26 fevereiro 2025

Era uma vez a Ucrânia

Estamos assistindo à cristalização de um novo cenário, de distanciamento dos europeus dos americanos, onde os poderosos acertam entre si o destino do planeta e o resto, inclusive os “ex-poderosos”, acompanham, se forem “sensatos”

População ucraniana afetada pela guerra (Foto: Humanitarian Mission Proliska/UNHCR/Artur Ulianytskyi)

Não costumo escrever sobre temas ocidentais, porque a minha praia é a Ásia, e acredito no lema “cada macaco no seu galho”. Porém, diante dos últimos – e graves – desdobramentos que envolvem a guerra na Ucrânia, decidi também “meter o meu bedelho”. Faço isto baseado não só no que tenho escutado e lido, mas na minha experiência de posto no Cazaquistão, uma ex-República Soviética, assim como a Ucrânia.

Como sabemos, os dois são, na mais absoluta realidade, países-infantes pois “nasceram” quando a URSS se desintegrou em 1991. A Ucrânia, assim como as outras ex-repúblicas soviéticas têm, portanto, apenas 34 anos de existência como países independentes. Ou seja, são Estados infantes, em formação, que até recentemente eram dirigidos por ex-agentes da KGB (alguns ainda são), assim como a maioria das suas burocracias. Ainda não se encontraram inteiramente no seu novo papel, ou seja, são “personagens em busca de um autor”, como diria Pirandello. Para muitos, eles ainda não se “libertaram” dos russos, inclusive.

Neste contexto, o seu grande dilema é escolher (?) em que universo se encaixar: na vizinha Europa, ou no universo russo, ao qual pertenceram durante séculos, até 1991? 

‘A Ucrânia faz parte do mundo eslavo e cristão-ortodoxo, um aspecto fundamental para se entender o que os russos consideram como sua “área de influência”’

Recorramos, como de costume, à história: A Ucrânia, como sabemos, faz parte do mundo eslavo e cristão-ortodoxo. Este é, parece-me, um aspecto fundamental para se entender o que os russos consideram como sua “área de influência” (ou feudo, para os mais radicais). Na verdade, o berço da própria Rússia foi o Principado de Kiev, em território ucraniano, portanto. Sua formação data de 1.132 D.C.

É por esta e outras razões que os russos consideram a Ucrânia como seu “espaço civilizacional”, mais que “geográfico”. Para Moscou, ela e todas as ex-repúblicas soviéticas fazem parte de um grande universo conceitual comum – a Grande Rússia -, ainda que alguns deles, como a Polônia, a Hungria e a República Tcheca, por exemplo, lhe tenham “escapado”. 

‘O grande esforço do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, tem sido, assim, imprimir alma própria ao seu país’

Presenciei esta mentalidade quando servi em Astana, em 2013. Acredito que só os que convivemos com esta realidade sabemos avaliar o peso da “Mãe Rússia” – a Великая Россия царствие” – na região. O grande esforço do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, tem sido, assim, imprimir alma própria ao seu país.

Vamos agora nos voltar no tempo à Europa Ocidental, ao dia 4 de abril de 1949, quando foi criada a “Organização do Tratado do Atlântico Norte” (Otan), a aliança militar intergovernamental baseada no “Tratado do Atlântico Norte”. Por ele, constituiu-se um sistema de defesa coletiva, através do qual os Estados-membros concordaram em reagir em uníssono aos ataques de qualquer entidade externa à organização. Ela, que havia sido pouco mais que uma associação política até à Guerra da Coreia, a partir de então transformou-se numa estrutura militar integrada. 

Em contraponto, a União Soviética, juntamente com os países socialistas da Europa Oriental formaram, em 1955, o Pacto de Varsóvia. Seu objetivo era proteger o regime socialista-marxista e expandir sua área de influência. 

‘No contexto da Guerra Fria, o compromisso da Otan passou a ser com a defesa do Ocidente e dos conceitos e valores do capitalismo ocidental’

No contexto da Guerra Fria, o compromisso da Otan passou a ser, como sabemos, com a defesa do Ocidente e dos conceitos e valores do capitalismo ocidental contra o comunismo soviético.

Só que o tempo passou, e na medida em que desde a dissolução da URSS, em 1991, não existe mais efetivamente o conceito do “inimigo comunista”, a questão, até então definitória, tornou-se um rótulo esvaziado de sentido, até mesmo no que diz respeito à República Popular da China. Surgiu, assim, a necessidade de se redefinir o seu papel: o objetivo da Otan passou então a ser garantir a política de segurança dos países que a integram. Isto significa, em última instância, a validação e imposição dos conceitos e valores político-estratégicos do Ocidente que, no entender de Vladimir Putin, atentam para desfigurar os multisseculares da “Mãe Rússia”. 

‘Paranoia ou não, foi no intento de estancar a “conversão” da Ucrânia ao universo ocidental da Otan que Putin se lançou na cruzada contra os ucranianos’

Paranoia ou não, foi no intento de estancar a “conversão” da Ucrânia ao universo ocidental da Otan que Putin se lançou na cruzada contra os ucranianos, que “ameaçavam” se bandear para a organização, no que ele percebia como uma ameaça quase civilizacional à “alma russa”. 

Nós acompanhamos a partir de então a tragédia que se instalou no território ucraniano quando o exército russo o invadiu em fevereiro de 2014. Acompanhamos, também, o envolvimento dúbio dos seus vizinhos do Continente europeu, acompanhado pelos Estados Unidos de Joe Biden.

Até que surgiu Donald Trump no “pedaço”, com ideias próprias sobre não somente o futuro da guerra, senão também da própria Otan. 

‘O mundo virou de cabeça para baixo. Trump anunciou que pretende tratar da questão ucraniana diretamente com Putin’

O mundo virou de cabeça para baixo. Trump anunciou que pretende tratar da questão ucraniana diretamente com Putin. Para tanto, está previsto que um emissário seu se encontrará com o emissário russo na Arábia Saudita (atenção!), escanteando os europeus e os ucranianos! 

E Trump já manteve uma longa conversa telefônica com Putin. Diante deste cenário, numa reunião de emergência convocada pelo presidente Emmanuel Macron, líderes da Itália, Polônia, Espanha, Ucrânia, França, Alemanha e União Europeia encontraram-se no último dia 12/02, em Paris, para buscar definir uma posição comum.

A esta reunião seguiu-se, no dia 16/02, a Conferência de Segurança de Munique, encontro que, realizado anualmente desde 1963, tornou-se o fórum independente mais importante para a troca de pontos de vista entre os responsáveis pelas decisões de políticas de segurança internacional.

‘Elie Tenenbaum, chefe do Centro de Estudos de Segurança do Instituto Francês de Relações Internacionais afirmou que “o pior pesadelo para os europeus tornou-se realidade”’

Foi então que o abismo entre os EUA e a Europa na guerra na Ucrânia e nas questões de segurança se cristalizou! Elie Tenenbaum, chefe do Centro de Estudos de Segurança do Instituto Francês de Relações Internacionais afirmou que “o pior pesadelo para os europeus tornou-se realidade”. Segundo ele, “eles veem que o governo Trump vai contorná-los e tentar forçar a Ucrânia a negociar um acordo com a Rússia para acabar com a guerra”.

Tenenbaum acrescentou que “os líderes europeus estavam anteriormente esperançosos de que os EUA e a Europa pudessem trabalhar juntos sob o novo governo Trump”. Mas comentários feitos por autoridades dos EUA – o secretário de Defesa Pete Hegseth, em Bruxelas; o vice-presidente americano J.D.Vance e o enviado especial Rússia-Ucrânia, general Keith Kellogg – em Munique, e pelo próprio presidente Trump após uma ligação de uma hora e meia com Putin, “jogaram água fria em tais esperanças”. 

‘O presidente finlandês resumiu a situação citando uma frase bem conhecida do líder soviético Vladimir Lenin: “há décadas em que nada acontece; e há semanas em que décadas acontecem”’

O político alemão Norbert Röttgen, defensor de longa data das alianças transatlânticas, disse que o governo Trump havia declarado uma guerra ideológica contra a Europa: “eles querem nos dividir e matar a Europa”, disse ele ao jornal francês Le Monde. O presidente finlandês, Alexander Stubb, resumiu a situação citando uma frase bem conhecida do líder soviético Vladimir Lenin: “há décadas em que nada acontece; e há semanas em que décadas acontecem”, disse ele.

Sumarizando: Estaríamos assistindo à cristalização de um novo cenário, de distanciamento dos europeus dos americanos, onde os poderosos acertam entre si o destino do planeta e o resto, inclusive os “ex-poderosos”, acompanham, se forem “sensatos”? Que mundo se delineia? Estaríamos revisitando a Guerra Fria: EUA + /X Rússia? E, nesse universo, onde fica a Ucrânia e os milhares de mortos em vão dos dois lados na guerra? E a destruição do território? Trágico balanço dos deslimites do poder.

A se cristalizar, este desacoplamento abre espaços complexos nas relações internacionais. Quais e como serão estes espaços? Perdurarão? E os novos hegemons – China e Índia – onde se encaixam neste cenário? 

Exagerando, por esta e outras razões estaríamos assistindo ao amanhecer de um novo mundo? Dias conturbados se anunciam, acredito.

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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