A ordem liberal em colapso?
A ascensão de um novo governo Trump e a consolidação de lideranças nacionalistas ao redor do mundo sinalizam um período de instabilidade na política internacional. Para o Brasil, esse cenário apresenta tanto riscos quanto oportunidades

A volta de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos e sua abordagem política indicam uma transformação profunda na ordem global, marcada pelo fortalecimento de tendências nacionalistas e pela fragmentação das estruturas multilaterais.
A política externa americana, que já vinha sendo reformulada durante sua primeira gestão, agora retorna com uma postura ainda mais assertiva, buscando reforçar a supremacia dos EUA ao mesmo tempo em que desestabiliza os padrões tradicionais de cooperação internacional.
‘Movimento dos EUA reflete uma mudança mais ampla na geopolítica global, na qual democracias liberais enfrentam desafios internos e externos diante do crescimento de governos autoritários’
O cenário atual não representa apenas uma continuação das políticas trumpistas de 2017-2021, mas uma intensificação delas. O isolamento americano se manifesta na retirada de acordos e organismos internacionais, na adoção de políticas comerciais protecionistas e na reconfiguração das alianças estratégicas dos Estados Unidos. Esse movimento reflete uma mudança mais ampla na geopolítica global, na qual democracias liberais enfrentam desafios internos e externos diante do crescimento de governos autoritários e de novas coalizões de poder.
Trump e o premiê de Israel Benjamin Netanyahu, por exemplo, compartilham não apenas uma visão nacionalista, mas também uma estratégia política baseada na polarização interna e na confrontação externa. Ambos governam com a premissa de que as normas democráticas podem ser flexibilizadas em favor de objetivos políticos imediatos, desafiando as instituições e promovendo uma política de força. Esse alinhamento se traduz em ações concretas no tabuleiro internacional.
‘A aproximação de Netanyahu com um segundo governo Trump sugere que Israel terá ainda mais margem para agir no Oriente Médio sem grandes restrições diplomáticas’
No caso de Israel, Netanyahu fortaleceu sua posição política interna ao ampliar a presença israelense em territórios palestinos e enfraquecer o judiciário, consolidando um governo cada vez mais resistente a pressões externas. A aproximação com um segundo governo Trump sugere que Israel terá ainda mais margem para agir no Oriente Médio sem grandes restrições diplomáticas.
Durante a primeira administração Trump, Israel obteve concessões históricas, como o reconhecimento de Jerusalém como sua capital e a soberania sobre as Colinas de Golã, decisões que contrariaram décadas de consenso internacional. Agora, a expectativa é que Netanyahu busque novas oportunidades para expandir o controle sobre a Cisjordânia e consolidar acordos regionais que isolem ainda mais os palestinos.
‘O apoio americano à política expansionista de Israel pode agravar tensões no Oriente Médio’
O apoio americano à política expansionista de Israel, no entanto, pode agravar tensões no Oriente Médio. Países árabes que se aproximaram de Israel sob os Acordos de Abraão podem enfrentar resistência interna se Netanyahu adotar medidas mais agressivas contra os palestinos. Além disso, a crescente influência do Irã na região e o fortalecimento de grupos como o Hezbollah e o Hamas indicam que um confronto militar mais amplo pode estar no horizonte.
A rivalidade entre EUA e China continua sendo um dos principais eixos da política global. A retomada de tarifas agressivas e sanções contra Pequim demonstra que Washington não pretende amenizar a guerra comercial, mas sim aprofundá-la.
‘A resposta chinesa será mais assertiva, possivelmente resultando em um realinhamento de forças que enfraqueça ainda mais as instituições multilaterais ocidentais’
A China, por sua vez, busca consolidar sua posição como potência global, expandindo sua influência econômica e militar por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota e do fortalecimento de organismos alternativos ao Ocidente, como o Brics e a Organização de Cooperação de Xangai. A resposta chinesa a um segundo governo Trump será mais assertiva, possivelmente resultando em um realinhamento de forças que enfraqueça ainda mais as instituições multilaterais ocidentais.
Enquanto isso, a Rússia desempenha um papel ambíguo nesse cenário. A relação entre Moscou e Washington segue sendo marcada por desconfiança e pragmatismo.
Se, por um lado, Trump demonstrou uma postura mais conciliatória em relação a Vladimir Putin, por outro, o establishment americano mantém uma posição rígida contra o Kremlin, especialmente no contexto da guerra na Ucrânia.
‘Com a possibilidade de um acordo militar reduzindo os gastos de defesa, os EUA poderiam tentar conter a ascensão chinesa, trazendo a Rússia para um posicionamento mais distante de Pequim’
Com a possibilidade de um acordo militar reduzindo os gastos de defesa, os EUA poderiam tentar conter a ascensão chinesa, trazendo a Rússia para um posicionamento mais distante de Pequim. No entanto, essa estratégia apresenta desafios, pois Moscou ainda depende fortemente da China para manter sua economia funcionando em meio às sanções ocidentais.
O Brasil, como uma economia emergente e membro do Brics, enfrenta desafios significativos diante da nova configuração da política externa americana.
Historicamente, governos republicanos nos EUA adotam posturas mais pragmáticas em relação à América Latina, priorizando interesses econômicos e estratégicos sem grande preocupação com temas como direitos humanos e democracia. Isso pode abrir espaço para uma relação mais próxima entre Brasil e EUA, especialmente no comércio agrícola e na cooperação em segurança.
‘O Brasil se encontra em uma posição delicada na disputa entre Washington e Pequim e terá que equilibrar cuidadosamente sua diplomacia para evitar represálias de ambos os lados’
No entanto, o Brasil se encontra em uma posição delicada na disputa entre Washington e Pequim. A China é o maior parceiro comercial do país, e qualquer escalada na guerra comercial pode impactar as exportações brasileiras de commodities. Caso os EUA intensifiquem as pressões para que seus aliados limitem as relações com a China, o Brasil terá que equilibrar cuidadosamente sua diplomacia para evitar represálias de ambos os lados.
Além disso, a possível redução do envolvimento americano em fóruns multilaterais pode abrir espaço para que o Brasil assuma um papel mais ativo na governança global, especialmente em questões ambientais e de desenvolvimento sustentável. Ao mesmo tempo, a fragmentação da ordem internacional torna mais difícil para países de médio porte influenciarem decisões globais sem o respaldo de grandes coalizões.
‘A ordem liberal ocidental, já enfraquecida, enfrenta desafios tanto internos quanto externos’
A ascensão de um novo governo Trump e a consolidação de lideranças nacionalistas ao redor do mundo sinalizam um período de instabilidade na política internacional. A ordem liberal ocidental, já enfraquecida, enfrenta desafios tanto internos – como a polarização política e o declínio da confiança nas instituições democráticas – quanto externos – representados pelo fortalecimento da China, da Rússia e de outras potências emergentes.
Para o Brasil, esse cenário apresenta tanto riscos quanto oportunidades. A necessidade de uma diplomacia habilidosa será essencial para navegar entre as disputas de poder globais, garantindo acesso a mercados estratégicos sem comprometer a soberania nacional.
O mundo caminha para um período de incerteza, no qual os países que souberem se posicionar de forma pragmática e estratégica terão maior capacidade de se adaptar e prosperar.
Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).
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