A futura ponte binacional Brasil-Bolívia – Impulso para a integração regional e ensaio de política externa de coalizão
Projeto tem como característica principal a coordenação entre Presidência e outras pastas na Esplanada lideradas por figuras políticas de peso na coalizão governamental
Circulam na mídia relatos da retomada de uma obra de infraestrutura regional, uma ponte binacional de 1.2 km ligando Brasil e Bolívia, na altura de Guajará-Mirim, em Rondônia. A ponte, que faz parte do Novo PAC, é uma demanda histórica boliviana de mais de 120 anos junto ao governo brasileiro. Prevista no Tratado de Petrópolis, de 1903, que encerrou a Guerra do Acre e consolidou as fronteiras entre ambos os países, a ponte chegou a ser acordada durante o segundo mandato de Lula, mas não saiu do papel. É bem provável que agora saia.
Para além do acerto de contas histórico e da política de boa-vizinhança com a Bolívia, a futura ponte binacional já nasce envolta em expectativas. De um lado, promessas de incremento no comércio regional via adensamento do corredor logístico sul-americano para o escoamento de commodities do Atlântico ao Pacífico. De outro, o temor, por parte de ambientalistas e ativistas, de proliferação de grandes obras incompatíveis com os imperativos socioambientais de preservar a floresta e trazer respostas às demandas de comunidades locais.
Em paralelo, a futura ponte binacional carrega outros dois simbolismos de relevância para a política externa brasileira do atual governo. Primeiro, a retomada de uma agenda de integração regional, tradicionalmente liderada pelo Brasil e estagnada desde 2016, na qual a questão da infraestrutura regional tem um papel importante. Segundo, o ensaio de política externa de coalizão, cuja característica principal é a coordenação entre Presidência e outras pastas na Esplanada lideradas por figuras políticas de peso na coalizão governamental.
A agenda regional na nova Política Externa
A agenda regional é pauta cara ao Partido dos Trabalhadores (PT) e uma faceta importante da política externa nos dois primeiros mandatos de Lula da Silva. Complexa e multifacetada, a agenda regional abarca processos de integração regional na América do Sul, instâncias de diálogo político e cooperação no Cone Sul e na América Latina, esforços de mediação de conflitos internos e internacionais na região, comércio, cooperação técnica e diálogo em políticas públicas, bem como os projetos de integração física, sobretudo com os países fronteiriços.
Nas últimas décadas, o Brasil, enquanto potência regional, liderou os esforços de integração regional política e física no âmbito do Mercosul e da Unasul, por meio de instrumentos e iniciativas como o Focem, Iirsa e Aladi.
Entretanto, desde a metade dos anos 2010, a agenda regional perdeu fôlego. A região tornou-se mais instável e fragmentada, e o Brasil abdicou de sua tradicional liderança nessa pauta, demonstrando pouca vontade política e capacidade política e financeira de alavancar processos regionais.
Nos anos pós-PT, a agenda perdeu espaço no debate de política externa dentro e fora do governo. Em 2023, com a chegada da nova coalizão liderada pelo PT, esboça-se uma tímida virada. No entanto, a centralidade antes dada ao Cone Sul parece ter se deslocado, ao menos momentaneamente, ao espaço amazônico (com a Cúpula da Amazônia em 2023 e os esforços de mediação de crises na Venezuela, no Equador e na fronteira entre Venezuela e Guiana).
O deslocamento do “eixo sul-americano” ao “eixo amazônico” pode ser fruto da vontade, sobretudo da Presidência, de romper com o negacionismo de Jair Bolsonaro na questão amazônica ou então um esforço pragmático de priorização, dada a desestruturação do Mercosul e da Unasul nos últimos anos e a pouca sintonia entre Lula e Javier Milei, atual presidente de Argentina.
Ainda sim, e apesar dos ensaios no “front amazônico”, a verdade é que a pauta regional tem sido ofuscada pelos esforços de reconstrução, pela ênfase dada a processos extrarregionais e agendas globais (como o G20 ou os BRICS) e pela conjuntura atual de instabilidade e polarização política, na região e no mundo.
Na comunidade de política externa próxima ao governo, não são poucos os que consideram que a agenda regional tem recebido menos atenção do que deve ou merece, ou então que avançou menos do que poderia. No entanto, a notícia da construção desta ponte parece apontar para uma retomada não apenas das ações de integração regional na dimensão de infraestrutura, mas também do alinhamento de pastas, instrumentos e agendas.
Ensaiando uma Política Externa de coalizão
A futura ponte binacional, viabilizada pelo Novo PAC, bem como o plano de Rotas de Integração Sul Americana, lançado em novembro de 2023, são fruto de um esforço concertado de figuras politicamente importantes na coalizão governista, incluindo Geraldo Alckmin, Simone Tebet e Fernando Haddad. O destaque vai para o Planejamento e para a equipe de Tebet, por meio do Subcomitê de Integração e Desenvolvimento Sul-Americano.
O projeto das cinco rotas de Integração e Desenvolvimento Sul-Americano surgiu como uma demanda do presidente Lula à pasta de Tebet, na esteira da reunião de líderes da América do Sul em Brasília, em maio de 2023. Na ocasião, decidiu-se pela retomada da agenda da integração regional para dinamizar o comércio entre Brasil e os países vizinhos “diante da força das exportações e importações com a Ásia”, nas palavras do Ministério do Planejamento.
Desde então, Tebet e sua equipe visitaram 11 Estados brasileiros com fronteiras internacionais e países da região e desenharam a proposta brasileira de rotas para a integração sul-americana.
Em uma apresentação mais recente da iniciativa, vê-se ademais um ajuste no discurso no sentido de de salientar o que o Planejamento agora vê como “o duplo papel” da iniciativa: de incentivar e reforçar o comércio do Brasil com os países da América do Sul e reduzir o tempo e o custo do transporte de mercadorias entre o Brasil, seus vizinhos e a Ásia.
Para viabilizar os projetos, a ideia é mobilizar o apoio de órgãos nacionais e internacionais de financiamento ao desenvolvimento, como o BNDES, a CAF e o BID.
Ainda é cedo para avaliar resultados e impactos, mas a sinalização é positiva: tanto na esfera diplomática como na produção de política externa, evidenciando caminhos para o diálogo e coordenação interburocrática na atual coalizão governamental.
O desafio de atualizar a agenda regional em tempos de emergência climática
Em tempos de polarização e instabilidade política na região, bem como de incertezas no âmbito do comércio global, revigorar a agenda regional não é tarefa fácil. O caso das grandes obras transfronteiriças, e a retomada do diálogo e cooperação técnica em saúde, segurança alimentar, educação ambiental, combate à pobreza etc., parecem aos poucos indicar o retorno do Brasil à pauta regional, ainda que por vezes em agendas ditas “mais técnicas” que se desenrolam longe dos holofotes.
No médio-prazo, no entanto, é preciso enfrentar o debate técnico-político de frente necessário e construir mais pontes entre a agenda regional e as agendas climática-ambiental e energética.
Planejar a integração sul-americana do século XXI passa por desenhar iniciativas regionais capazes de aliar sustentabilidade, segurança energética, (re)industrialização e comércio. Se a atual crise no Rio Grande do Sul evidencia a urgência na atualização do debate e das práticas em relação à construção de infraestrutura voltada para adaptação climática.
Em paralelo, no âmbito da transição ecológica, faltam pontes entre os debates sobre investimentos em “novas infraestruturas” e cadeias de valor ligadas às economias de baixo-carbono e a agenda regional.
Tomemos como exemplo o caso das baterias de lítio para veículos elétricos. Minerado em grandes quantidades nos vizinhos Argentina, Bolívia e Chile, o lítio é exportado para países como a China para refinamento e posterior utilização na indústria de baterias. Em franca expansão, a cadeia do lítio traz oportunidades e desafios socioambientais e econômicos, de mitigar os impactos de uma nova “onda extrativista” (desta vez impulsionada por um emergente “consenso da descarbonização”) e evitar uma nova onda de dependência em relação a parceiros comerciais mais industrializados extrarregionais.
Neste contexto, países com maior capacidade industrial, de investimento e liderança regional têm diante de si a tarefa, e a oportunidade, de pensar e propor instrumentos e iniciativas. Cabe ao Brasil inovar na “reindustrialização verde”, buscando oferecer alternativas para agregar valor na região, ao mesmo tempo em que aprofunda a construção de novos pactos, nacionais e regionais, para a governança justa e sustentável destes valiosos recursos naturais. Estamos preparados?
Laura Trajber Waisbich é cientista política afiliada ao Skoll Centre, na Said Business School da Universidade de Oxford. Foi diretora do Programa de Estudos Brasileiros e professora de estudos latino-americanos na universidade.
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