Desafios para um hemisfério dividido
Encontro da CELAC foi um retrato vivo do momento vivido pela América Latina e o Caribe, com discordância entre países vizinhos. Cenário deve se agravar ainda mais com a ressurreição da Doutrina Monroe por Trump, com pressão dos EUA para reduzir a influência da China no que vê como seu ‘quintal’

No último dia 9, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribe (CELAC), grupo que reúne os 33 países latinos do hemisfério (Canadá e EUA são os únicos países do hemisfério que não participam) se reuniu em Tegucigalpa, capital de Honduras.
O comunicado final do encontro, contrariando a tradicional verbosidade latina, contém apenas 8 parágrafos. Neles, entre outros temas, foi ressaltada a vigência da Proclamação da América Latina e do Caribe como Zona de Paz, sustentada na promoção e no respeito aos propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas e do Direito Internacional, na cooperação internacional, na democracia e no Estado de Direito, no multilateralismo, na proteção e promoção de todos os direitos humanos, no respeito à autodeterminação dos povos, na não ingerência nos assuntos internos, na soberania e na integridade territorial.
Da mesma forma, foi explicitamente rechaçada a imposição de medidas coercitivas unilaterais, contrárias ao Direito Internacional, incluindo aquelas que restringem o comércio internacional. Foi ressaltada a importância de uma candidatura latino-americana para ocupar a Secretaria Geral das Nações Unidas (que poderá ser a ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet), e sublinhada a importância de articular intervenções conjuntas da CELAC nos fóruns multilaterais sobre temas de interesse comum.
‘Chama a atenção a referência indireta às medidas coercitivas unilaterais adotadas pelos EUA no tocante ao comércio exterior, mas a ausência de qualquer referência explícita às ameaças de Washington em relação ao Canal do Panamá’
Chama a atenção a referência indireta às medidas coercitivas unilaterais adotadas pelos EUA no tocante ao comércio exterior, mas a ausência de qualquer referência explícita às ameaças de Washington em relação ao Canal do Panamá, em claro desrespeito à soberania desse país e aos problemas com a democracia na Venezuela. Por ocasião do encontro de Honduras, já se sabia da intenção dos EUA de ocupar militarmente o canal, e a Casa Branca ameaçou o envio de tropas para a base norte-americana no Panamá.
A aprovação, pelo plenário do encontro, do comunicado final pela presidente de Honduras, que presidia a sessão, foi imediatamente contestada em cena insólita, aos berros, pelos presidentes da Argentina e do Paraguai, que, juntamente com o da Nicarágua, não assinaram o documento, mostrando claramente as divergências existentes.
‘O Brasil pediu união nesse momento de grande turbulência global, mas também que a regra de consenso para a aprovação das decisões do grupo fosse revista’
No discurso que o presidente Lula pronunciou na ocasião, o Brasil pediu união nesse momento de grande turbulência global, mas também que a regra de consenso para a aprovação das decisões do grupo fosse revista, talvez em função do incidente com o comunicado final.
Por outro lado, Lula disse que o governo brasileiro defende o fortalecimento da democracia, das políticas de meio ambiente e da integração regional. Para ampliar o intercâmbio comercial regional, Lula afirmou que o governo brasileiro está determinado a reativar o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR) da ALADI e a expandir o Sistema de Pagamentos em Moeda Local. Além disso, medidas e políticas serão implementadas para integrar redes de transporte, energia e telecomunicações para reduzir as distâncias, diminuir custos e incentivar sinergias entre cadeias produtivas, com a iniciativa das cinco Rotas de Integração Sul-Americana, que vão unir o Caribe, o Atlântico e o Pacífico. Foi igualmente indicado que o Brasil vai procurar fortalecer as instituições financeiras regionais, como a CAF, o Banco de Desenvolvimento do Caribe e o Fonplata, para garantir que esses projetos saiam do papel.
Na coreografia dos lugares ocupados pelas autoridades brasileiras na mesa dos presidentes, ao lado de Lula apareceu o assessor internacional Celso Amorim e, atrás da cadeira do presidente brasileiro, o ministro Mauro Vieira.
‘Encontro presidencial teve pouca repercussão no Brasil, mas foi o retrato vivo do momento que vive o Hemisfério’
Depois desse encontro presidencial, que teve pouca repercussão no Brasil, mas que foi o retrato vivo do momento que vive o Hemisfério, o próximo encontro da CELAC será em julho em Beijing, com o presidente Xi Jinping. A China é o primeiro ou segundo parceiro comercial de praticamente todos os países latino-americanos e o encontro em outras circunstâncias seria visto com naturalidade.
Na atual conjuntura geopolítica e econômica global, esse encontro poderá ter sequelas, sobretudo depois da ressurreição da Doutrina Monroe com as declarações do secretário de Defesa norte-americano de que “os EUA desejam voltar a controlar seu quintal (backyard)” e de Trump, em entrevista à Fox News, dizendo que “a América Latina talvez tenha de optar entre os EUA e a China”.
‘O governo Trump planeja usar as negociações sobre as tarifas para pressionar os parceiros comerciais dos EUA a limitar seu intercâmbio com a China’
Nessa linha, o Wall Street Journal noticiou que o governo Trump planeja usar as negociações sobre as tarifas para pressionar os parceiros comerciais dos EUA a limitar seu intercâmbio com a China. A ideia seria obter compromissos desses parceiros para isolar a economia chinesa em troca da redução do comércio e da imposição das barreiras tarifárias impostas pela Casa Branca.
A intenção é usar os entendimentos com mais de 70 países para solicitar que eles impeçam a China de exportar para seus países, impedir empresas chinesas de investir em seus territórios para evitar as tarifas dos EUA e não comprar bens industriais baratos da China nas respectivas economias.
Caso essa ameaça se concretize, vai ser difícil manter a unidade hemisférica proposta por Lula, e o Brasil se verá confrontado com o maior desafio de sua política externa no atual governo
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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