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Interesse Nacional
18 março 2024

A democracia liberal tem futuro?

Até os anos 1990, as democracias do mundo desenvolvido exibiam uma estabilidade sem paralelo, o que levou muitos analistas à ideia de ‘consolidação democrática’, mas esse mundo começou a perder solidez na década de 2010. Para embaixador, testemunhamos hoje a crise das democracias liberais, os sinais de declínio da hegemonia norte-americana, a crescente afirmação da China como superpotência rival e a expansão de regimes populistas autoritários

Até os anos 1990, as democracias do mundo desenvolvido exibiam uma estabilidade sem paralelo, o que levou muitos analistas à ideia de ‘consolidação democrática’, mas esse mundo começou a perder solidez na década de 2010. Para embaixador, testemunhamos hoje a crise das democracias liberais, os sinais de declínio da hegemonia norte-americana, a crescente afirmação da China como superpotência rival e a expansão de regimes populistas autoritários

Manifestação em defesa da democracia, no Rio, marcou um ano dos atos golpistas e da invasão dos prédios dos Três Poderes, em Brasília, no 8 de janeiro de 2023 (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*

Duas grandes democracias – EUA e Brasil – venceram recentemente a  ameaça real de se transformarem em autocracias. Mas os riscos continuam, com a provável reeleição de Donald Trump e com a resiliência do bolsonarismo. 

Apesar dessas semelhanças, os dois países responderam de forma diferente às ameaças. No Brasil, o TSE declarou Jair Bolsonaro inelegível, e intensas investigações estão em curso, enquanto nos EUA, o Partido Republicano continua a apoiar Trump, favorito nas eleições de 2024. 

Levitsky e Ziblatt, em Como salvar a democracia, sintetizam essas diferenças. “O Brasil rechaçou a recente ameaça à democracia, ao contrário dos EUA”.  Em que medida essas ameaças antidemocráticas refletem o declínio global das democracias? A democracia liberal tem futuro?

A parcela de países considerados democracias eleitorais subiu acentuadamente nos anos 1990, declinou a partir de então e situa-se atualmente em apenas 50%, segundo o Índice de Democracia publicado  pela Economist Intelligence Unit (EIU). Apesar desse forte declínio, curiosamente, em 2024 haverá eleições em mais de 70 países, com um total de 4 bilhões de habitantes, responsáveis por cerca de metade da população mundial. 

‘O mundo atual talvez seja a imagem reversa daquele do início dos anos 1990, quando o triunfo da democracia inspirou a euforia de Francis Fukuyama ao anunciar o fim da história’

O mundo atual talvez seja a imagem reversa daquele do início dos anos 1990, quando o triunfo da democracia inspirou a euforia de Francis Fukuyama ao  anunciar o fim da história e a hegemonia da democracia liberal. As origens de sua visão residiam na queda do Muro de Berlim, no desmembramento da União Soviética, na expansão do liberalismo, das economias de mercado e da globalização. 

As políticas econômicas adotadas a partir da década de 1990 se pautaram pela liberalização do comércio internacional, por maior liberdade dos fluxos de capital e pelo crescimento exponencial dos mercados financeiros. As exitosas reformas econômicas introduzidas por Deng Xiaoping a partir de 1978 e a inserção crescente da China no mercado internacional alimentaram esse otimismo sobre os rumos da globalização. 

As democracias do mundo desenvolvido exibiam uma estabilidade sem paralelo, o que levou muitos analistas à ideia de “consolidação democrática”, que teria como substrato eleições livres, alternância no poder, sociedade civil vibrante e instituições representativas funcionais.    

Mas esse mundo começou a perder solidez na década de 2010 e testemunhamos hoje a crise das democracias liberais, os sinais de declínio da hegemonia norte-americana, a crescente afirmação da China como superpotência rival e a expansão de regimes populistas autoritários. 

Três pilares que serviram de sustentação das democracias liberais começaram a perder solidez e criaram as condições para seu declínio

Três pilares que serviram de sustentação das democracias liberais começaram a perder solidez e criaram as condições para seu declínio. 

O primeiro pilar consistiu em crescimento econômico, inclusão social e elevado padrão de vida. A prolongada estabilidade democrática do pós-guerra se fundamentava na significativa melhora do padrão de vida da população, resultante da chamada Era de Ouro do capitalismo, do pós-guerra até o início dos anos 1970. Nos países da OCDE, a taxa média de crescimento do PIB nas décadas de 1950 e 60 foi superior a 4,5%, reduzida para 3% e 2% nos períodos seguintes de 1970 e 80. 

‘O declínio no crescimento dos países avançados afetou negativamente  a percepção da sociedade sobre o sistema político’

Esse declínio no crescimento dos países avançados afetou negativamente  a percepção da sociedade sobre o sistema político. Yascha Mounk, em O povo contra a democracia, assinala que, de 1935 a 1960, a renda de uma família americana típica dobrou, o que voltou a ocorrer de 1960 a 1985, mas estagnou desde então. A confiança e o otimismo evaporaram, como assinala Mounk, com base em sua pesquisa. “Mais de dois terços dos idosos americanos acreditam que é extremamente importante viver em uma democracia; entre os millennials, menos de um terço pensa o mesmo. (…) Em 1995, por exemplo, apenas uma em cada 16 pessoas acreditava que um governo militar era um bom sistema de governo; hoje a proporção é de uma em seis”. 

Esses indicadores refletem a perda da confiança na democracia como o sistema político com maior capacidade de realizar as expectativas da sociedade. É o declínio de uma crença resiliente ao longo de quase meio século, o que abriu caminho para os populismos autoritários de diversas colorações ideológicas no mundo desenvolvido.

‘O segundo pilar abalado foi o binômio liberalismo e democracia. Em lugar dessa combinação virtuosa, surgiram a democracia sem direitos e os direitos sem democracia’

O segundo pilar abalado foi o binômio liberalismo e democracia. Em lugar dessa combinação virtuosa, tivemos disfunções e disfuncionalidades nos dois processos, que produziram tanto a democracia sem direitos, como os direitos sem democracia. 

A democracia sem direitos corresponde à tirania da maioria, tão temida por Tocqueville, e prevalecente nos regimes que promovem eleições recorrentes, com amplo apoio popular – como a  Venezuela – mas não contemplam as aspirações de diversos segmentos da sociedade. 

O modelo dos direitos sem democracia predomina nos regimes que beneficiam uma reduzida camada da população de bilionários e tecnocratas – como a Rússia – mas excluem o povo das decisões políticas.

Mounk estuda dois casos aparentemente opostos – a ascensão populista na Hungria e o controle tecnocrático na Grécia. No primeiro caso, a Hungria, superado o legado comunista, a democracia parecia em processo de consolidação. Mas a percepção da maioria era que ela pouco se beneficiava do crescimento econômico. Quando a centro-esquerda no poder envolveu-se em amplo escândalo de corrupção, o repúdio popular elegeu Viktor Orbán, que trilhou o caminho populista de estabelecer vínculo direto com o povo e minar as instituições – aparelhamento de órgãos da imprensa, das estatais, da comissão eleitoral e do tribunal constitucional. Em síntese, a vontade do povo marginalizou as instituições independentes responsáveis pelo Estado de direito.

No segundo caso, a Grécia, em 2015, vivia os efeitos de uma grande recessão e de exponencial dívida externa. Um governo de forte base popular, liderado por Tsipras, assumiu o poder. Uma política de austeridade apenas agravaria a fragilidade da economia, sem trazer solução para o endividamento. Ao mesmo tempo, o calote da Grécia poderia estimular outros países da zona do Euro a seguir o mesmo rumo, o que seria um risco para a sobrevivência do sistema monetário europeu. Foi realizado um referendo que rejeitou a política de austeridade defendida pelo Banco Central Europeu e sobretudo pela Alemanha, mas prevaleceu a diretriz da tecnocracia europeia. É bem verdade que, com a ajuda recebida, a Grécia se recuperou e elegeu o candidato conservador Mitsotakis em 2019, reeleito em seguida, no movimento pendular típico das democracias. 

‘As experiências da Hungria e da Grécia são emblemáticas. Na primeira, temos um caso de democracia sem direitos ou democracia iliberal. Na Grécia, prevaleceu o modelo tecnocrático, com direitos sem democracia ou liberalismo antidemocrático’

As experiências da Hungria e da Grécia são emblemáticas. Mounk assinala que no primeiro país, “as preferências do povo são cada vez mais iliberais”, ao demonstrarem tanto desencanto quanto às instituições, como intolerância em relação aos direitos de imigrantes, de minorias étnicas e religiosas. No segundo país, “as elites vêm assumindo o controle do sistema político e tornando-o cada vez mais insensível”, com os poderosos refratários às opiniões do povo.

Em síntese, na Hungria, com eleições recorrentes e aparelhamento das instituições, temos um caso de democracia sem direitos ou democracia iliberal. No outro espectro, a Grécia, onde prevaleceu o modelo tecnocrático, temos um caso de direitos sem democracia ou liberalismo antidemocrático. A conclusão de O povo contra a democracia é inescapável. “Como resultado, liberalismo e democracia, os dois elementos centrais de nosso sistema político, começam a entrar em conflito.” 

‘O terceiro pilar da democracia liberal foi historicamente a homogeneidade étnica e cultural ou, na sua ausência, a hegemonia do segmento mais poderoso da sociedade’

O terceiro pilar da democracia liberal foi historicamente a homogeneidade étnica e cultural ou, na sua ausência, a hegemonia do segmento mais poderoso da sociedade. Assim, apesar de multiétnicos, os EUA viram a democracia moderna florescer porque havia uma clara hierarquia racial, com os brancos monopolizando privilégios. Na Europa Ocidental, países fundados em bases monoétnicas, como Alemanha e Suécia, a democracia prevaleceu porque os direitos dos imigrantes não eram reconhecidos. 

Em seu último livro, O grande experimento, Mounk afirma. “Esse grande experimento – [a construção de democracias diversificadas] – é o empreendimento mais importante de nossa época.” Na sua visão, “democracia e diversidade podem, na verdade, dificultar o sucesso das sociedades. Primeiro, o confronto entre grupos identitários diferentes tem sido um dos grandes motores dos conflitos humanos ao longo da história. Em segundo lugar, as instituições democráticas podem tanto aliviar quando exacerbar o desafio da diversidade.”

O desgaste dos três pilares da democracia liberal acima descritos se tornaram mais ameaçadores com a emergência da internet e a consequente proliferação exponencial das redes sociais. Esse ponto de inflexão – a internet – retirou das elites políticas e econômicas o domínio exclusivo dos meios de comunicação e qualquer cidadão é capaz de viralizar uma informação.

Como acabamos de ver, o desgaste progressivo dos três pilares da democracia liberal, agravado pela disseminação das redes sociais, constituem ameaça existencial às democracias e aos valores fundacionais de nossa civilização. 

‘As atuais sociedades diversas têm maior dificuldade de preservar a democracia do que no passado. Mas, ao mesmo tempo, a integração de minorias étnicas e culturais avançou muito ao longo das décadas, o que abre perspectivas mais promissoras para a convivência democrática’ 

No contexto dessa ameaça, Mounk, em O grande experimento, procura desvendar percepções, caminhos e  políticas que poderão contribuir para “salvar” as democracias liberais. Sua primeira advertência se destina a criar uma crescente consciência das dificuldades hoje enfrentadas pelas democracias, mas sem cair na armadilha do pessimismo. Alega que, de fato, as atuais sociedades diversas têm maior dificuldade de preservar a democracia do que no passado. Mas, ao mesmo tempo, a integração de minorias étnicas e culturais avançou muito ao longo das décadas, o que abre perspectivas mais promissoras para a convivência democrática. 

Para salvar a democracia é também essencial que os governos busquem políticas públicas inclusivas. Ao contemplarem os interesses não apenas de grupos específicos, mas do conjunto da sociedade, essas políticas estarão arrefecendo conflitos, promovendo a cooperação e o bem estar da coletividade.

Mounk conclama as forças moderadas da sociedade, identificadas com a democracia, a buscarem diversas formas de  participação política mais efetiva, de forma a evitar que a atual polarização avance e se consolide.  

Como assinalado no início deste artigo, recentemente as duas grandes democracias – EUA e Brasil – derrotaram a ameaça real de virarem  autocracias. Mas vencer a batalha não significa ganhar a guerra. A democracia ainda está ameaçada nesses dois países. 

No primeiro, as urnas poderão trazer de volta o presidente norte-americano que, nas palavras de Levitsky, mais ameaçou a democracia. No segundo, o personagem sai do palco, mas conta ainda com milhões de fiéis seguidores refratários à democracia liberal. 

No Brasil, o atual governo, vitorioso nas urnas com margem inferior a 2%, assumiu com a promissora  bandeira da união nacional e da participação das forças de centro no gabinete, o que não ocorreu. O percentual de brasileiros que afirmam estar o país mais polarizado deu um salto de 64% para 83%, entre outubro de 2023 e fevereiro de 2024, segundo recente pesquisa da Quaest.

Com exceção da economia, onde o pensamento liberal democrático tem força, nas demais áreas – como a política externa – o governo assume posições ideológicas que o aproximam da militância radical e o afastam do centro democrático. Nesse quadro, as advertências de Mounk sobre a necessidade de adotar políticas públicas para o conjunto  da sociedade, de evitar a polarização e de integrar as forças moderadas no governo  assumem importância decisiva para “ salvar” a democracia em nosso país. 


*Sergio Abreu e Lima Florêncio é diplomata, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra. 

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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional 

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

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