates e iniciativas já em curso, sobretudo no âmbito das Nações Unidas, mas também das instituições de Bretton Woods. 

‘O Brasil é historicamente um dos mais contundentes críticos da falta de representatividade de organismos internacionais e da sua conseguinte falta de legitimidade’

Com o multilateralismo tradicional em crise, há um risco crescente de que grupos como o G20 ganhem mais relevância e ao fazê-lo desloquem ou ofusquem esforços gestados em outros fóruns mais inclusivos e representativos do que o clube do G20, que apesar das recentes expansões, permanece um clube seleto. O Brasil é historicamente um dos mais contundentes críticos da falta de representatividade de organismos internacionais e da sua conseguinte falta de legitimidade. Sem dúvida, o país tem consciência das potencialidades, bem como das fragilidades de um espaço oligárquico como o G20 e dos riscos que isso traz para a gestão de questões globais que perpassam e afetam todas as nações e não apenas às que foram convidadas a sentar-se à mesa.

Neste sentido é fundamental que sob a liderança brasileira o G20 possa canalizar a energia e as propostas para a reforma do multilateralismo e potencializar processos já ocorrendo em outras esferas, processos que o próprio Brasil já dedicou e seguirá dedicando capital e energia diplomática. Isso inclui um diálogo com iniciativas no seio das Nações Unidas, como os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, o Acordo de Paris, e a Cúpula do Futuro, anunciada pelo Secretário Geral das Nações Unidas e que também ocorrerá em 2024. 

Na literatura sobre políticas públicas há um termo interessante que captura o desafio: coerência de políticas (policy coherence). No debate sobre desenvolvimento, o termo foi sobretudo usado para alertar países doadores, especialmente no mundo industrializado, quanto à necessidade de buscar coerência não apenas entre discurso e prática, mas também entre políticas e iniciativas em prol do desenvolvimento internacional. Isso porque abundam evidências de países e instituições cujas ações se contradizem, países que por um lado investem somas de recursos em ajuda internacional ao desenvolvimento, sobretudo em países do Sul Global “beneficiários” de ajuda internacional, para fortalecer processos, sistemas e capacidades e, por outro, implementam ações ou políticas (comerciais, migratórias, de investimentos, etc.) que anulam ou inviabilizam estes mesmos esforços (PICCIOTTO, 2005; SIANES, 2017). Não faltam exemplos, em âmbito doméstico e nas relações internacionais, deste tipo de incoerência. 

‘O inevitável hiperativismo do ano passado precisa agora ser reequilibrado à luz de uma discussão estratégica das áreas e temáticas em que o Brasil quer e pode contribuir’

No caso da retomada do protagonismo internacional do Brasil, o chamado à coerência é um apelo, mas também um alerta. O inevitável hiperativismo do ano passado precisa agora ser reequilibrado à luz de uma discussão estratégica das áreas e temáticas em que o Brasil quer e pode contribuir, e até mesmo liderar. Em tempos de recursos políticos e financeiros escassos e diante da abundância de crises, esforços consistentes de autoconhecimento, autoavaliação e planejamento estratégico, inclusive no âmbito diplomático (BELLI; NASSER, 2018), seguem sendo necessários.  

No caso da liderança do G20 o apelo, e alerta, é para que durante sua presidência o Brasil garanta que os esforços do grupo não acabem por promover incoerência ou fragmentação, tornando-se ator e locus do esvaziamento de debates e esforços já existentes, em um formato minilateral que se não bem calibrado corre o risco de tornar-se perverso e contraprodutivo. O desafio, portanto, para a política externa brasileira em 2024 é alcançar essa consolidação de sua renovada liderança com coerência, tanto em sua política externa bem como em seu papel como protagonista de esforços multilaterais de gestão das maiores questões globais da atualidade. 


*Laura Trajber Waisbich é colunista da Interesse Nacional, cientista política, diretora do Programa de Estudos Brasileiros e professora de estudos latino-americanos na Universidade de Oxford.

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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Referências: 

ACHARYA, A. After Liberal Hegemony: The Advent of a Multiplex World Order. Ethics & International Affairs, v. 31, n. 3, p. 271–285, 2017. 

BELLI, B.; NASSER, F. (EDS.). The road ahead: the 21st century world order in the eyes of policy planners. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2018. 

LIMA, T.; WAISBICH, L. T.; SERAFIM, L. “One Single Agriculture”: Dismantling Policies and Silencing Peasant Family Farmers in Brazilian Foreign Policy (2016-2022). Revista Brasileira de Política Internacional, v. 65, n. 2, p. e018, 2022. 

LUIZ, J. R.; MILANI, C. R. S. Brazilian Foreign Policy and Family Farming: Internationalisation Processes through the Analysis of ‘Forums and Arenas’. Contexto Internacional, v. 44, n. 1, p. e20200101, 2022. 

OLIVEIRA, M. F. D.; LIMA, T. Política Externa Brasileira e Combate à Fome: lições do passado, perspectivas para o futuro. [s.l.] Faculdade de Filosofia e Ciências, 2023. 

PICCIOTTO, R. The Evaluation of Policy Coherence for Development. Evaluation, v. 11, n. 3, p. 311–330, jul. 2005. 

SABOURIN, E.; CRAVIOTTI, C.; MILHORANCE, C. The Dismantling of Family Farming Policies in Brazil and Argentina. International Review of Public Policy, v. 2, n. 1, p. 45–67, 27 abr. 2020. 

SIANES, A. Shedding Light On Policy Coherence for Development: A Conceptual Framework. Journal of International Development, v. 29, n. 1, p. 134–146, jan. 2017. 

STUENKEL, O. Post-western world: how emerging powers are remaking global order. Malden, MA: Polity, 2016. 

Laura Trajber Waisbich é cientista política afiliada ao Skoll Centre, na Said Business School da Universidade de Oxford. Foi diretora do Programa de Estudos Brasileiros e professora de estudos latino-americanos na universidade.

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