21 fevereiro 2024

Guilherme Casarões: Por que Bolsonaro não conseguiu derrubar a democracia – e por que a ameaça permanece

A incompetência e a autoilusão certamente desempenharam um papel no fracasso do projeto autoritário, mas há mais camadas para explicar a sobrevivência democrática do Brasil, como a mobilização internacional e o fato de que o Supremo Tribunal Federal parecia estar sempre um passo à frente de Bolsonaro

A incompetência e a autoilusão certamente desempenharam um papel no fracasso do projeto autoritário, mas há mais camadas para explicar a sobrevivência democrática do Brasil, como a mobilização internacional e o fato de que o Supremo Tribunal Federal parecia estar sempre um passo à frente de Bolsonaro

Evento Democracia Inabalada marcou um ano dos atos antidemocráticos e golpistas de 8 de janeiro (Foto: Lula Marques/ Agência Brasil)

Por Guilherme Casarões*

O presidente Jair Bolsonaro convocou seus ministros e equipe para uma reunião em sua residência oficial em 5 de julho de 2022. Eles discutiram longamente maneiras de evitar uma derrota nas eleições de outubro daquele ano. Todos na sala pareciam concordar que a democracia não deveria ficar em seu caminho.

Quando no cargo, o ex-presidente falou várias vezes contra a integridade das eleições de 2022, seguindo a infame campanha #StopTheSteal de Donald Trump. Para o governo Bolsonaro, as eleições sempre foram um incômodo, mas ninguém sabia até onde iriam para permanecer no cargo.

Na semana passada, imagens da reunião foram divulgadas como parte de uma ordem judicial emitida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. A Polícia Federal prendeu três dos mais próximos colaboradores de Bolsonaro e cumpriu mandados de busca contra ex-ministros e oficiais militares de alta patente.

Eles estão sendo investigados por supostamente planejar um golpe militar em resposta à vitória de Lula na votação. Durante as buscas, a polícia encontrou um decreto preliminar pelo qual Bolsonaro instituiria um estado de sítio no país, entregaria o poder aos generais e colocaria o ministro Moraes atrás das grades.

‘O bolsonarismo odeia Moraes ainda mais do que odeia Lula’

O bolsonarismo odeia Moraes ainda mais do que odeia Lula. Afinal, várias decisões do justiceiro independente do Brasil foram fundamentais para conter o extremismo e preservar a democracia.

Persistindo, custe o que custar

A ascensão e queda de Bolsonaro deixaram claro que a extrema-direita é tão ideológica quanto autoritária. O ex-presidente brasileiro e seus associados não hesitariam em fazer grandes esforços para travar guerras culturais e desacreditar inimigos; investigações mostraram que eles fariam qualquer coisa para se manter no poder.

Por que, então, Bolsonaro não conseguiu derrubar a democracia? A incompetência e a autoilusão certamente desempenharam um papel, mas há mais camadas para explicar a sobrevivência democrática do Brasil. Uma delas é que o Supremo Tribunal Federal parecia estar sempre um passo à frente de Bolsonaro.

Desde que os apoiadores do presidente começaram a inundar as ruas durante a pandemia de Covid-19 exigindo uma intervenção militar, o tribunal ordenou nada menos que oito investigações contra Bolsonaro e seus aliados tanto dentro quanto fora do governo. A pressão judicial aumentou consideravelmente os custos de disseminar desinformação em massa e atacar abertamente instituições.

‘À medida que ficava claro que o bolsonarismo era, em muitos aspectos, uma versão tropical do trumpismo, o Brasil se transformou em um campo de batalha ideológico global entre progressistas e reacionários’

Outro motivo foi a mobilização internacional em defesa da democracia brasileira. O desejo de Bolsonaro de seguir o roteiro radical de Donald Trump foi um sinal vermelho para muitos ativistas estrangeiros, jornalistas e políticos. À medida que ficava claro que o bolsonarismo era, em muitos aspectos, uma versão tropical do trumpismo, o Brasil se transformou em um campo de batalha ideológico global entre progressistas e reacionários.

A extrema-direita, liderada por Steve Bannon, usou o Brasil como laboratório de ideias extremistas, especialmente enquanto Trump ainda era presidente. Defensores da democracia, por sua vez, cerraram fileiras com seus colegas brasileiros para resistir ao ataque de Bolsonaro aos direitos humanos, à saúde pública e ao meio ambiente. Com Biden na Casa Branca, os EUA também ajudaram a conter a administração Bolsonaro por meio de canais diplomáticos.

‘Talvez a mensagem mais alarmante das últimas investigações do Supremo Tribunal seja que os militares estiveram envolvidos em minar a democracia’

O triunfo eleitoral de Lula em 2022 foi amplamente visto como uma vitória para os democratas. No entanto, as instituições políticas do Brasil não podem ser consideradas seguras. Talvez a mensagem mais alarmante das últimas investigações do Supremo Tribunal seja que os militares estiveram envolvidos em minar a democracia a cada passo do caminho.

Em vez de repudiar os apelos populares por um golpe, os militares às vezes estimularam o comportamento antidemocrático para servir a seu próprio orgulho – e agiram contra a lei. Milhares de apoiadores de Bolsonaro acamparam em frente ao quartel-general militar, com a cumplicidade das Forças Armadas, fornecendo o ambiente perfeito para a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.

Testando os limites da democracia

Na verdade, a versão brasileira dos tumultos no Capitólio em 6 de janeiro de 2021 é uma história preventiva de como uma tentativa de golpe pode ocorrer mesmo após o autocrata deixar o cargo. Enquanto Trump, que ainda estava no cargo, incitou uma multidão a invadir o Congresso e impedir a sessão que certificaria os resultados das eleições de 2020, o caos espalhado por hordas pró-Bolsonaro ocorreu uma semana depois que Lula assumiu o cargo. Mesmo sob a autoridade de Lula, os militares nada fizeram para impedir a destruição em Brasília.

Um ano depois, alguns membros dos militares ainda parecem estar testando os limites da democracia. Poucos dias atrás, após a prisão de alguns oficiais ativos e aposentados na operação da polícia federal, o ex-vice-presidente de Bolsonaro e agora senador Hamilton Mourão chegou a pedir que os militares se levantassem contra a decisão “arbitrária e persecutória” do Supremo Tribunal Federal.

Mourão, um general aposentado que se tornou político, não está sozinho em seu desprezo pela lei. Segundo uma pesquisa nacional realizada no dia seguinte à investigação de 8 de fevereiro, o país ainda está muito dividido em relação a Bolsonaro: 36,8% dos entrevistados acreditam que o ex-presidente não tentou realizar um golpe, 42,2% consideram que ele está sendo perseguido injustamente e 47,3% acham que os brasileiros vivem sob uma “ditadura judicial”.

‘O país ainda não exorcizou os demônios de seu passado ditatorial e não avançou além de seu presente profundamente polarizado’

Isso é muito sintomático de um país que ainda não exorcizou os demônios de seu passado ditatorial e não avançou além de seu presente profundamente polarizado. Juízes e políticos comprometidos com os valores democráticos devem trabalhar juntos para combater e punir o populismo autoritário em todas as suas formas.

No entanto, enquanto Bolsonaro permanecer uma figura central na política brasileira, esse cenário dificilmente mudará – e pode até piorar, se Trump for reeleito nos EUA. Embora Bolsonaro esteja atualmente inelegível para concorrer a cargos, um retorno político não é inimaginável caso as instituições democráticas falhem em seu trabalho.


*Guilherme Casarões é professor de ciência política na Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP)


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br

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