24 novembro 2023

Rubens Barbosa: O surrealismo nas eleições presidenciais na Argentina

Em meio a uma crise econômica e social sem precedentes, os argentinos votaram por um salto no escuro com a escolha de Javier Milei para governar. Para embaixador, apesar do tom da campanha, as bravatas ideológicas estão sendo gradualmente substituídas pelo pragmatismo presidencial, e as relações com o Brasil não devem ser afetadas

Em meio a uma crise econômica e social sem precedentes, os argentinos votaram por um salto no escuro com a escolha de Javier Milei para governar. Para embaixador, apesar do tom da campanha, as bravatas ideológicas estão sendo gradualmente substituídas pelo pragmatismo presidencial, e as relações com o Brasil não devem ser afetadas

O presidente eleito da Argentina, Javier Milei, durante campanha eleitoral (Foto: Divulgação)

Por Rubens Barbosa*

Os dois candidatos que foram para o segundo turno rnas eleições presidenciais na Argentina representaram mais do mesmo e um salto no escuro.

O candidato da situação, Sergio Massa, que venceu o primeiro turno, é o ministro da Economia que ajudou a levar a Argentina para uma crise econômica e social sem precedentes. Inflação fora de controle, recessão, gastos públicos estratosféricos em função dos subsídios na energia, na alimentação, nos transportes, 40% da população abaixo da pobreza, desemprego. Se vencesse, desmentiria Bill Clinton, que disse que o fator decisivo da eleição é a economia. Para os argentinos, seria mais do mesmo.

O candidato de oposição, Javier Milei, que se apresenta como libertário e ultraconservador, excêntrico, sem nenhuma experiência de governo, com ideias iconoclastas, declarou na campanha eleitoral querer dolarizar a economia, acabar com o Banco Central e acabar com os subsídios para reduzir os gastos do governo. Na área externa, quer sair do Mercosul e não comerciar com países como a China e o Brasil, dois dos principais parceiros comerciais da Argentina. Um verdadeiro salto no escuro.

‘Milei se beneficiou do desencanto e da rejeição da população com o peronismo que, depois de mais de 80 anos, continua a influir na politica interna do pais’

Com 55% dos votos, mais mais de 11% de diferença sobre Massa, Milei se beneficiou do desencanto e da rejeição da população com o peronismo que, depois de mais de 80 anos, continua a influir na politica interna do pais. A vitória folgada foi uma surpresa para os analistas e em circunstâncias normais daria cacife para o novo presidente negociar seu programa de reformas que chamou de drásticas.

Sem maioria no Congresso, o apoio do ex-presidente Macri e da ex-candidata Patricia Bullrich poderá ajudar a governabilidade do governo Milei, mas as perspectivas são de continuação da instabilidade política a econômica, enquanto as medidas econômicas não produzirem resultados.

‘Pode-se esperar uma forte oposição da população, endossada pelos peronistas no Congresso’

Como reagirão os eleitores que votaram contra Massa (não a favor a Milei), se dentre as medidas drásticas que o novo governo decidir aprovar – terapia de choque, como as chamou Milei – estiver a redução significativa (mesmo gradual) dos subsídios na eletricidade, nos transportes, na água que beneficiam os mais pobres? Pode-se esperar uma forte oposição da população, endossada pelos peronistas no Congresso. 

Se for cumprida, mesmo gradualmente, a promessa de corte de gastos e as províncias forem afetadas, pode-se com certeza esperar uma reação vigorosa dos governadores, nenhum deles eleito pelo partido de Milei nas ultimas eleições. Sem falar na reação dos sindicatos controlados pela oposição peronista.

Na área externa, apesar de, na retórica da campanha, Milei ter dito, por óbvias diferenças ideológicas, que iria reduzir suas relações com o Brasil e com a China e sair do Mercosul, a necessidade de ingressos para reforçar a quase negativa reserva financeira da Argentina forçará  o novo presidente a ter uma visão mais pragmática. 

‘Não estamos na iminência de uma crise com a China ou o Brasil. O intercâmbio bilateral com os dois países vai continuar e possivelmente aumentar’

Não estamos na iminência de uma crise com a China ou o Brasil. O intercâmbio bilateral com os dois países vai continuar e possivelmente aumentar. Com o Mercosul, caso o acordo com a União Europeia seja concluído, como tudo indica vai acontecer na última reunião presidencial do ano, nos dias 7 e 8 de dezembro, a Argentina só teria a ganhar. Não parece que o Mercosul e o acordo com a UE sejam renegados por Milei, ao contrário. 

Na relação bilateral com o Brasil, vamos ter a repetição do que ocorreu entre Bolsonaro e Alberto Fernández: os presidentes não se falavam, mas as relações institucionais seguiram normalmente seu curso. O mesmo vai ocorrer com Lula e Milei. De novo, o Itamaraty vai ter de recorrer à paciência estratégica.

Na noite da eleição, no discurso da vitoria, Milei disse que a Argentina, que já foi “o pais número um no mundo no início do século”, vai voltar a crescer e “vai se tornar em 25 anos um pais desenvolvido”.  Se isso acontecer, será bom para o Brasil e vamos todos aplaudir. A Argentina imaginária aumenta o surrealismo na politica de los hermanos.

Depois de chamar o papa Francisco, argentino, de esquerdista, e o papa ter condenados os “adolfinhos da extrema-direita”, o papa telefonou para Milei e conversaram normalmente. O embaixador da China, depois de duras trocas de ameaças, entregou carta de Xi Jinping a Milei, cumprimentando-o pela eleição. Trump telefonou a Milei e prometeu ir à posse. As relações institucionais entre Estados vão continuar normalmente, e os compromissos assumidos pela argentina vão ser cumpridos, inclusive o acordo do Mercosul, mesmo finalizado pelo presidente Fernández, dois dias antes da posse. As bravatas ideológicas da campanha estão sendo gradualmente substituídas pelo pragmatismo presidencial. 


*Rubens Barbosa foi embaixador do Brasil em Londres e em Washington, DC., é diplomata, presidente do Instituto Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e coordenador editorial da Interesse Nacional.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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