27 fevereiro 2024

Paulo Roberto de Almeida: O drama da Ucrânia parte 1 – O que se passa no mundo, e no Brasil?

Guerra iniciada com ataque de Putin é a ameaça mais relevante para a segurança na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Nesta primeira de três partes de um artigo, diplomata analisa o impacto da agressão da Rússia sobre as relações internacionais – incluindo a situação do Brasil

Guerra iniciada com ataque de Putin é a ameaça mais relevante para a segurança na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Nesta primeira de três partes de um artigo, diplomata analisa o impacto da agressão da Rússia sobre as relações internacionais – incluindo a situação do Brasil

Soldados observam destruição deixada por ataque russo à Ucrânia (Foto: CC)

Por Paulo Roberto de Almeida*

Poucas pessoas bem-informadas sobre o estado do mundo atual recusariam a constatação de que a guerra de agressão deslanchada por Putin contra a Ucrânia em fevereiro de 2022, e continuada desde então, constitui a ameaça mais relevante para a segurança e a paz na Europa e no mundo desde que Hitler empreendeu a conquista da Polônia em setembro de 1939, dando início ao mais devastador conflito global da contemporaneidade. A invasão, ilegal nos termos da Carta da ONU e sob todos os pontos de vista, tornou o mundo menos seguro e mais propenso a um conflito ainda mais devastador (Livres, 2023).

Eu escrevi Putin, e não Rússia, e Hitler, em lugar de Alemanha nazista, pois que ambos os ataques criminosos e ilegais, entre muitos outros atos criminosos que precederam tais ataques devastadores, são devidos exclusivamente à vontade pessoal de duas personalidades autoritárias, a rigor animadas por instintos tirânicos, e não aos desejos do povo alemão, em 1939, ou aos do povo russo em 2022.

‘A guerra de agressão da Rússia à Ucrânia afetou não só interesses econômicos e materiais do Brasil como um todo, mas também a própria política externa e a diplomacia brasileiras’ 

Similarmente, poucas pessoas informadas sobre o estado do Brasil atual recusariam o fato de que estamos, agora, bem melhores, em termos de civilidade, de política “normal”, de comportamentos minimamente previsíveis dos agentes públicos, do que estávamos nos anos do governo precedente. Por outro lado, não há como deixar de reconhecer que a guerra de agressão da Rússia à Ucrânia afetou não só interesses econômicos e materiais do Brasil como um todo — inflação, comércio exterior, tensões internacionais —, mas também a própria política externa e a diplomacia brasileiras, a partir de seu início. 

Cabe, portanto, abordar essas duas questões — o estado incerto, na Europa e do mundo, na atual conjuntura, e os desafios daí decorrentes para o Brasil como um todo, em especial para as suas relações exteriores — numa abordagem de natureza conceitual, tanto quanto de ordem prática, dadas as múltiplas facetas do mundo pós-invasão da Ucrânia e do Brasil pós-terremoto bolsonarista. Não há como recusar o fato notório de que o mundo se ressente de diversos elementos disruptivos desde a guerra de agressão à Ucrânia, assim como o Brasil ainda suporta o impacto das ameaças ao sistema democrático brasileiro feitas durante os quatro anos do mandato imediatamente precedente ao atual.

Na raiz de ambas as questões, o estado do mundo e o do Brasil, existem processos objetivos — as relações econômicas e políticas entre os respectivos atores globais e regionais — tanto quanto elementos subjetivos, derivados das personalidades envolvidas nos contextos respectivos. A complexidade dessas interações requer uma abordagem metódica e linear de cada um dos problemas, pois que o estado atual do mundo e do Brasil decorre de escolhas feitas no passado, no plano mais geral das políticas nacionais, assim como de decisões tomadas segundo o arbítrio dos personagens mais diretamente envolvidos nas questões.

A história não se repete, mas ela pode trazer de volta fantasmas do passado

Em artigos redigidos em meados do século XIX, Karl Marx expressava sentimentos não muito distante daqueles manifestados por seus adversários burgueses ou aristocratas da Europa ocidental quanto à ameaça expansionista representada pela Rússia autocrática, tanto em direção do Ocidente, quanto no sentido contrário, em direção das estepes asiáticas e das terras do Celeste Império. Vladivostok, por exemplo, era uma pequena cidade portuária chinesa, antes de ser incorporada ao território czarista e receber outro nome; Harbin, a atual capital da província chinesa da Manchúria, foi construída por engenheiros militares russos, no final do século XIX, no caminho da expansão da ferrovia Transiberiana até o Pacífico. No final do século, Rússia e Japão disputavam terras do Império do Meio, nas costas do mesmo oceano, próximas à península da Coreia, que acabou sendo incorporada ao império nipônico em expansão, assim como ocorreu com a desolada ilha de Taiwan, conhecida como Formosa.

Vladimir Putin refletia um registro histórico exatamente inverso, ao dar início à sua “operação militar especial” de 24 de fevereiro de 2022, de invasão total da Ucrânia, inclusive a partir da vizinha Belarus, sob a alegação de que a Rússia tinha sido invadida duas vezes: em 1812 pelos exércitos de Napoleão, e em 1941, pela Wehrmacht, confirmando uma antiga intenção de Hitler, já implícita no Mein Kampf, um manual expansionista da raça germânica que ele escreveu na prisão, depois do putsch fracassado de 1923. Propositalmente, Putin nada disse do pacto germano-soviético de 26 de agosto de 1939, que abriu o caminho a Hitler, uma semana depois, para iniciar a conquista da Polônia, seguido no lado oriental por Stalin, temporariamente coligado, de forma oportunista, aos odiados nazifascistas dos anos 1930. Putin tampouco mencionou a anexação ilegal da península da Crimeia, em 2014, território conquistado ao Império Otomano desde os tempos da imperatriz Catarina, mas cedido, em 1954, pelo ucraniano Kruschev à então república federada soviética da Ucrânia. 

‘Ao alegar que a Rússia é que sempre foi o objeto de invasões estrangeiras, e que, portanto tinha “preocupações legítimas de segurança” –  expressão repetida por Celso Amorim –, Putin esqueceu de mencionar todas as vezes que a Rússia avançou sobre territórios de outros povos’

Ao alegar que a Rússia é que sempre foi o objeto de invasões estrangeiras, e que, portanto tinha “preocupações legítimas de segurança” –  a expressão foi repetida diversas vezes pelo assessor para assuntos internacionais do presidente Lula, seu ex-chanceler nos dois primeiros mandatos, Celso Amorim –, Putin esqueceu de mencionar todas as vezes que a Rússia avançou sobre territórios de outros povos: sobre os territórios na Ásia central e do Sul, incorporados ao vastíssimo império russo e soviético (atualmente Estados independentes, mas mantendo diversos graus de “aderência”, voluntária ou não, à atual Federação russa); o mesmo ocorreu com porções fronteiriças da Finlândia (outrora parte do Império czarista) e, sobretudo, largas frações da Polônia oriental, conquistada ao início da Segunda Guerra e não devolvida em Ialta, sendo que os poloneses tiveram de ser compensados, a oeste, com outras largas frações do território da Prússia oriental; tal subtração de terras polonesas, seguida de sua extensão a oeste, causou uma enorme massa de refugiados alemães, em 1945, em geral preferindo se estabelecer na parte ocupada pelas potências ocidentais, do que na parte de ocupação soviética, e que veio a constituir, entre 1947 e 1991, a República Democrática Alemã, reunificada à República Federal nessa última data. 

Cabe não esquecer que, tanto a Rússia quanto a União Soviética, tentaram em diversas ocasiões alcançar as águas quentes do Índico, cavando espaços na antiga Pérsia, e no Irã contemporâneo, o que ainda foi objeto de discussões nas conferências do final da guerra. No mesmo sentido, figuram os avanços em direção ao Mediterrâneo, via Mar Negro, sobre territórios e países balcânicos (Bulgária, Romênia, a própria Iugoslávia, nesta contidos por Tito, um comunista que conhecia Stalin muito bem), incluindo a Bessarábia-Moldova e a Geórgia. Por fim, são notórios os esforços para controlar o glacis das planícies centrais e orientais da Europa, o colchão de segurança que a Rússia sempre reivindicou para si, com a intenção de, justamente, se resguardar de ataques das potências continentais europeias, os impérios austríaco e alemão, assim como a França sob Napoleão. 

Putin tampouco mencionou que as duas grandes tentativas ocidentais de invasão, em 1812 e em 1941 (apenas estas, ao que parece) foram vencidas antes de mais nada pelas grandes distâncias, pela vastidão das terras (impiedosamente arrasadas, para não deixar nada para as forças invasoras), pelo “general inverno”, mas também pelo extensivo e intensivo uso de material humano, carne de canhão e alvo das metralhadoras inimigas ou das próprias pistolas dos comissários do partido, postados em cada pelotão da frente (de certa forma, ainda continua, com amplo recurso a delinquentes condenados ou conscritos das minorias russas). 

Mas cabe diferenciar uma da outra: Napoleão tinha um projeto de hegemonia continental, e a Rússia parecia se interpor nesse caminho. Hitler também tinha o seu, inclusive mundial, mas Stalin foi velhaco o suficiente para aproveitar-se dessa janela de “oportunidade” – imaginem, aliar-se a quem prometia, desde 1925, destruir o regime bolchevique? – para abocanhar um pedaço da Polônia, eternamente dividida entre vizinhos poderosos: o tirano russo foi traído pelo tirano “aliado” e, por um momento, perdeu o pé na resposta, pois que demorou quase uma semana para providenciar a defesa. Venceu, mas como previsto no figurino: vastas extensões, linhas muito dilatadas, verticalmente e horizontalmente, “general inverno” e, previsivelmente, enorme uso de “recursos humanos”, na mira das pistolas dos comissários; uma outra diferença: se Stalin não tivesse sido imediatamente ajudado por britânicos e americanos, ele e seu regime teriam sido vencidos, talvez aniquilados, por Hitler. 

‘Ao tentar fazer como seus antecessores do czarismo ou do bolchevismo, Putin provocou o efeito contrário ao pretendido: precipitou uma corrida dos vizinhos e dos países do entorno à coalizão militar supostamente inimiga’

Putin não mirou a história como deveria, e em lugar de preparar sua defesa contra os supostos inimigos da Otan (novos Napoleões, um novo Hitler?), partiu para um ataque alegadamente preventivo, mais movido por sua obsessão do que por um cálculo racional. Mas, ao tentar fazer como seus antecessores do czarismo ou do bolchevismo, Putin provocou o efeito contrário ao pretendido: precipitou uma corrida dos vizinhos e dos países do entorno à coalizão militar supostamente inimiga, dos bálticos à Albânia, assim como a decisão de dois deles de sair da neutralidade para ingressar na Otan, como foi o caso da Finlândia e da Suécia. Assim como a UE, a Otan é hoje uma das organizações mais cobiçadas, o que é verdadeiramente estranho para um estrategista que não parece ter lido Sun Tzu.

A própria Ucrânia – em princípio não cogitada para uma demanda de adesão ao Pacto do Atlântico, pois que se sentia um país irmão da Rússia, como a Belarus – sofreu, como o povo finlandês, uma forte atração pelas entidades ocidentais – UE e Otan – depois que duas revoluções em dez anos, a laranja, dos anos 2003-2004, e a do EuroMaidan, de 2013-2014, forjaram uma identidade nacional bem mais próxima do seu lado ocidental do que aquela, ortodoxa, que prevalecia em suas províncias orientais (Yekelchiyk, 2020, p. 45-50). 

Em outros termos, Putin se parece muito com aquele aprendiz de feiticeiro que movimenta forças que ele não mais consegue controlar, com a desvantagem de que nem a ONU, nem a China têm condições de ajudá-lo a sair do imbróglio. Sua “operação militar especial” parece ter sido especialmente desenhada para esgotar os recursos disponíveis ao neoczar, resultando, apenas, num provavelmente afundamento da Rússia, talvez bem mais profundo do que a saída do socialismo nos anos 1990; a China, aliada, minimiza o impacto, mas não o evitará.

Putin também tentou justificar a invasão, alegando que a Ucrânia independente nunca existiu, sendo apenas um apêndice da grande etnia e cultura russas, uma afirmação totalmente contestada por historiadores ucranianos e estrangeiros, que revelam que a própria formação da Rússia moderna começou na Ucrânia, não nos Urais. O professor Timothy Snyder, historiador da universidade de Yale, autor de diversos livros sobre as guerras e os deslocamentos geopolíticos na Europa central e oriental, ofereceu um amplo curso sobre a formação da Ucrânia moderna, em 23 episódios acessíveis no YouTube

‘Ao recorrer à história para denegar a existência da Ucrânia independente, Putin trouxe aos olhos do mundo o fato amplamente aceito pelos historiadores, inclusive russos, de que as origens da Moscovia se situam bem mais nas planícies do Dnipro e na precoce cristianização grega desses territórios do que numa suposta nação eslava que se afirmou contra mongóis, suecos ou otomanos’

Ou seja, ao recorrer à história para denegar a existência da Ucrânia independente, Putin trouxe aos olhos do mundo o fato amplamente aceito pelos historiadores, inclusive russos, de que as origens da Moscovia se situam bem mais nas planícies do Dnipro e na precoce cristianização grega desses territórios do que numa suposta nação eslava que se afirmou contra mongóis, suecos ou otomanos. O próprio Stalin reconhecia a especificidade da cultura e do nacionalismo ucranianos, pois que, tendo preparado (a pedido de Lênin) seu único trabalho de corte acadêmico, justamente sobre a questão das nacionalidades, tentou depois abafá-la no horrível genocídio do Holodomor, a morte pela fome, no quadro da grande repressão aos kulaks (camponeses independentes) e da coletivização agrária, mortandade primeiro revelada pelo jornalista britânico Gareth Jones (2022), mais recentemente pela historiadora do Gulag Anne Applebaum, em Fome Vermelha (2019). 

Definitivamente, a História não está ao lado de Putin, inclusive porque ele mesmo confirmou que tinha sido o próprio Lênin, com base no trabalho do Stalin, que havia decidido conceder autonomia às nacionalidades, tornando-as repúblicas federadas vinculadas à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o que Putin considera que foi um erro monumental do criador do Estado soviético. 

De fato, entre 1918 e 1921, a Ucrânia tentou afirmar-se como país independente, numa cruenta guerra civil, que acabou sendo vencida pelo Exército Vermelho de Trotsky. A aula 13, do curso do professor Timothy Snyder, explica em detalhe como foi a tentativa fracassada de fundar um Estado independente nesse período. A formação da nacionalidade ucraniana demoraria mais algumas décadas para se consolidar, mas o fato é que a cultura ucraniana é bem anterior à da Rússia, mas é a língua russa que serviria a muitos famosos escritores “russos”, de fato nascidos na Ucrânia, para criar algumas das obras mais distinguidas da literatura “russa” (Batuman, 2023). Assim como ocorreu na Grande Guerra (1914-1918), quando três grandes impérios se confrontaram e finalmente desapareceram no território da Ucrânia ou perto dele, foi entre a Ucrânia e a Polônia que o império soviético destruiu o império hitlerista no teatro europeu da Segunda Guerra.

A Ucrânia dividida entre os grandes impérios, do século XIX e do XX

A Grande Guerra, ou Primeira Guerra Mundial, começou nos Balcãs, ou mais exatamente na Sérvia, com o ultimatum do Império Austro-Húngaro à monarquia sérvia, por causa do assassinato do príncipe herdeiro Franz Ferdinand. A Segunda Guerra Mundial, em primeiro apenas europeia, numa primeira fase, começou com a invasão da Polônia pelas forças da Wehrmacht, que também fizeram uma “operação militar especial” contra um vizinho menos poderoso em setembro de 1939. 

A nova guerra não se torna verdadeiramente europeia até que Hitler dirigisse suas forças contra os adversários ocidentais, em maio de 1940, mas ela só se torna verdadeiramente mundial depois do ataque hitlerista contra seu aliado soviético, em junho de 1941, e depois do bombardeio japonês contra Pearl Harbor, em dezembro do mesmo ano, com a imediata declaração de guerra da Alemanha hitlerista contra os Estados Unidos, quando, finalmente a guerra se torna global (na verdade, na Ásia já tinha começado desde 1937). Uma guerra é consequência da outra, como já tinha profetizado Keynes, no seu panfleto de 1919, As Consequências Econômicas da Paz.  

‘De certa forma, o mundo bipolar começou a se desfazer na Polônia, com a eleição do Papa João Paulo II e o movimento Solidarnosc, que contestou o poder comunista, sem ser esmagado pelos tanques soviéticos’

 Poderíamos ter agora uma Terceira Guerra Mundial, começando ali bem perto da Polônia, uma nação, um povo e uma cultura que, como a Ucrânia, foi dividida durante séculos pelos impérios vizinhos mais poderosos? Os Habsburgos, os Hohenzollerns e os Romanovs precipitaram a conflagração que, ao início da primeira metade do século XX, liquidou com seus respectivos impérios em 1917-18. Os fascismos alemão, italiano e japonês precipitaram um conflito que liquidou, no meio do século, suas pretensões hegemônicas, apenas para serem submetidos a uma nova hegemonia bipolar, durante a longa Guerra Fria que se estendeu durante quase toda a segunda metade do século passado. De certa forma, o mundo bipolar começou a se desfazer na Polônia, com a eleição do Papa João Paulo II e o movimento Solidarnosc, que contestou o poder comunista, sem ser esmagado pelos tanques soviéticos, como foram os húngaros em 1956 e os tchecos em 1968. 

Mas a Ucrânia permaneceu firmemente sob o domínio soviético, até ser tornada independente, não exatamente por decisões erradas de Gorbatchev, mas mais precisamente pela tentativa desastrada de um “golpe comunista” contra ele, em meados de 1991. Não foi exatamente na queda do muro de Berlim, em novembro de 1989, que o império soviético veio abaixo, pois que ele apenas começou a “liberação” dos Estados que tinham se reforçado ou se tornado independentes ao final das negociações de paz de Paris, em 1919 – os bálticos, a Polônia, a Tchecoslováquia, a Hungria, Romênia e Bulgária –, mas que tiveram trajetórias diversas no entre guerras, ao serem confrontados com o expansionismo hitlerista na Europa central (e mussolinista nos Balcãs, contra a Albânia, depois substituído pelos nazista em toda a região balcânica e na península grega). A independência da Ucrânia (e também da Bielorrússia, depois Belarus, e das satrapias da Ásia central), ocorreu apenas com a implosão da União Soviética, vale dizer com o desfazimento de sua parte central, a federação russa, em 1991. Os anos 1980 foram verdadeiramente os anos que abalaram o mundo, como disse John Reed sobre os dez dias de 1917 que dividiram o mundo a partir da instalação do novo poder soviético. Os seis meses antes da queda de Gorbatchev e da implosão da URSS abalaram novamente o mundo, mas num sentido pacífico, quase saudando a chegada de uma “nova ordem mundial”, como proclamou George Bush (pai) em 1992. Putin chegou dez anos depois para dar um novo sentido a essa “nova ordem mundial”.

Todos os demais países se consolidaram no pós-socialismo, porque possuíam fortes identidades nacionais, culturas e línguas próprias, certa unidade religiosa, com as exceções da Tchecoslováquia e da Iugoslávia (que estava fadada à desagregação desde a morte de Tito). Todos eles reivindicaram ingresso na União Europeia e na Otan, pois conheciam a miséria do socialismo e o abraço do urso russo. No caso da Ucrânia, isso não foi possível, em grande medida por falta de identidade nacional: uma Ucrânia ocidental, dos Habsburgos e poloneses, mas de Igreja Ortodoxa grega, e uma Ucrânia oriental, etnicamente misturada aos russos, afiliada à Igreja Ortodoxa Russa, onde mesmo os ucranianos falavam majoritariamente russo (como, aliás, o próprio Volodymyr Zelensky, judeu, que falou primeiro russo na infância). 

Os ucranianos estavam tão vinculados aos russos que nunca, antes da revolução laranja (quando Putin começava o seu reinado), consideraram seriamente a opção europeia e a inclusão no esquema securitário atlantista. Esse apelo ocidental se tornou mais claro na revolução Maidan, mas, quando ela ocorreu, Putin já estava preparado: ele imediatamente se apossou da ex-península otomana da Crimeia, mas russa desde o século XVIII, inclusive mesmo depois que a Rússia czarista foi derrotada pelas forças britânicas e francesas na primeira guerra da Crimeia (1853-55). Derrotada, mas reteve a península para si. O gesto inocente de Kruschev em 1954 foi “corrigido” em 2014 pelo novo czar de todas as Rússias.

The Human Factor, como diria Graham Greene

Graham Greene, que antes de se tornar um bem-sucedido escritor de novelas trabalhou durante algum tempo para o MI6 britânico, é o autor de um romance sobre o fator humano nos serviços de inteligência, no qual o amor de um agente por uma mulher acaba afetando o seu trabalho e o leva a trair o seu país. Putin não tem nada a ver com essa história, mas o mesmo fator humano que desviou um funcionário do Estado de suas obrigações ordinárias está em ação no caso de Putin, de uma maneira que apenas poderia existir nos tempos de Stalin: o tirano solitário que não podia confiar nem em seus melhores assessores, e que só podia sobreviver pela eliminação regular e recorrente dos próprios agentes do sistema por ele criado e administrado em total isolamento de fatores externos.

‘Putin sentiu-se bastante confortável pela “flacidez” das sanções ocidentais ao invadir e anexar ilegalmente a Crimeia em 2014. Com a exceção dos suspeitos habituais, ninguém efetivamente moveu-se em ajuda à Ucrânia’

Putin sentiu-se bastante confortável pela “flacidez” das sanções ocidentais ao invadir e anexar ilegalmente a Crimeia em 2014. Com a exceção dos suspeitos habituais – os ricos do Ocidente, um pequeno punhado de democracias avançadas –, ninguém efetivamente moveu-se em ajuda à Ucrânia. A presidente Dilma Rousseff, que não moveu o Itamaraty para qualquer comentário oficial, chegou a dizer que não se pronunciaria sobre um “assunto interno” da Ucrânia. As sanções – “unilaterais”, como figura no diplomatês habitual – não chegaram sequer a interromper o fornecimento de energia da Rússia à Europa, o que motivou Putin a continuar suas manobras clandestinas no Donbass, praticamente sequestrado de fato, mas ainda não de “direito”, como ele faria em 2021, ao reconhecer duas novas “repúblicas independentes”, naquela região, como já tinha feito com o seu plebiscito forjado na Crimeia.

O que mudou no cenário das “disputas interimperiais” – como gostam de escrever os que apreciam o antigo vocabulário leninista –, não foi tanto a emergência de novos grandes atores, como a China, por exemplo, e de modo decisivo, sob Xi Jinping, ou o reforço da “eurocracia”, quanto o próprio enfraquecimento da Rússia, ao deixar de ser uma máquina a serviço de uma ideia, para passar a ser uma geringonça enferrujada a serviço de um homem. Pode ser o fator humano agindo neste caso, não no sentido de Graham Greene, mas um fator humano de toda forma, ou seja, as paixões e interesses atuando no plano pessoal superando o comportamento da burocracia de um grande Estado. 

A “jovem” União Soviética, sob Lênin, era uma máquina de terror a serviço de uma ideia: a revolução mundial. Esta falhou, mesmo com a Internacional Comunista, o Komintern, assim como falhou a rápida socialização do novo Estado, tanto que obrigou Lênin a voltar parcialmente para uma economia de mercado, com a NEP. Sob Stalin, a ideia era outra: socialismo num só país, já que a revolução mundial, como queria Trotsky, fracassou, não só na Alemanha, também na Áustria e na América Latina, como na própria China; Stalin teve de se concentrar no seu projeto de industrialização a todo custo, daí o projeto de coletivização da agricultura no primeiro plano quinquenal (1928-1932) e a escravização de todo um povo para acelerar o processo de industrialização; o Holodomor ucraniano, nessa perspectiva, foi apenas um detalhe, ou uma iniciativa deliberada e buscada, de submissão dos kulaks à nova forma de “agricultura produtiva”, grandes unidades funcionando como fábrica.

A comunização da China sob Mao foi diferente, mas a coletivização da agricultura, no Grande Salto para a Frente, decidida por Mao no final dos anos 1950, não teria existido sem o modelo soviético, que ainda valia para os camaradas chineses àquela altura. Foi um desastre total, mas não foi deliberado como no caso de Stalin: a Grande Fome de Mao, que pode ter eliminado dez vezes mais os “meros” 3 milhões de ucranianos (Dikotter, 2017). foi também o resultado do “fator humano”, a ação de um homem só, que decide ir até o fim. À diferença da grande burocracia americana, da eurocracia comunitária, e do mandarinato partidário da China atual, a máquina estatal russa não tem mais os anteparos burocráticos que foram criados depois da morte de Stalin. Este simplesmente mandava eliminar não só seus inimigos, supostos ou reais, mas também eventuais companheiros do próprio partido, a começar pelos velhos bolcheviques ou generais soviéticos que pudessem ser tentados a tomar o poder no grande Terror dos anos 1930. Depois de Stalin, com exceção da eliminação por Kruschev do grande espião Beria – o único que Stalin não eliminou, pois que o georgiano comandava a sua própria máquina de espionagem –, a burocracia soviética entrou num ritmo tranquilo de autopreservação: o próprio Kruschev foi aposentado, mas não eliminado fisicamente, e os demais conservaram o poder na gerontocracia senil em que se transformou o PCUS, e podiam ficar enquanto tinham condições de conduzir a máquina. 

‘O “fator humano” é, e foi, o responsável por alguns dos grandes desastres da história recente, não apenas na política doméstica de alguns países, de certas grandes potências, mas também no plano das relações internacionais, sobretudo nas decisões sobre paz e segurança no mundo’

O “fator humano” é, e foi, o responsável por alguns dos grandes desastres da história recente, não apenas na política doméstica de alguns países, de certas grandes potências, mas também no plano das relações internacionais, sobretudo nas decisões sobre paz e segurança no mundo. Foi Stalin quem decidiu, não o PCUS, o assassinato de Kirov e, depois, o começo da repressão impiedosa que atingiu os velhos bolcheviques, os descontentes em geral, e até a cúpula das Forças Armadas soviéticas, o que a deixou singularmente despreparada para enfrentar os desafios à frente. Foi Hitler quem decidiu, não o partido nazista, anexar a sua Áustria natal e, logo depois, partes da Tchecoslováquia com população germânica. Foi a pusilanimidade de líderes ocidentais, portanto, o fator humano, que determinou a vergonhosa renúncia registrada em Munique, em 1938, de ceder às pretensões de Hitler para, ao que se alegou, evitar a guerra. Como disse logo em seguida Churchill, o acordo com o Hitler foi um total desastre, dado que o chanceler britânico tinha a opção entre a guerra, naquele momento, e a desonra: “Você escolheu a desonra, e terá a guerra”. Foi o fator humano, mais uma vez, que impeliu Hitler a jogar no lixo seu acordo de não agressão com Stalin e decretar a invasão de junho de 1941, dando início aí ao começo do declínio e derrota de seu regime.

À diferença da máquina colegiada do sovietismo fossilizado – mas foi na época de Brejnev que a URSS atingiu o auge de seu poderio externo, sobretudo bélico –, a direção solitária de Putin talvez seja o fator de enrijecimento e descoordenação da atual máquina neoczarista: não existe mais um Diretório, um Politburo do partido para aposentar um dirigente – como fizeram com Kruschev –ou selecionar um novo, como fizeram com Gorbatchev, para surpresa geral dos gerontocratas, que tentaram destituí-lo quando a máquina emperrou de vez, sob os golpes da glasnost e da perestroika (mas aí já era tarde demais). Putin pode estar caminhando para alguma falha do motor, mas, como Stalin, não permite que qualquer comando colegiado corrija suas decisões solitárias. A despeito de suas imensas reservas em materiais primários, o “fator humano”, no caso da Rússia de Putin, pode estar levando o seu império a se sustentar unicamente na força dos mísseis, sem nada de muito significativo no contexto da nova economia do conhecimento, como estão fazendo os antigos camaradas chineses.

Na China, quem decide os assuntos do Estado chinês é o partido, e suas decisões são levadas depois ao governo, o que é uma forma institucionalizada do processo decisório, assim como existem, nos EUA, os lobbies congressuais e outros que influem no processo decisório do establishment governamental em política externa, e na Europa, a eurocracia supranacional de Bruxelas, assim como os governos, através do Conselho, de natureza intergovernamental, os fatores principais nas grandes decisões internas e externas da UE, com uma crescente participação do parlamento europeu, eleito diretamente pelos eleitores comunitários. Na Rússia atual, não existe uma decisão de partido, qualquer que seja ele, a decidir a tomada da Crimeia ou a montagem da “operação militar especial” que invadiu o resto da Ucrânia; foi o fator humano, na verdade individual, que assim decidiu: o próprio Putin

‘As decisões monocráticas, geralmente em ditaduras, costumam derivar de uma liderança carismática bem afirmada, mas, como é evidente, o carisma não dura para sempre’

Uma das questões mais analisadas, no contexto dos tipos ideais de dominação política, no seguimento da obra de Max Weber, é a da sucessão do carisma, um problema quase insolúvel naquelas situações de lideranças carismáticas mais longevas e poderosas. As decisões monocráticas, geralmente em ditaduras, costumam derivar de uma liderança carismática bem afirmada, mas, como é evidente, o carisma não dura para sempre. O fenômeno foi analisado por diferentes historiadores europeus em relação aos soberanos medievais, mas é evidente que ele passou a ter mais amplo apelo a partir da tipologia de Weber, passando a ser aplicado, por vezes exageradamente, a processos do século XX.

O diplomata e cientista político José Guilherme Merquior, ao analisar em sua tese de doutoramento na London School of Economics, a obra de Rousseau e de Weber (1980), cunhou um novo conceito, o de “carisma burocrático”, como para sinalizar que o fenômeno, no sistema soviético, tinha deixado de ser personalista para ser encarnado na organização do partido leninista. Esse fator humano pode, doravante, deixar de funcionar no quadro do “carisma burocrático” do PCC, criado depois da liderança demencial de Mao Tse-tung por Deng Xiaoping e mantido nas décadas seguintes, a partir do terceiro mandato concedido a Xi Jinping, que parece estar impulsionando novamente o carisma personalista, eventualmente responsável por um futuro ataque a Taiwan (mas ainda assim minuciosamente planejado pelo partido e pelas Forças Armadas). No caso de Putin, esse “carisma” já deixou de funcionar há muito, como amplamente demonstrado na pequena biografia de Karen Dawisha (2015), sobre a verdadeira natureza do atual regime neoczarista (que tem alguns traços de stalinismo).

(O texto continua nas partes 2 e 3, que serão publicadas nas próximas semanas)


* Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional. 


Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional. Site: www.pralmeida.org; blog: http://diplomatizzando.blogspot.com

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