Precisamos desmistificar o continente africano em 2024
Apesar de laços históricos com o Brasil, a África e sua história foram relegados a um imaginário superficial construído pelo colonizador. Para pesquisadora, os países africanos ganham relevância internacional, e é preciso aumentar o conhecimento sobre o continente que faz parte da identidade brasileira
Por Camila Andrade*
África. O que você pensa quando lê essa palavra? Savana, safari? Fome, conflito, doenças e afins? Você não está sozinho nesse imaginário.
Por muito tempo, a África foi relegada a um imaginário construído por pseudodesbravadores que limitavam a sua história, o que ela seria e qual seria o seu lugar no cenário internacional. Como a escritora Chimamanda Ngozi Adichie abordou, é necessária a busca por outras histórias para além da versão contada pelo vencedor – este sendo branco, europeu, homem.
No Brasil, apesar dos laços culturais, históricos e diplomáticos terem sido estabelecidos ao longo do tempo, ainda há desinformação e desinteresse por parte da sociedade brasileira em conhecer mais o continente africano. O escritor angolano Pepetela já dizia: “Enquanto os angolanos veem o Brasil como um “irmão mais velho”, os brasileiros pouco sabem sobre o país africano com quem partilham raízes lusófonas”. Apesar de os países africanos e suas sociedades olharem para o Brasil, ainda não há o mesmo nível de reciprocidade da nossa sociedade.
O escritor angolano Agualusa ressaltou que o “[…] Brasil já foi totalmente fechado sobre si próprio. Ignorava não apenas África, mas o resto do mundo. Hoje melhorou bastante. Um bom exemplo é a própria literatura, hoje você tem um escritor africano, e estou a falar de Mia Couto […]”. E a literatura é um bom exemplo disso! Há tempos que não víamos em bienais, feiras de livro e outros espaços literários uma presença tão grande de livros de escritores(as) africanos(as) no Brasil, como eu pude ver estantes para literatura negra e africana, por exemplo, na Bienal do Rio, em 2021.
Em outubro de 2023, o assessor especial para assuntos internacionais da Presidência, Celso Amorim, destacou a intencionalidade do olhar brasileiro para a América Latina e a África, considerando “o ano da África na política externa brasileira”. Em fevereiro de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva viajou para os novos países do Brics: o Egito, celebrando cem anos de relação entre os países; e a Etiópia, participando da 37ª Cúpula da União Africana.
Mas você me perguntaria: vale a pena investir e/ou manter relações com a África? Para enfatizar a necessidade de uma retomada/intensificação de laços com os países africanos, trago alguns dos motivos para se prestar atenção ao continente neste e nos próximos anos.
Um primeiro ponto relevante é o crescimento das economias africanas. Em 2015, Celso Amorim falava do protagonismo econômico africano, citando o potencial econômico da aproximação brasileira com o continente. A África, disse o ex-ministro, “vai ter grande influência”, uma vez que muitos países estão entre as maiores economias mundiais. Além de suas economias, a África é considerada como um Tech Hub em ascensão, com aproximadamente 600 hubs no continente, em países como Nigéria, África do Sul e Quênia.
Podemos também citar a Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA), a qual entrou em vigor em 2021, que apresenta uma potencialidade para retirar 30 milhões de pessoas da pobreza extrema. Além da AfCFTA, projeto que faz parte da política guarda-chuva da Agenda 2063 – a África que queremos – a União Africana e seus países-membros estão trabalhando em formas de valorização do continente a partir do olhar e interesse africanos.
Alinhado a isso, um segundo ponto relevante é a crescente agência dos países africanos no cenário internacional, seja por relações bilaterais e/ou multilaterais, pela entrada da União Africana no G20 e pela inserção de novos países africanos no Brics. Em especial, o posicionamento dos países do Sul Global influenciaram na mudança de status da União Africana no G20, igualando ao status da União Europeia. Isso permite que os países africanos falem por si mesmos, sem dar continuidade a uma relação paternalista.
Outro ponto relevante é o soft power dos países africanos, como o cinema, literatura, moda e música (especialmente com a presença do Afrobeats e do Amapiano). Um exemplo recente de estreitamento de laços culturais foi o camarote de Gana no carnaval de Salvador neste ano, o qual contribuiu para a internacionalização da cidade de Salvador como capital afro, além da presença de países africanos, como Gana, em um carnaval reconhecido no mundo todo.
Como último ponto, é preciso ressaltar a importância de parcerias na área de pesquisa e extensão, reforçando a perspectiva de que temos e muito o que aprender com as sociedades – e universidades! – africanas. Terminei de ler o livro The Politics of Time: Imagining African Becomings, de Achille Mbembe e Felwine Sarr, e fiquei feliz ao ver como intelectuais africanos e da diáspora africana estão pensando para além do passado e presente da África. Ou seja, os mesmos se permitem pensar possíveis futuros para o continente, afastando-se de uma narrativa que se prende apenas ao passado.
Assim como eles fazem no livro, é preciso que façamos o mesmo aqui no Brasil, especialmente em termos acadêmicos, sobre o olhar para o continente africano e como estudamos a política internacional africana.
Houve avanços na incorporação da história da África e da população afrobrasileira nos currículos escolares, mas ainda tem sido um desafio. Apesar de existir há 21 anos, a lei 10.639 anda a passos lentos em termos de implementação. Pensar em materiais e vias para além do ‘academiquês’ ajudam a popularizar uma história que também é nossa, uma vez que a África faz parte da identidade brasileira e, especialmente, da nossa compreensão política e social como parte da diáspora africana.
*Camila Andrade é colunista da Interesse Nacional, pesquisadora do Pan-African Thought and Conversation (IPATC), da Universidade de Joanesburgo, e do pós-doutorado na UFPB. Doutora em ciência política pela UFRGS e pesquisadora do Grupo Áfricas: sociedade, política e cultura. É também mestre em relações internacionais pela UFSC. Suas principais linhas de pesquisa são estudos africanos e do Sul Global, Ruanda e feminismos negros. É criadora do @camilaafrika, uma comunidade de democratização dos Estudos Africanos
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Camila Andrade é colunista da Interesse Nacional, pesquisadora do Pan-African Thought and Conversation (IPATC), na Universidade de Joanesburgo, e do pós-doutorado na UFPB. Doutora em ciência política pela UFRGS e pesquisadora do Grupo Áfricas: sociedade, política e cultura. É também mestre em relações internacionais pela UFSC. Suas principais linhas de pesquisa são estudos africanos e do Sul Global, Ruanda e feminismos negros. É criadora do @camilaafrika, uma comunidade de democratização dos Estudos Africanos.
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