01 março 2023

Fernanda Nanci Gonçalves: Brasil atua pela retomada do seu protagonismo na América do Sul

Novo governo enfrentará desafios para reconstruir a imagem abalada do país, e é cedo para saber se o Brasil terá capacidade material de arcar com custos da liderança. Para professora de relações internacionais, entretanto, já é possível identificar sinais de disposição da diplomacia brasileira retomar o papel de potência regional

Novo governo enfrentará desafios para reconstruir a imagem abalada do país, e é cedo para saber se o Brasil terá capacidade material de arcar com custos da liderança. Para professora de relações internacionais, entretanto, já é possível identificar sinais de disposição da diplomacia brasileira retomar o papel de potência regional

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa durante sessão de Abertura da VII Cúpula da Celac em Buenos Aires (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Por Fernanda Nanci Gonçalves*

Nos estudos sobre regiões, o termo potência regional é utilizado, de modo geral, para fazer alusão a uma hierarquia de poder no sistema internacional, referindo-se a um país que é influente em uma determinada região.

Para analisar as potências regionais, o professor Detlef Nolte (2011) sistematizou uma definição segundo a qual um país pode ser enquadrado nesta categoria se:

  • articula uma posição de liderança em uma região delimitada geográfica, econômica e politicamente;
  • possui os recursos materiais (militares, econômicos e demográficos), organizacionais (políticos) e ideológicos para projeção de poder regional;
  • possui grande influência nas relações e nos resultados dos processos regionais;
  • possui interdependência econômica, política e cultural na região;
  • influencia de forma significativa a delimitação geográfica e a construção política e ideacional da região;
  • exerce influência por meio de estruturas de governança regional;
  • articula e define uma identidade e um projeto regional;
  • provê bens coletivos para a região ou participa de forma significativa da provisão desses bens;
  • influencia fortemente a definição da agenda de segurança regional;
  • tem uma posição de liderança reconhecida ou respeitada pelos demais atores regionais e extrarregionais;
  • participa de fóruns inter-regionais e globais, representando não apenas seus interesses, mas também, ao menos de forma limitada, os interesses regionais.
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Embora não exista uma definição única e consensual, a proposta por Nolte (2011) consegue abranger diferentes aspectos que a literatura sugere como definidores das potências regionais, englobando fatores mais objetivos, como os recursos materiais, e subjetivos, como a disposição de assumir a liderança na região, a capacidade de exercer a liderança regional, além do reconhecimento do papel de líder pelos vizinhos.

Durante os dois primeiros governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), inúmeras pesquisas destacaram que o Brasil intensificou sua atuação enquanto uma potência regional, investindo na construção ideacional e institucional da América do Sul, por exemplo, por meio da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e de financiamentos concedidos pelo BNDES, dos projetos inseridos na IIRSA ou mesmo da intensificação da internacionalização das empresas brasileiras na sub-região. Assim, o país arcava com os custos de ser um paymaster da integração regional.

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Também foi destacado por diversos estudos a atuação ativa do governo Lula na construção de uma agenda de defesa na região com a instituição do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) e a buscar por prover bens públicos através de ações de cooperação em âmbito regional, sendo a América do Sul o maior destino da cooperação brasileira para o exterior.

São inúmeros os exemplos de liderança regional ao longo desse período. Porém, também são diversos os exemplos que os observadores atentos à política externa brasileira utilizaram para caracterizar o declínio da atuação do país como potência regional durante os governos de Dilma Rousseff (2011-2016), Michel Temer (2016-2018) e, em especial, de Jair Bolsonaro (2019-2022).

‘Durante os governos Temer e Bolsonaro, a América do Sul foi deslocada das prioridades diplomáticas, tornando-se elemento secundário na inserção internacional’

Sem dúvidas, a combinação das condições do cenário externo com a complicação da situação econômica brasileira, resultante de fragilidades não enfrentadas no período dos governos de Lula, explicam, em parte, o menor ativismo do Brasil em assuntos de política externa e em termos regionais durante os governos de Rousseff. Mas, durante os governos Temer e Bolsonaro, a dimensão ideacional foi significativa, uma vez que a América do Sul foi deslocada das prioridades diplomáticas, tornando-se elemento secundário na inserção internacional. Vide a baixa prioridade dada ao Mercosul e, em especial, às relações com o mais importante vizinho brasileiro, a Argentina.

‘Após quase dois meses de mandato, já é possível identificar diversos sinais de que existe uma real disposição da diplomacia brasileira retomar o papel de potência regional’

Sem dúvidas, o novo governo de Lula da Silva enfrenta e ainda enfrentará muitos desafios para reconstruir a imagem abalada do Brasil na região e no mundo. Contudo, após quase dois meses de mandato, já é possível identificar diversos sinais de que existe uma real disposição da diplomacia brasileira retomar o papel de potência regional no que tange tanto às dimensões materiais quanto subjetivas associadas a este papel.

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No que diz respeito à dimensão material, retomando a definição do professor Nolte (2011), não basta o país ser a maior economia ou força militar da região, pois é preciso arcar com os custos da integração regional. O que podemos notar nesses primeiros meses do governo Lula é que o Brasil está disposto a arcar com tais custos, conforme o presidente deixou evidente em sua viagem oficial à Argentina em janeiro.

No encontro bilateral com o presidente Alberto Fernández, o mandatário declarou, à revelia das inúmeras críticas que recebeu da imprensa e de setores de oposição no Brasil, que o governo voltará a financiar obras de infraestrutura nos países vizinhos por meio do BNDES. Os presidentes chegaram a negociar a participação brasileira na construção de um gasoduto na Argentina que chegaria ao Sul do território nacional, auxiliando o Brasil a diminuir sua dependência do gás boliviano. Na ocasião, Lula afirmou que “os países maiores” têm que financiar obras nos países vizinhos. No mesmo encontro, o presidente brasileiro também foi alvo de críticas por discutir a possibilidade futura de uma moeda sul-americana comum, que seria utilizada para trocas comerciais.

‘Os sinais de maior disposição do resgaste da atuação como potência regional se concentram na dimensão subjetiva, no que tange à busca por demonstrar que o país está disposto a atuar e ser percebido pelos vizinhos como tal’

Apesar da dimensão material ser importante, até o momento os sinais de maior disposição do resgaste da atuação como potência regional na América do Sul se concentram na dimensão subjetiva, no que tange à busca por demonstrar que o país está disposto a atuar e ser percebido pelos vizinhos como tal.

Mantendo a tradição diplomática, rompida por Bolsonaro, Lula realizou a sua primeira visita oficial como presidente eleito à Argentina, numa clara demonstração da importância das relações bilaterais e da região na agenda diplomática brasileira. Ademais, nesse período em que esteve em solo argentino, participou da 7ª Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que aconteceu em Buenos Aires, retornando ao bloco após a retirada do país em 2020 pelo governo de Bolsonaro. O retorno a todas as instâncias da Celac demonstra claramente a disposição do governo brasileiro em retomar o protagonismo da promoção da integração regional.

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Outro elemento central foi a reunião do presidente brasileiro com o homólogo uruguaio, Luis Lacalle Pou, em Montevideo. Na ocasião, Lula buscou dissuadir Lacalle Pou do acordo comercial que seu governo vem negociando com os chineses, em prol do fortalecimento do bloco mercosulino.

Na tentativa de se posicionar como um mediador, papel que tipicamente era assumido pela diplomacia brasileira e que se esvaziou no governo Bolsonaro, Lula também tratou do tema das negociações comerciais Mercosul-União Europeia diretamente com autoridades do continente europeu, como o chanceler alemão Olaf Scholz quando este realizou visita ao Brasil em janeiro. Scholz, por sua vez, expressou o reconhecimento do retorno da atuação ativa da diplomacia brasileira, ao afirmar que estava feliz “pelo Brasil estar de volta à cena mundial”.

Outra clara sinalização do governo brasileiro para retomar seu papel como uma potência regional foi a proposta de retomada da Unasul. Quando de sua visita ao presidente Fernández na Argentina, Lula destacou a intenção de reconstruir a organização, além de fortalecer o Mercosul, com a presença da Bolívia. Na ocasião, Lula afirmou “o Brasil está de volta”.

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Por fim, ressalta-se a posição do governo brasileiro de respeitar a autodeterminação de Cuba e da Venezuela e a posição de atuar como “construtor da paz”, segundo palavras do próprio presidente Lula. Com efeito, potências regionais atuam como mediadoras, buscando influenciar os resultados dos processos regionais de forma a afastar ameaças extrarregionais. Na mesma linha de mediação, o presidente Lula se posicionou favorável à solução negociada para a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, propondo a criação de um “clube da paz”, o que demonstra claramente a tentativa de o governo brasileiro atuar como um protagonista a nível internacional, sendo representante dos interesses da região como um todo.

É evidente que o mandato de Lula ainda está no início e que é cedo para identificarmos se, na prática, o país terá as capacidades materiais e a disposição necessária para arcar com os custos de ser um paymaster da integração regional e um ator com protagonismo de nível internacional em um contexto doméstico e internacional tão distinto daquele que se apresentou para o então presidente e sua equipe governamental na primeira década dos anos 2000. Entretanto, os sinais até o momento são claros: a intenção é retomar o protagonismo brasileiro, na região e no mundo.


*Fernanda Nanci Gonçalves é colunista da Interesse Nacional. É professora e coordenadora do curso de relações internacionais do Unilasalle-RJ, pesquisadora do NEAAPE (Iesp-Uerj) e colaboradora do OPSA (Iesp-Uerj).


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Referências:

NOLTE, Detlef. Regional Powers and regional governance. In: GODEHARDT, Nadine; NABERS, Dirk. Regional Powers and Regional Orders. Londres: Routledge, 2011.

Fernanda Nanci Gonçalves é doutora em ciência política pelo IESP-Uerj. Professora dos cursos de relações internacionais do Unilasalle-RJ e UERJ. Coordenadora do Núcleo de Estudos Atores e Agendas de Política Externa (NEAAPE-Iesp/UERJ).

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