Monica Herz:Após Bolsonaro, Brasil vai enfrentar crise de confiança internacional
Implementação de uma política externa conservadora mostrou que as tradições diplomáticas podem ser rompidas e que pode haver uma descontinuidade na posição do país perante o mundo. Para a professora de relações internacionais da PUC-Rio, isso vai afetar a confiança internacional no país, mas o Brasil ainda tem o potencial de exercer um papel de liderança global
Implementação de uma política externa conservadora mostrou que as tradições diplomáticas podem ser rompidas e que pode haver uma descontinuidade na posição do país perante o mundo. Para a professora de relações internacionais da PUC-Rio, isso vai afetar a confiança internacional no país, mas o Brasil ainda tem o potencial de exercer um papel de liderança global
Por Daniel Buarque
As transformações levadas adiante pelo governo de Jair Bolsonaro na política externa brasileira desde 2019 logo serão deixadas para trás, mas vão deixar algumas cicatrizes. Para Monica Herz, professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisadora do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), os últimos quatro anos de ruptura com as tradições históricas do Itamaraty vão ser apenas um hiato na diplomacia brasileira, mas terão consequências para as relações do país com o resto do mundo.
“Vai haver uma crise de confiança no país. Não no governo Lula, mas no Brasil”, disse, em entrevista à Interesse Nacional. Segundo ela, a perspectiva é semelhante à enfrentada pelos Estados Unidos após o fim do governo Trump, quando permanece a preocupação de volta do ex-presidente ou de um projeto semelhante com o potencial de desrespeito às regras internacionais de convivência.
“Isso é um custo para o país”, explica. “A política externa brasileira tinha um nível de continuidade muito grande (…) e Bolsonaro demonstrou que pode haver uma descontinuidade muito grande, a retirada do país do seu envolvimento internacional.”
Herz é autora do artigo acadêmico recém-publicado A Conservative Foreign Policy for Brazil, em que desenvolve uma interpretação da política externa de Bolsonaro com foco na sua visão de mundo autoritária e conservadora. Ela argumenta que o presidente redefiniu o lugar da política externa no governo, redesenhou como o país prioriza relações com outras nações e alienou a política externa brasileira do seu tradicional apoio a instituições multilaterais.
Apesar da preocupação com este custo da provável crise de confiança, ela alega que a mudança institucional do Itamaraty para uma volta a uma política externa de engajamento não deve ser um grande desafio. Para ela, o Brasil pode voltar a exercer uma liderança importante, e o potencial é até maior do que no passado por conta da centralidade da questão da mudança climática na agenda internacional.
Leia a entrevista completa abaixo
Daniel Buarque – O que vai ficar de tudo o que Bolsonaro fez na política externa ao longo de quatro anos, e o que vai ser mais difícil mudar a partir de um novo governo em janeiro?
Monica Herz – O novo governo vai assumir em janeiro, a política externa vai mudar dramaticamente e nós vamos recuperar espaço no cenário Internacional. Mas vai haver uma crise de confiança no país. Não no governo Lula, mas no Brasil Isso aconteceu também com o governo norte-americano após a saída de Trump e sob a perspectiva que ele ou alguém parecido pode voltar ao poder no país e que essa volta pode significar de novo uma retirada da esfera multilateral, desrespeito às regras internacionais de convivência. Assim como aconteceu no Brasil durante o governo Bolsonaro, obviamente não está eliminada a possibilidade de acontecer novamente daqui a quatro anos. Isso é um custo para o país.
A política externa brasileira tinha um nível de continuidade muito grande. E a perspectiva Internacional era de que havia um nível de institucionalização muito alto e que pouca coisa mudaria mesmo, independentemente do processo político, ou da chegada ao poder de um governo mais à esquerda ou mais à direita. Bolsonaro demonstrou que não, que pode haver uma descontinuidade muito grande, a retirada do país do seu envolvimento internacional, mas também o envolvimento com uma agenda conservadora, particularmente no campo dos direitos humanos.
Daniel Buarque – Apesar dessa crise de confiança, entretanto, não vai ser um problema para o Brasil retomar seu trabalho de construir um espaço no mundo? Os quatro anos de Bolsonaro na política externa vão ser deixados para trás?
Monica Herz – Sim. Vai ser um hiato que vai ter consequências, mas vai ser um período que se encerra. Uma das consequências é acabar com a percepção de que a diplomacia Brasileira é insulada e protegida e que não sofre abalos com mudança política no país. Essa percepção muito forte, particularmente, nos países com maior envolvimento com o sistema multilateral, de que a gente podia garantir que o Brasil ia continuar com uma política externa de envolvimento, de mediação, poderia ser um ator confiável nesse sentido. Há uma expectativa enorme pela volta do presidente Lula e de uma política externa como houve ao longo do período pós-ditadura. Mas todo esse processo tem consequências, tem custos.
Daniel Buarque – Além dessa ideia de que a política externa brasileira era estável, sempre houve a percepção de que o Itamaraty é como um transatlântico e que mudar o rumo dele não é fácil. Acha que vai haver alguma dificuldade em consolidar essa volta a um perfil mais tradicional da diplomacia brasileira?
Monica Herz – Do ponto de vista do Itamaraty enquanto instituição, isso vai acontecer com uma certa facilidade. O núcleo no Itamaraty e apoia esse tipo de política externa hiper nacionalista, isolacionista, anti meio ambiente e direitos humanos é um lucro pequeno que provavelmente vai ser isolado nesse novo Itamaraty. Do ponto de vista da instituição, vai ser possível retomar o curso tradicional. Há uma série de grandes lideranças dentro do Itamaraty que se mantiveram discretas durante esse período e que certamente vão voltar a ter atuação. Mas dentro do Itamaraty vai continuar havendo um grupo, ainda que pequeno, que se alinha com esse tipo de política externa da extrema-direita.
Daniel Buarque – Existe alguma coisa que possa ser feita pelo novo governo para tentar fortalecer ainda mais esse lado institucional da política externa e evitar que haja ruptura de novo?
Monica Herz – Não existe e não seria correto. As estruturas do Estado precisam ter uma certa estabilidade e institucionalidade, em contraposição às estruturas de governo, mas a política externa brasileira muda quando o governo muda. O que nós temos que fazer é fortalecer a democracia brasileira e fortalecer a cultura democrática no país para evitar, não que o governo da direita assuma, mas que surja um governo que desrespeita a democracia, que é uma coisa totalmente diferente.
Daniel Buarque – Seu artigo recente trata da questão de imagem do país, que mudou sob Bolsonaro. Acha que vai ser fácil conseguir retomar a percepção positiva que se tinha do país no mundo no passado?
Monica Herz – O potencial é imenso para o Brasil voltar a exercer uma liderança importante. Em um certo sentido, o potencial é até maior, porque a questão da mudança climática é mais central na agenda hoje do que era durante os governos do PT. O Brasil pode, em coalizão com outros países do Sul Global, ter um papel fundamental nessa discussão sobre a mudança climática.
Por outro lado, essa disputa entre perspectivas mais multilaterais, que pensam a interdependência no globo e perspectivas internacionalistas competitivas e antidemocráticas não é uma disputa brasileira. É uma disputa global. O governo do PT vai fazer parte deste universo onde essa disputa está acontecendo. E certamente vai fazer parte dessa disputa favorecendo a perspectiva mais cosmopolita e multilateralista que é a tradição da política externa não só do PT, mas dos atores que formaram essa coalizão democrática.
Daniel Buarque – A política regional e a chamada nova onda rosa, de governos de esquerda na América Latina tem alguma relevância nesse processo, ou o foco é mais amplo em políticas multilaterais?
Monica Herz – A perspectiva de que a América do sul é relevante para a política externa brasileira também não é uma perspectiva só da esquerda, e nem a perspectiva de que há de se buscar um mecanismo de cooperação com países, independentemente de eles terem governos de esquerda ou de direita. Essa sempre foi a perspectiva da política externa brasileira, com exceção do período do governo Bolsonaro. Então o novo governo vai buscar mecanismos de cooperação com todos os países da América do Sul, e não só o Chile e a Colômbia. Trata-se de três países muito importantes e que têm governos mais à esquerda, ainda que muito diferentes entre si, e que vão ter um potencial de aproximação e de reinstitucionalização da política regional muito significativo.
Daniel Buarque – Considerando ainda o contexto Internacional mais amplo, as disputas entre EUA e China e a guerra na Europa, como vai ficar a postura do Brasil?
Monica Herz – É importante olhar a disputa e as disputas que existem no sistema Internacional e pensar cada uma delas em cada momento e, de preferência, pensar nessas disputas junto com os nossos vizinhos na América do Sul. O Brasil tem muito mais força diante dessas dificuldades, desse sistema internacional extremamente desafiador, quando atua dessa forma. O principal desafio vai ser se colocar diante da disputa entre os Estados Unidos e a China, pois seria importante encontrar algum tipo de caminho de negociação na região. Precisamos encontrar um lugar para essa política diante dos conflitos sistêmicos juntamente com os outros países da região que têm o mesmo problema. A presença da China na região é gigantesca, mas a presença Americana também é. E o Brasil pode ter um papel em favorecer mecanismos de governança global menos intervencionistas e possíveis. Não adianta buscar um mecanismo de cooperação que supõe a existência, por exemplo, de regimes democráticos, quando na verdade a gente tem uma série de regimes não democráticos, em particular a China e a Rússia. Então a gente criar um universo de governança global em que seja possível conviver com esses países que não são democráticos.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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