29 maio 2024

A futura ponte binacional Brasil-Bolívia – Impulso para a integração regional e ensaio de política externa de coalizão  

Projeto tem como característica principal a coordenação entre Presidência e outras pastas na Esplanada lideradas por figuras políticas de peso na coalizão governamental

Ministros Waldez Góes e Simone Tebet visitam obra de ponte do Projeto Rotas de Integração e Desenvolvimento Sul-Americano (Foto: Prefeitura de Porto Murtinho)

Circulam na mídia relatos da retomada de uma obra de infraestrutura regional, uma ponte binacional de 1.2 km ligando Brasil e Bolívia, na altura de Guajará-Mirim, em Rondônia. A ponte, que faz parte do Novo PAC, é uma demanda histórica boliviana de mais de 120 anos junto ao governo brasileiro. Prevista no Tratado de Petrópolis, de 1903, que encerrou a Guerra do Acre e consolidou as fronteiras entre ambos os países, a ponte chegou a ser acordada durante o segundo mandato de Lula, mas não saiu do papel. É bem provável que agora saia.

Para além do acerto de contas histórico e da política de boa-vizinhança com a Bolívia, a futura ponte binacional já nasce envolta em expectativas. De um lado, promessas de incremento no comércio regional via adensamento do corredor logístico sul-americano para o escoamento de commodities do Atlântico ao Pacífico. De outro, o temor, por parte de ambientalistas e ativistas, de proliferação de grandes obras incompatíveis com os imperativos socioambientais de preservar a floresta e trazer respostas às demandas de comunidades locais. 

‘Projeto é símbolo da retomada de uma agenda de integração regional, tradicionalmente liderada pelo Brasil e estagnada desde 2016’

Em paralelo, a futura ponte binacional carrega outros dois simbolismos de relevância para a política externa brasileira do atual governo. Primeiro, a retomada de uma agenda de integração regional, tradicionalmente liderada pelo Brasil e estagnada desde 2016, na qual a questão da infraestrutura regional tem um papel importante. Segundo, o ensaio de política externa de coalizão, cuja característica principal é a coordenação entre Presidência e outras pastas na Esplanada lideradas por figuras políticas de peso na coalizão governamental. 

A agenda regional na nova Política Externa 

A agenda regional é pauta cara ao Partido dos Trabalhadores (PT) e uma faceta importante da política externa nos dois primeiros mandatos de Lula da Silva. Complexa e multifacetada, a agenda regional abarca processos de integração regional na América do Sul, instâncias de diálogo político e cooperação no Cone Sul e na América Latina, esforços de mediação de conflitos internos e internacionais na região, comércio, cooperação técnica e diálogo em políticas públicas, bem como os projetos de integração física, sobretudo com os países fronteiriços. 

Nas últimas décadas, o Brasil, enquanto potência regional, liderou os esforços de integração regional política e física no âmbito do Mercosul e da Unasul, por meio de instrumentos e iniciativas como o Focem, Iirsa e Aladi. 

‘Desde os anos 2010, o Brasil demonstra pouca vontade política e capacidade política e financeira de alavancar processos regionais’ 

Entretanto, desde a metade dos anos 2010, a agenda regional perdeu fôlego. A região tornou-se mais instável e fragmentada, e o Brasil abdicou de sua tradicional liderança nessa pauta, demonstrando pouca vontade política e capacidade política e financeira de alavancar processos regionais. 

Nos anos pós-PT, a agenda perdeu espaço no debate de política externa dentro e fora do governo. Em 2023, com a chegada da nova coalizão liderada pelo PT, esboça-se uma tímida virada. No entanto, a centralidade antes dada ao Cone Sul parece ter se deslocado, ao menos momentaneamente, ao espaço amazônico (com a Cúpula da Amazônia em 2023 e os esforços de mediação de crises na Venezuela, no Equador e na fronteira entre Venezuela e Guiana).

O deslocamento do “eixo sul-americano” ao “eixo amazônico” pode ser fruto da vontade, sobretudo da Presidência, de romper com o negacionismo de Jair Bolsonaro na questão amazônica ou então um esforço pragmático de priorização, dada a desestruturação do Mercosul e da Unasul nos últimos anos e a pouca sintonia entre Lula e Javier Milei, atual presidente de Argentina. 

‘A pauta regional tem sido ofuscada pelos esforços de reconstrução, pela ênfase dada a processos extrarregionais e agendas globais e pela conjuntura atual de instabilidade e polarização política, na região e no mundo’

Ainda sim, e apesar dos ensaios no “front amazônico”, a verdade é que a pauta regional tem sido ofuscada pelos esforços de reconstrução, pela ênfase dada a processos extrarregionais e agendas globais (como o G20 ou os BRICS) e pela conjuntura atual de instabilidade e polarização política, na região e no mundo. 

Na comunidade de política externa próxima ao governo, não são poucos os que consideram que a agenda regional tem recebido menos atenção do que deve ou merece, ou então que avançou menos do que poderia. No entanto, a notícia da construção desta ponte parece apontar para uma retomada não apenas das ações de integração regional na dimensão de infraestrutura, mas também do alinhamento de pastas, instrumentos e agendas. 

Ensaiando uma Política Externa de coalizão

A futura ponte binacional, viabilizada pelo Novo PAC, bem como o plano de Rotas de Integração Sul Americana, lançado em novembro de 2023, são fruto de um esforço concertado de figuras politicamente importantes na coalizão governista, incluindo Geraldo Alckmin, Simone Tebet e Fernando Haddad. O destaque vai para o Planejamento e para a equipe de Tebet, por meio do Subcomitê de Integração e Desenvolvimento Sul-Americano.

‘Governo decidiu pela retomada da agenda da integração regional para dinamizar o comércio entre Brasil e os países vizinhos “diante da força das exportações e importações com a Ásia”’

O projeto das cinco rotas de Integração e Desenvolvimento Sul-Americano surgiu como uma demanda do presidente Lula à pasta de Tebet, na esteira da reunião de líderes da América do Sul em Brasília, em maio de 2023. Na ocasião, decidiu-se pela retomada da agenda da integração regional para dinamizar o comércio entre Brasil e os países vizinhos “diante da força das exportações e importações com a Ásia”, nas palavras do Ministério do Planejamento.

Desde então, Tebet e sua equipe visitaram 11 Estados brasileiros com fronteiras internacionais e países da região e desenharam a proposta brasileira de rotas para a integração sul-americana. 

Em uma apresentação mais recente da iniciativa, vê-se ademais um ajuste no discurso no sentido de de salientar o que o Planejamento agora vê como  “o duplo papel” da iniciativa: de incentivar e reforçar o comércio do Brasil com os países da América do Sul e reduzir o tempo e o custo do transporte de mercadorias entre o Brasil, seus vizinhos e a Ásia. 

Para viabilizar os projetos, a ideia é mobilizar o apoio de órgãos nacionais e internacionais de financiamento ao desenvolvimento, como o BNDES, a CAF e o BID. 

Ainda é cedo para avaliar resultados e impactos, mas a sinalização é positiva: tanto na esfera diplomática como na produção de política externa, evidenciando caminhos para o diálogo e coordenação interburocrática na atual coalizão governamental. 

O desafio de atualizar a agenda regional em tempos de emergência climática 

Em tempos de polarização e instabilidade política na região, bem como de incertezas no âmbito do comércio global, revigorar a agenda regional não é tarefa fácil. O caso das grandes obras transfronteiriças, e a retomada do diálogo e cooperação técnica em saúde, segurança alimentar, educação ambiental, combate à pobreza etc., parecem aos poucos indicar o retorno do Brasil à pauta regional, ainda que por vezes em agendas ditas “mais técnicas” que se desenrolam longe dos holofotes. 

No médio-prazo, no entanto, é preciso enfrentar o debate técnico-político de frente necessário e construir mais pontes entre a agenda regional e as agendas climática-ambiental e energética. 

‘A integração sul-americana do século XXI passa por desenhar iniciativas regionais capazes de aliar sustentabilidade, segurança energética, (re)industrialização e comércio’

Planejar a integração sul-americana do século XXI passa por desenhar iniciativas regionais capazes de aliar sustentabilidade, segurança energética, (re)industrialização e comércio. Se a atual crise no Rio Grande do Sul evidencia a urgência na atualização do debate e das práticas em relação à construção de infraestrutura voltada para adaptação climática. 

Em paralelo, no âmbito da transição ecológica, faltam pontes entre os debates sobre investimentos em “novas infraestruturas” e cadeias de valor ligadas às economias de baixo-carbono e a agenda regional. 

Tomemos como exemplo o caso das baterias de lítio para veículos elétricos. Minerado em grandes quantidades nos vizinhos Argentina, Bolívia e Chile, o lítio é exportado para países como a China para refinamento e posterior utilização na indústria de baterias. Em franca expansão, a cadeia do lítio traz oportunidades e desafios socioambientais e econômicos, de mitigar os impactos de uma nova “onda extrativista” (desta vez impulsionada por um emergente “consenso da descarbonização”) e evitar uma nova onda de dependência em relação a parceiros comerciais mais industrializados extrarregionais. 

Neste contexto, países com maior capacidade industrial, de investimento e liderança regional têm diante de si a tarefa, e a oportunidade, de pensar e propor instrumentos e iniciativas. Cabe ao Brasil inovar na “reindustrialização verde”, buscando oferecer alternativas para agregar valor na região, ao mesmo tempo em que aprofunda a construção de novos pactos, nacionais e regionais, para a governança justa e sustentável destes valiosos recursos naturais. Estamos preparados?

Laura Trajber Waisbich é cientista política, diretora do Programa de Estudos Brasileiros e professora de estudos latino-americanos na Universidade de Oxford.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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