Jacob Shively: Lula enfrentará pressão para escolher lado em disputas internacionais
Presidente eleito deve ter uma ação mais engajada retórica e diplomaticamente, mas o contexto internacional de competição entre grandes potências vai ser um desafio para a ambição de inserir o país em questões globais, avalia o professor de relações internacionais na University of West Florida.
Presidente eleito deve ter uma ação mais engajada retórica e diplomaticamente, mas o contexto internacional de competição entre grandes potências vai ser um desafio para a ambição de inserir o país em questões globais, avalia professor de relações internacionais na University of West Florida
Por Daniel Buarque
A experiência dos dois primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência e o discurso dele durante a campanha e após a vitória nas eleições deste ano indicam que o Brasil deve passar a se inserir mais em questões globais e se envolver em organizações internacionais do que o que se viu ao longo dos últimos quatro anos sob Jair Bolsonaro.
“Lula é muito mais familiarizado com a linguagem internacionalista, então podemos esperar um Brasil mais engajado retórica e diplomaticamente”, explicou o professor de relações internacionais na University of West Florida Jacob Shively em entrevista à Interesse Nacional.
Mesmo com esta tendência favorável a um papel global mais ativo para o Brasil, essa “volta do país ao mundo”, como disse o presidente eleito, vai enfrentar desafios impostos pelo contexto global marcado por tensões entre grandes potências, com um contraste entre o Ocidente liderados pelos Estados Unidos e a China e a Rússia, avaliou Shively. “O Brasil e seus vizinhos provavelmente enfrentarão pressão para escolher um lado nas principais questões comerciais e diplomáticas”, disse.
Shively é co-autor do recém publicado artigo acadêmico Brazil’s Changing Foreign Policy Ambitions: Lula, Bolsonaro and Grand Strategy Analysis in the Global South, em que compara a política externa brasileira nos governos de Lula e Jair Bolsonaro. Ele argumenta que cada governo foi limitado ou moldado pelo status e investimentos econômicos, diplomáticos e militares existentes do Brasil, mas os cálculos políticos domésticos e compromissos ideológicos de cada presidente se desdobraram de forma marcante.
Apesar dessas diferenças, ele avalia que o posicionamento de Lula até o momento sobre a guerra na Ucrânia indica que alguns elementos da política externa do atual governo podem continuar vivos no próximo governo, refletindo “uma versão de esquerda do nacionalismo de Bolsonaro”.
Leia abaixo a entrevista completa
Daniel Buarque – Assim que foi declarado vencedor das eleições, Lula disse que “o Brasil está de volta ao mundo”. O que você acha disso? O que espera que mude na política externa brasileira e como acha que isso afetará o papel internacional do país?
Jacob Shively – Lula está parcialmente correto. Com base em seu histórico anterior, é provável que Lula insira o Brasil em questões globais e envolva mais organizações internacionais do que Bolsonaro. Lula é muito mais familiarizado com a linguagem internacionalista, então podemos esperar um Brasil mais engajado retórica e diplomaticamente.
Além disso, com o enfraquecimento da pandemia de Covid-19 e dos principais escândalos de governos anteriores, Lula pode ter menos distrações domésticas para se concentrar no exterior.
Ainda assim, a mudança na política externa pode se mostrar mais restrita com este governo Lula em comparação com 2003. A situação econômica do Brasil e os interesses comerciais internacionais restringem qualquer presidente, seja de esquerda ou de direita. Além disso, o forte contingente bolsonarista no Congresso Nacional deixa Lula com menos espaço para impulsionar grandes mudanças dentro e fora do país.
Tão importante quanto isso, o próprio Lula parece ter moderado suas ambições para o Brasil no mundo. Sua retórica de campanha este ano sugere que ele quer mudar a perspectiva do Brasil de nacionalista para internacionalista, mas 20 anos atrás ele imaginou o Brasil se juntando a outros Estados em ascensão compartilhando a liderança em nível global e na América do Sul. O Brasil viu seu perfil diplomático crescer nesse período; no entanto, as maiores ambições de Lula, da liderança latino-americana a uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, falharam em grande parte em produzir mudanças reais.
Daniel Buarque – Lula também disse que o mundo sente falta do Brasil no cenário global. Você concorda? Há espaço para o país ter um papel ativo internacionalmente?
Jacob Shively – Sempre há espaço para o Brasil desempenhar um papel global ativo. Está em uma posição única graças ao seu tamanho, influência cultural, recursos e posição em várias organizações internacionais. Como sempre, o desafio do Brasil é equilibrar seus desafios políticos, sociais e econômicos internos com a projeção de uma agenda clara e consistente com o resto do mundo.
Nesse contexto, Bolsonaro enquadrou o mundo em grande parte em termos de amigos e ameaças, com alguns Estados – notadamente a China – como parceiros de negócios necessários e pragmáticos.
As ambições de política externa de Lula são moderadas em comparação com seus dois primeiros mandatos, mas ele traz uma visão mais ampla do papel do Brasil no cenário mundial. Nos próximos meses, precisamos observar as indicações de seu gabinete e as prioridades políticas iniciais. Onde ele investir seu “capital político”, como dizemos em ciência política, revelará se Lula estará exercendo um papel assertivo como fez em seus primeiros mandatos ou se podemos esperar que a retórica da política externa do Brasil mude, mas suas prioridades diplomáticas e econômicas básicas permaneçam basicamente estáveis.
Daniel Buarque – O mundo mudou muito desde que Lula foi presidente em seus dois primeiros mandatos. Há uma guerra acontecendo na Europa e crescentes tensões entre os EUA e a China. Como esse contexto afetará a forma como o Brasil pode se posicionar globalmente? Quais você acha que serão os maiores desafios para o Brasil de Lula no cenário internacional?
Jacob Shively – Em nível global, o maior desafio nos próximos anos para o Brasil de Lula e muitos outros governos será a crescente separação entre o que poderíamos chamar de ordem econômica e política liderada pelos EUA em contraste com Pequim e, em menor grau, Moscou.
O Brasil e outros governos da América Latina viram as advertências retóricas de Washington sobre a integração econômica com a China, mas isso foi apoiado por relativamente pouca pressão econômica e diplomática. É provável que isso mude. Os desenvolvimentos que impulsionam esse movimento incluem os choques na cadeia de suprimentos associados à pandemia, o crescimento das ameaças à segurança cibernética e a expansão estratégica sob Xi Jinping e a guerra entre Rússia e Ucrânia.
Os líderes em Washington e em outros lugares estão menos otimistas de que a integração global tenha sempre um resultado positivo. Hesito em chamar o que vemos de uma nova Guerra Fria. Isso é exagerado. Ainda assim, o Brasil e seus vizinhos provavelmente enfrentarão pressão para escolher um lado nas principais questões comerciais e diplomáticas.
Além disso, a pressão para agir sobre as mudanças climáticas continua a crescer. Para Bolsonaro, a Amazônia como recurso econômico era um ponto contínuo de forte tensão com certos governos estrangeiros, principalmente França e Alemanha. Dado seu histórico de políticas e retórica atual, Lula provavelmente aliviará essa tensão. Ainda assim, podemos esperar que a Amazônia seja uma grande preocupação internacional ao lado de uma série de outros desafios ambientais que todas as economias modernas enfrentam. Lula e seu governo podem sentir a pressão internacional para inovar ou agir além de seus planos atuais.
Daniel Buarque – Quando Trump deixou o governo dos EUA, houve muita discussão sobre o quão sério o mundo levaria a nova direção da política externa de Biden, já que Trump conseguiu mudar a posição internacional do país (como no caso do Acordo de Paris). Será que algo assim vai acontecer com Lula e com o Brasil? O mundo vai levar a sério essa “volta” do Brasil à política externa tradicional?
Jacob Shively – Este é um verdadeiro desafio para qualquer democracia polarizada. Em suma, acho que o mundo levará a sério essa mudança de política externa, mas sua disposição de segui-la com compromissos diplomáticos e econômicos pode ser limitada até que vejam surgir uma direção clara no cenário político doméstico.
Por um lado, minha própria pesquisa sugere que a mudança da política externa nos Estados Unidos e no Brasil é mais restrita entre as administrações do que podemos imaginar. Compromissos existentes, interesses econômicos, expectativas ideológicas e assim por diante dificultam a realização de mudanças práticas e revolucionárias. Além disso, os governos tendem a construir reputações e históricos, e seu corpo diplomático profissional tende a permanecer mais estável do que suas lideranças políticas. Esses fatos podem suavizar a tendência de mudança de liderança para criar política e reputação.
Apesar disso, as prioridades dos líderes importam para percepções e compromissos diplomáticos. Assim como os observadores precisam se perguntar se as prioridades da política externa de Biden podem desaparecer após a próxima eleição, eles também estarão observando a política interna do Brasil em busca de dicas sobre se e até que ponto os compromissos externos do Brasil serão confiáveis e duradouros.
Daniel Buarque – O que você acha que restará das mudanças promovidas por Bolsonaro na política externa brasileira?
Jacob Shively – Provavelmente veremos os aspectos mais volúveis da abordagem de política externa de Bolsonaro serem revertidos, mas provavelmente veremos alguns aspectos do nacionalismo geoestratégico e econômico de Bolsonaro permanecerem.
Mais visivelmente, veremos a retórica da política externa brasileira se afastar das prioridades nacionalistas de Bolsonaro. Bolsonaro destacou a conversa de “valores tradicionais” e civilização judaico-cristã, juntamente com grande ceticismo em relação às instituições globais. Em termos práticos, Bolsonaro enfatizou o relacionamento com outras lideranças de direita e viajou menos do que Lula quando era presidente. Muito disso será relativamente fácil para Lula reverter ou abandonar.
Ainda assim, o próprio Brasil tem uma longa história de foco doméstico regional. Bolsonaro se baseou nessa tradição. Lula tentou se opor a essa preferência em seus dois primeiros mandatos, mas em sua última campanha, ele parece ter seguido alguns aspectos da liderança de Bolsonaro. O exemplo mais revelador pode ser seus comentários sobre a Guerra da Ucrânia. Ao enquadrar os dois líderes como igualmente responsáveis, ele seguiu amplamente uma versão de esquerda do nacionalismo de Bolsonaro. Nessa abordagem, a liderança procura enfatizar os interesses econômicos específicos do Brasil e evitar emaranhados globais mais amplos, particularmente emaranhados que são percebidos como instigados no Norte Global.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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